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CORPO, ABSTRACÇÃO E LINGUAGEMOBRAS DA SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA EM DEPÓSITO NA COLEÇÃO DE SERRALVES![]() MUSEU MUNICIPAL DE ESPINHO / FACE Rua 41 Av. João de Deus 4500-198 Espinho 16 JUN - 18 JUL 2020 ![]() ![]()
Obras da Coleção de Serralves, dos artistas Alberto Carneiro, Álvaro Lapa, Ângelo de Sousa, António Dacosta, António Palolo, António Sena, Cabrita, Eduardo Batarda, Fernando Calhau, Fernando Lanhas, Graça Morais, João Vieira, Joaquim Rodrigo, Jorge Martins, Jorge Pinheiro, José de Carvalho, José de Guimarães, José Loureiro, José Pedro Croft, Julião Sarmento, Júlio Pomar, Lourdes Castro, Luís Noronha da Costa, Manuel Baptista, Manuel Rosa, Maria José Aguiar, Nikias Skapinakis, Pedro Calapez e Rui Sanches.
As vanguardas, à entrada do século XX, surgem plurais e contraditórias, gerando manifestos, movimentos, teorias estéticas, políticas. A dinâmica inerente a estas experiências e manifestações formais alimenta-se precisamente no que lhes é conflitual. Assumindo a condição experimental, e não hegemónica, enquanto movimento dialéctico progressivo e regressivo simultaneamente, as vanguardas modernistas trouxeram até a contemporaneidade múltiplos e imprevisíveis diálogos. As sucessões intermináveis dos movimentos dissociam-se na materialidade em prol de um discurso de ruptura, mas contraditório na sua génese. A prossecução da prática artística moderna enquanto prolongamento histórico e teleológico revê-se expressivamente questionada, seja no que diz respeito à retórica da ruptura, por oposição ao conceito de evolução, seja na própria noção de experimentalismo que reduz qualquer matriz prossecutora. Impressionismo, Fauvismo, Cubismo, Dadaísmo, Surrealismo, Expressionismo, Abstraccionismo distinguiram-se como campos magnéticos para artistas, para críticos, como para uma sociedade fortemente ancorada em posicionamentos de ordem social e política no pós-guerra. A primeira década do século XX em Portugal contou um grupo de inconformistas como Almada Negreiros, Amadeo de Souza-Cardoso, Santa-Rita, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Amadeo de Souza-Cardoso, Nadir Afonso entre tantos outros. As suas passagens por Paris garantiam-lhes o fulgor intelectual e a irreverência que dá origem à Orpheu e à revista Portugal Futurista. Paris foi o paradigma cultural de várias gerações de intelectuais, escritores, artistas e políticos. Almada Negreiros é uma das figuras mais interessantes deste período, precisamente porque o seu trabalho de desdobra por uma série inesgotável de linguagens e suportes, da pintura à literatura, ao cinema. É, precisamente, esta multidisciplinaridade e experimentação que alimenta a condição experimental e, por isso, não hegemónica da arte abstracta deste período. Não obstante, talvez pela força do isolamento das esferas artísticas, os anos de Guerra foram particularmente férteis e caracterizam-se por um certo afastamento das geometrias abstractas que então marcavam a produção parisiense. A introdução da arte popular no contexto português poderá ter advindo de uma certa autonomia e experimentação decorrente do isolamento dos artistas, no entanto, serviu-nos para comprovar que o modernismo e a sua expressão vão além de qualquer evolução teleológica ou raiz geográfica. Assim sendo, a exposição Corpo, Abstracção e Linguagem na Arte Portuguesa (2020), actualmente no Museu Municipal de Espinho, embora não seja dissociável deste contexto, surge na procura de uma narrativa ecléctica para a transformação da Abstracção no contexto português. Da Colecção da Secretaria de Estado da Cultura em depósito no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Marta Moreira de Almeida e Joana Valsassina reuniram cerca de trinta obras que mapeiam as décadas 60, 70 e 80. Como aliás acontece em grande parte das exposições colectivas, pretende-se promover novas leituras e estabelecer pontos de contacto entre as obras, mais do que se servir dos artistas para narrar de forma cronológica ou historicista a arte abstracta em Portugal. No entanto, acidentalmente (ou não) porque não integra a colecção nem a exposição, somos primeiramente convidados a olhar um retrato de Amadeo pintado por Do Carmo Vieira como uma espécie de compromisso para o que se segue. À semelhança de Amadeo de Souza-Cardoso que viveu parte da sua vida em Paris, um grande número de artistas, nos anos 50, estudou e viveu no estrangeiro. Ângelo de Sousa, Alberto Carneiro, René Bartholo, Eduardo Batarda, foram alguns dos que consigo trouxeram a vanguarda e os questionamentos plásticos que assimilaram nos centros artísticos internacionais e que, de certa forma, lhes serviram de instrumentos para contrariar a censura e repressão política vivida então em Portugal. A ditadura portuguesa e a representação da propaganda ideológica tão circunscrita ao conservadorismo formal e à imagética popular, foram muitas vezes o terreno fértil para a transformação e questionamento. A par dos movimentos que surgiam no contexto internacional, entre eles a Pop Art, o Nouveau Réalisme ou a Figuration Narrative, aparece em Portugal a Nova Figuração. O contexto do pós-Guerra encerra a figura representativa e a sua estabilidade ontológica, para passar a explorar a percepção da verdade, como representação de um mundo além do tangível. Autores como Graça Morais, Maria José Aguiar, Lourdes Castro, Alberto Carneiro, Álvaro Lapa, Júlio Pomar, Jorge Pinheiro, René Bertholo, são alguns dos que compõe a narrativa expositiva e que se ressurgem contra um regime e sociedade que se queria circunscrita