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ÁLVARO LAPALENDO RESOLVE-SE: ÁLVARO LAPA E A LITERATURA![]() CULTURGEST Edifício Sede da Caixa Geral de Depósitos, Rua Arco do Cego 1000-300 Lisboa 18 JAN - 19 ABR 2020 ![]() ![]()
A obra de Álvaro Lapa permite-nos muitos voos, enquanto observadores ou leitores, dá-nos acesso a um sistema analógico muito semelhante ao dele, que o libertara através da criação das suas obras, restando apenas o nosso imaginário:
Visitas ao museu da literatura. Se penso em Rimbaud, Kerouac, por aí fora, liberto forças de ordem minimamente imaginária. Relacionou-me com eles de modo adolescente, como ídolos, e penso que essa situação de idolatria, real ou induzida, liberta forças que constituem um objecto, um sistema de analogias (Lapa, 2007: 98 - 99).
A obra de Álvaro Lapa articula-se neste «sistema de analogias» do imaginário. Entre a literatura e a pintura, cria-se um pensamento visual que emerge de um filósofo e de um escritor, cujo universo é tecido numa rede de palavras, frases, linhas, formas e cores, em contraponto com as do universo multidimensional literário:
Esta pintura é também um “Auto-Auto-Retrato”, um retrato do retrato de si, quase um espelho, um outro lado do espelho, como se a obra quisesse virar-se do avesso, trazer o pensamento de dentro para fora, transformando-o assim numa imagem do autor enquanto conceito, ideia, categoria filosófica, mas numa representação visual dessas mesmas construções mentais (Faria, 2020).
Em Lapa, descobrimos o seu «autorretrato» através do reflexo do pensamento na obra, simulado por pistas, palavras, citações, ideias, ou mesmo marcas induzidas a signos de personagens, colagens, formas abstratas, cores opacas e uniformes. A literatura interliga-se à pintura. Cruza-se e descontextualiza-se através de fragmentos de pensamentos, fundindo os seus pensamentos com os de vários autores, de modo a espelhar-se a si próprio, como se um «retrato-duplo» se tratasse. Quando olhamos para uma pintura de Álvaro Lapa, somos levados para um determinado livro ou um autor, que, por sua vez, nos devolve à pintura. Torna-se quase inevitável não deixar de fundir e romper o discurso literário, em que a ideia e a palavra são o mote principal desse diálogo estético na descodificação da pintura. Através de Burroughs, o artista não alude apenas à sua técnica de «cut-up» no universo pictórico através do corte e da colagem, mas também ao seu modo intertextual, quando se apropria da fragmentação de múltiplos discursos literários, através da desmontagem e da colagem de ideias/conceitos/imagens/técnicas, de forma a conceber o seu próprio mapa «picto-linguístico». As narrativas plásticas do pintor entrelaçam-se entre si. Divergem e convergem em múltiplos diálogos entre o plástico e o literário, linhas projetais no espaço-intelectual são definidas, originando, assim, uma «obra aberta» como delineou Umberto Eco. Procura, desta forma, uma conversa entre ele e o público. Contudo, interroga-se pela sensação da incomunicabilidade, o que nos leva a Tomás Marques Pereira, na obra Os criminosos e as suas propriedades, de 1984: «projeta na tela a elementar necessidade de narrar, mesmo que aprisionado numa poética pessoal indecifrável». Lapa esboça essa possibilidade através de uma trama de trilhos traçados pelas pinturas cujos pontos de ligação se manifestam tão subtis, quase impercetíveis na esperança de um retorno. Cada espectador elabora o seu próprio mapa através de eventuais conexões que consegue estabelecer com a literatura em cada imagem que observa. O mundo do artista passa a ser o do coletivo, e o coletivo o do artista. Assim, contemplamos as Profecias de Abdul Varetti, que interrompem o espaço em «obras-com-palavras», através de narrativas bordadas, como se fossem manuscritos despojados de si a sobressaírem do vazio. Reflete a essência do ser em aforismos proféticos. Continuamos a ler. Frases, reflexões ou máximas. E somos colocados no domínio do esquecimento, da liberdade, da morte, do vazio e da leveza. Fragmentos. Numa negação do próprio estilo, acarretam uma paródia do discurso, evocam a uma revolução do pensamento. Numa liberdade política, liberdade de pensamento, liberdade poética e liberdade artística. Para cada leitura, a pintura anima plasticamente Homero, Pessoa, Burroughs, Max Snyder, Kerouac, James Joyce, Artaud, Céline e Samuel Beckett, entre muitos outros. As obras configuram-se em linhas de ação que desenham diferentes tipografias visuais, cujos pontos de interceção suscitam novas formas de interpretação numa compreensão da semântica do artista. Deparamo-nos com a Biblioteca, como uma memória do seu trabalho, onde se apresenta a caminho dela a série Conversa, como se o curador seguisse as passadas do artista, de forma a estabelecer o virtual diálogo por que tanto o artista aspirava, numa montagem ilusória à sua estante. Por sua vez, somos também transpostos para um ready-made contemporâneo, uma «Estante de Mallarmé». Sonhamos com a descoberta da descodificação de um retrato-plástico em louvor da liberdade e da individualidade. Álvaro Lapa reclama esse espírito quando afirma: «Exagerar o literário, penso ser a maneira de curar a situação primordial; de curar a mordidela do cão com a baba do próprio cão (2007: 98 - 99). A série Cadernos de Escritores, entre 1976 e 2005, celebra precisamente a cura dessa «mordidela» através da liberdade e da individualidade do ser humano como símbolos de «silêncio, desterro e subtileza», tomando as palavras de James Joyce a respeito ao seu livro Ulisses. Contemplamos as pinturas. Um puzzle de cadernos de escritores. Formas geométricas, cores fortes, entre verdes e vermelhos, pretos e brancos. Carregadas de dor ou de alegria, leveza e vazio. Sentimos o silêncio. Rompe o vazio com um estilhaço acutilante de uma cumplicidade obscura de um escritor, fazendo-nos embarcar numa viagem à miséria, à doença, à morte e à guerra através do Caderno de Céline. Ou fazendo-nos lembrar a vibração das forças enigmáticas do Universo, em Caderno de Artaud (Artaud, 1971: 109):
Encore une fois, ce n’est pas une utopie, mais une réalité scientifique qu’on ne peut nier. Si l’on veut bien accepter l’idée que l’Homme est le catalyseur de l’Univers, on doit en déduire que les forces morales de l’Homme vibrant à l’unisson avec les forces de l’Univers, ces forces qui, selon les enseignements de la haute philosophie moniste, ne sont no physiques ni morales, mais revêtent un aspect ou moral ou physique suivant le sens dans lequel on désire les utiliser.
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