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DEBORAH STRATMANUNEXPECTED GUESTSSOLAR - GALERIA DE ARTE CINEMÃTICA Solar de S. Roque Rua do Lidador Vila do Conde 08 JUL - 02 SET 2023
A exposição foi organizada em parceria com o Curtas Vila do Conde – Festival Internacional de Cinema, que ofereceu na edição deste ano um programa paralelo, dentro da secção InFocus, onde foi apresentada uma seleção de 12 filmes da sua obra cinematográfica, e uma Carta Branca, com a projecção de algumas obras que influenciaram o seu trabalho, como por exemplo “Wanda” (1970) de Barbara Loden, “Jane Brakhage” (1974) de Barbara Hammer, ou “Lightning” (1976) de Paul Kos e Marlene Kos. O trabalho de Deborah Stratman incide sobretudo numa investigação dos espaços do quotidiano e nos comportamentos moldados por estes, questionando a sua aparente neutralidade. Na “Nota da Artista”, que escreveu para a exposição, Stratman diz que os seus projectos se concentram geralmente “na importância psicológica de ambientes físicos”, interessam-lhe “os sistemas latentes de controlo”, “as formas como somos policiados pela arquitectura e como detalhes mundanos traem a convenção e, portanto, a autoridade.” É aí nesse espaço do aparentemente vulgar e banal que se movem tanto os mecanismos de controlo como a disrupção do poder, "como quando alguém cai e, ao cair, interrompe momentaneamente a ordem das coisas."
Vista da exposição com a obra Curtain. Fotografia em vinil, 60,7 x 86,7cm. © Liz Vahia
Deborah Stratman junto a Curtain. © Solar - Galeria de Arte Cinemática
E não interessa bem que materiais e técnicas usa para isso, mas sim a adequação àquilo que quer descobrir fazendo. Pois o trabalho de Deborah Stratman não se fixa só no cinema experimental, estende-se também pela fotografia, escultura ou instalação. Vimos isso nos vários exemplos de trabalhos seus que mostrou na masterclass que deu incluída também no programa do Curtas, intitulada “Radical Listening”. Aqui Stratman escolheu propositadamente obras fora da área do cinema para falar do seu trabalho em geral e especificamente do papel que o som tem na sua prática artística, sobre a forma como o som “nos informa”, “nos engana”, “nos controla” e “nos capacita”. Para Stratman, o som não é “o irmão mais novo” do cinema, é em si próprio um corpo que vibra, porque tem características físicas. O som “é espaço e faz espaço”, transforma-se com o espaço onde está e transforma o espaço em si. Além disso, o som tem um carácter voláctil que o aproxima do tempo, está aqui e depois já não está, está sempre em transição. Stratman diz que usa o som “para juntar as coisas, para nos fazer tropeçar”. O título da masterclass indica-nos já qual a questão principal que Stratman quer abordar: “o que é que nos faz prestar atenção e não só ouvir?” (listening versus hearing) Para Stratman, a atenção é uma forma de selecção e a artista acredita que o som “guia” essa selecção melhor que ninguém (excepto o tacto, disse). Na “Nota da Artista”, Deborah Stratman afirma que o “som como um modo de controlo social, os efeitos ecológicos da vibração e a capacidade subversiva e somática do design de som para construir e libertar a tensão têm sido centrais para a minha prática artística.” Esta ênfase na importância do som leva-nos ao primeiro vídeo da exposição, “Hacked Circuit” (2014), onde num plano sequência encenado, montado em loop, visitamos um estúdio de sonoplastia (Foley) na Califórnia, onde vemos a recriação dos efeitos sonoros do filme “The Conversation” (1974) de Francis Ford Coppola. Aqui a investigação sobre “o” som é-nos dada em várias camadas: um filme sobre o som de um outro filme ele próprio sobre escutas de sons; e o som que parece natural dos filmes é de repente “desmascarado” e mostrado nos seus vários artifícios, um paradoxo que revela a recriação do som como mais “realista” do que o som gravado; e a câmara, tal como a personagem de Gene Hackman que desmantela o apartamento à procura de um microfone escondido, entra pelo estúdio adentro sem parecer ser notada e mostra-nos o engenheiro escondido por trás da fábrica de sons. A realidade não é o que parece e a filmagem da realidade não parece tão real sem o artifício do artista. “Estou menos interessada em fazer objectos do que em influenciar e documentar lugares e situações”, diz Stratman na mesma “Nota da Artista”. A câmara, neste vídeo como nesta exposição, é o “convidado inesperado”, mesmo conhecido é sempre surpreendente. Ou pelo menos, nos convida a ver de uma outra maneira e que pode mesmo ser estranha e desfocada, como no vídeo “XENOI” (2016), apresentado no espaço da cave da galeria, sítio bem escolhido para falar de gregos, cavernas e formas “sci-fi” que parecem querer ensinar-nos algo. Em “XENOI”, formas geométricas coloridas pairam sobre alguns locais na ilha grega de Siros, onde viveu Ferécides, suposto professor de Pitágoras. Vemos um teatro vazio, esqueletos de casas que ficaram a meio na sua construção como resultado da crise (também elas pairam na paisagem), a praia e a linha do mar. Que querem estes “estranhos” (“xenoi”) que nos visitam ao longo do tempo? Ao contrário, no vídeo “In Order Not To Be Here” (2002), o estranho esconde-se no familiar e o vazio gera o medo e promove a vigilância. “In Order Not To Be Here”, que venceu a competição internacional do Curtas em 2003, é exemplo dessa investigação sobre o estado “psicológico” dos ambientes físicos, de que falava Stratman. O modo como o espaço suburbano é filmado, à noite e esvaziado de pessoas, ressalta a artificialidade desses lugares e faz-nos questionar a aparente calma e segurança que esses sítios promovem, criando uma sensação de estranheza e ansiedade no espectador. A percepção visualmente diferente que nos é dada desses sítios, o seu vazio não só espacial como temporal, coloca-nos em alerta para algo que pode acontecer a qualquer momento, ou já aconteceu, ou acontece permanentemente e não o vemos. O som, com excertos de gravações de polícia e reportagens televisivas, reforça esse carácter iminente da imagem. Em “In Order Not To Be Here” há um crescendo entre invisibilidade e vigilância, que culmina na cena final encenada do “suspeito” em fuga filmada a partir do helicóptero, a perspectiva suprema à qual não se consegue fugir. Para lá de uma narrativa, e encontrando no “mundo extra-humano” um fascínio e uma agencialidade a que dedica uma “atenção radical”, o cinema experimental de Deborah Stratman cria imagens que tentam delimitar problemas e oferecer-nos formas de pensar neles. Por isso diz Stratman na sua “Nota de Artista”: “Eu gostaria, sem depender da linguagem, de alcançar um cinema intelectual.”
[A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.]
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