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TÚLIA SALDANHAUMAHORA VI![]() CENTRO DE ARTE CONTEMPORÂNEA GRAÇA MORAIS Rua Abílio Beça 105 5300–011 Bragança 19 MAI - 31 JAN 2021 ![]() ![]()
A obra de Túlia Saldanha é apresentada no Centro de Arte Contemporânea Graça Morais, estando previsto um ciclo de colóquios a partir de Setembro. De uma estreia se poderia falar, porque, embora não seja a primeira vez que a artista é mostrada em território transmontano, depois de uma exposição em Macedo de Cavaleiros, em 1987, organizada pela Câmara Municipal, a sua presença neste território ganha agora outra visibilidade. A palavra regresso, no entanto, afigura-se mais adequada, regresso da obra à sua fonte, à sua nascente primordial. Embora criada num período em que Túlia Saldanha, já tinha deixado Trás-os-Montes, onde a artista nasceu em 1930, a memória deste território reaparece quando, aos 37 anos, em Coimbra, inicia um ciclo distinto da sua existência que ganha forma e significado através da prática artística. As exposições no Centro de Arte Contemporânea Graça Morais têm contemplado, quase sempre, e em resultado da configuração espacial do local, uma introdução à obra do artista visado. Neste caso, há um conjunto de objectos etnográficos, associados aos modos de vida de Trás-os-Montes, expostos sobre uma grande mesa, com superfícies negras da sua carbonização. Imagens de época, projectadas, mostram estes objectos usados em instalações e intervenções performativas, realizadas entre 1971 e 1979, no Círculo de Arte Plásticas de Coimbra (CAPC), na Galeria Alvarez, nos Encontros Internacionais de Arte desta galeria, na exposição Alternativa Zero e na Cooperativa Diferença. Tal instalação tem uma tripla função: é, materialmente, a entrada da exposição, metaforicamente, a entrada no universo de Túlia Saldanha e, historicamente, a introdução a um período de abertura da arte portuguesa à experimentação e à renovação disciplinar e conceptual. Este importante capítulo da história da arte em Portugal, na galeria de entrada, ressurge no final da exposição, no pequeno espaço adequado aos materiais documentais que aludem às exposições no CAPC, à colaboração com o seu Grupo de Intervenção, à participação no grupo CORES, no projecto Caixas de Arte PIPXOU, do grupo Triplo V e, ainda, às actividades no Museu Wostell, em Malpartida de Cáceres. Entre estas zonas, a principal área expositiva do Centro de Arte apresenta desenhos das acções artísticas de natureza colaborativa com Robert Schad e participação do público intituladas 33 horas a desenhar e 100 horas a desenhar, documentadas por fotografias de Álvaro Rosendo.
Projecção de fotografias de Álvaro Rosendo relativas à acções 33 horas a desenhar (Goethe Institut, Lisboa, 1983). Fotografia © Manuel Teles
Na mesma área duas peças, lidas de modo contrastante, funcionam como chave da obra da artista: o cubo negro com cubos coloridos dentro e um globo terrestre carbonizado (No Man’s Land), construído como uma caixa de brincar; o cubo branco, com uma pilha de tiras recortadas de papel (Sala de Descontracção). A pequena caixa negra encerra o espaço e o tempo do mundo, que só o fogo e a cor podem revivificar; a grande caixa branca liberta o espaço e o tempo do corpo.
Vista do interior do objecto No Man’s Land (1977, col. particular). Fotografia © Manuel Teles
Para a artista, a actividade desenvolvida entre 1967 e 1988, corresponde a uma dupla operação, de redescoberta pessoal e de descoberta da arte. Quando entra para o CAPC adere directamente a uma deriva experimental, sentida como destino natural da arte e não como ruptura face a um passado e a modelos que não conheceu e que não foram os seus. A ausência de passado e a inexistência de treino académico podem explicar o entendimento da arte como campo inato de experimentação e de liberdade. Daí, a importância da memória e da inscrição biográfica sobre a memória histórica. Por estarmos em Bragança e focando-me sobre as remissões à atmosfera transmontana, não há como contornar as referências à vivência pessoal e ao território em Instalação/Objectos (1982) com dois livros parcialmente preenchidos, seus diários inacabados; nas assemblagens Fim-de-semana (1974-77) ou Do Nordeste a Coimbra (1978) com materiais que lhe pertenceram; no desenho-mapa Os olhos são para quem com eles quer ver (1982), com o itinerário da sua vida; em Sala de Descontracção (1975), evocação dos palheiros transmontanos a que as crianças acediam por uma pequena entrada para, divertindo-se, pisarem e aplanarem a palha; nas instalações e refeições negras, com amoras, castanhas, chouriço de sangue, lembrança de momentos de comunhão à lareira; na série de desenhos (1986) com a paisagem montanhosa. Não há como contornar outros vestígios, conhecidos por documentação visual e sonora: a sua voz gravada, na Sala Preta nº 2; a sua caligrafia nos livros negro e branco; o contorno desenhado do seu corpo, registado por Robert Schad. O espaço expositivo não acomoda facilmente exposições com uma dimensão intimista e um forte sentido de obscuridade. A brancura imaculada das salas não acolhe facilmente o negro invasor e o ambiente dominante de caixa fechada. No entanto, estas marcas perduram no nosso pensamento quando deixamos o edifício. Acentuei uma leitura territorial da obra de Túlia Saldanha que não é incompatível com o convocar de afinidades com outras obras do período. Pressentindo-se, embora, mundividências e propósitos diversos, atestam como a artista viveu a arte do seu tempo: as caixas de Lourdes Castro, os ambientes de Ana Vieira, os tableaux-pièges ou o Déjeuner sous l’herbe, de Daniel Spoerri. Por outro lado, não consigo deixar de pensar em figuras como a de Ana Mendieta, para quem a arte era um modo de renascimento, contaminada pelas práticas primitivas e pela magia. Ficará para outro momento desenvolver paralelismos e explorar o aprofundamento da performance, a utilização do fogo regenerador, a poética do vestígio e a do exílio. Finalmente, gostaria de referir o interesse da visita ao Centro de Arte neste momento, pela oportunidade de ver, em paralelo, o trabalho de duas artistas oriundas de Trás-os-Montes, no qual se reconhecem marcas indeléveis deste território. No confronto de Graça Morais com Túlia Saldanha, não intencionalmente previsto pela curadoria, mas estabelecido no olhar dos visitantes, percebe-se como a leitura determinista é difícil de aplicar ao domínio da arte, em que o mesmo ponto de partida leva a desenvolvimentos insuspeitos.
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