a um universo estático. É, aliás, essa urgência que traz a redefinição da figura enquanto elemento de autoridade para uma abordagem mais experimental, com as devidas aberturas e multiplicidades na abordagem da verdade. No decorrer da exposição, é possível identificar a superação da geometria e o pragmatismo da abstracção, em detrimento da figura, com a introdução de obras como as de Lourdes Castro, René Bertholo e Joaquim Rodrigo. Lourdes Castro e a obra Sombras Projectadas de Marie e José Manuel Simões (Paris), de 1964, experimentam os jogos de sombras, os seus contornos e projecções, distanciando-se da relação espacial enquanto representação cartesiana. Um Exemplo por Dia, (1965) de René Bertholo é elucidativo do seu processo e dos seus quadros de acumulação a óleo onde a representação dos objectos recai sobre a aleatoriedade e o caos. A falta de hierarquia aparece até no grafismo com que René representa os objectos, não há espaço para luz ou qualquer distinção cromática. O que define os objectos é unicamente a sua forma. Sevilha – Cartaia de Joaquim Rodrigo, produzido um ano depois, prossegue pela desmaterialização da figuração como base para a introdução da narrativa e de um discurso crítico fortemente vincado pelo contexto político e social, nomeadamente pelo pós-Guerra colonial. Noutro registo, surge Fernando Lanhas como um dos mais importantes intervenientes da vanguarda estética, sob a forma de O48-72 (1972), a par de Ângelo de Sousa e António Palolo. O desaparecimento da figura pertence-lhes, assim como o absoluto despojamento que apenas ganha corpo em grelhas e formas geométricas de cores planas. Ângelo de Sousa é apresentado por meio de uma pintura, mas também de uma escultura em aço e madeira lacada Sem Título (1968) onde é notória a sua obsessão pela tridimensionalidade, pelos jogos de tensão e o permanente desafio à retórica espacial. Por outro lado, surge Júlio Pomar, amigo próximo de Fernando Lanhas, e Nikias Skapinakis, que embora insistam na figuração e na representação da natureza e da paisagem, problematizam-na em claro confronto com a estética figurativa identitária, operando numa abordagem mais próxima do surrealismo e do neo-realismo, como é o caso do Júlio Pomar. A introdução do Corpo ganha espaço na obra da Graça Morais, António Dacosta, Julião Sarmento e dos já referidos Júlio Pomar e Lourdes de Castro. O erotismo de Julião Sarmento que encerra esta exposição com Memória do Túnel (1985), a narrativa muitas vezes política de Júlio Pomar, a imagética Pop de José de Guimarães, a gestualidade com que Graça Morais expressa o corpo humano, ou a poética presente na obra de Lourdes de Castro fazem do Corpo efectivamente um tema nesta Colecção. Não obstante seja a pintura quem assume grande parte da exposição, encontram-se nas esculturas de Alberto Carneiro, de Rui Sanches, de Manuel Rosa, José Pedro Croft, as mesmas preocupações e tentativas de reverter a as conotações representativas e ideológicas da figura. A escultura deste período procura explorar o espaço euclidiano, com particular excepção para a Inês de Castro (1985) de José de Guimarães, e deixa cair a dimensão clássica da escultura pública tradicional. Tanto na manualidade evidente na expressão de Alberto Carneiro, como nas suas referências ao corpo e à natureza, até à pureza e fragilidade do calcário de José Pedro Croft e Manuel Rosa, o que encontramos é uma reversão da escultura enquanto monumento para assumir uma condição incrivelmente experimental. O absoluto e sua perenidade dão lugar a múltiplos e imprevisíveis diálogos, tantas vezes num movimento que se vê progressivo e regressivo simultaneamente. Por outro lado, e embora o contexto português não tenha afirmado o recurso a práticas mais conceptuais e performativas, nomes como os de Julião Sarmento, Fernando Lanhas, Graça Morais serão importantes de salientar pelas suas experiências neste universo. Não restarão dúvidas que a Colecção da Secretaria de Estado da Cultura em depósito no Museu de Arte Contemporânea de Serralves reúne uma muito rica amostra deste período da arte portuguesa, com uma alargada diversidade na temática, nas linguagens, nos suportes, nas contaminações. Embora confluam nas suas motivações de sentido ou por semelhança imagética, são peças que nos remetem para pesquisas conceptuais, formais e materiais opostas a qualquer definição objectiva e inquestionável de Abstracção. A arte abstracta enquanto processo de evolução e depuramento, cronologicamente sucessor das vanguardas é relativizado e problematizado. Se quisermos, será antes a transformação e dissecação da Abstracção o que aparece como problemática. No contexto português, e embora a contaminação das vanguardas internacionais tenha tardado a chegar, ou se encontrem sérios ecos da ditadura prolongada, o que então se produziu, da pintura à escultura, oferece uma resposta ou uma oposição com bastante maturidade estética à história da arte. Não será, por isso, o formalismo geométrico e asséptico que exclui qualquer comprometimento social e ideológico para com o seu tempo, nem a pureza fundamentalista que rejeita da obra de arte qualquer testemunho histórico que iremos encontrar no discurso expositivo. Será antes o Corpo, na sua presença física e na imanência espiritual, ou a Linguagem enquanto auscultação e desdobramento da semântica, da técnica e do suporte. Ao refutar-se a Abstracção na sua condição hegemónica, permitimo-nos à diversificação, ao aprofundamento e mantemo-nos receptivos às contaminações do contexto, no espaço e no tempo.
Soraia Fernandes ![]()
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