COLECTIVAInvasões Contemporâneas - Arte nas Comemorações do Bicentenário das Linhas de Torres![]() 05 NOV - 05 DEZ 2010 ![]() ![]() Invasões Contemporâneas Arte nas Comemorações do Bicentenário das Linhas de Torres PRESS RELEASE No início do século XIX, as invasões territoriais dependiam sobretudo do aparato e da força militar. Foi assim na Guerra Peninsular, como o foi durante milénios em todo o mundo, desenhando-se desse modo o caminho da humanidade, na organização política e identitária dos povos. Só recentemente, já na segunda metade do século XX, assistimos ao apogeu de outras formas de invasão e domínio, em particular a invasão tentacular e todo-poderosa da economia e, com ela, a invasão cultural associada ao país ou área geoestratégica dominante, com os meios tecnológicos de comunicação à escala planetária a exercerem um poder subterrâneo mas absolutamente decisivo na alteração dos comportamentos sociais, pondo em contacto e influência recíproca civilizações, países, instituições e pessoas. A globalização é assim a expressão máxima desse exercício de domínio invasivo, tácita ou declaradamente assumido por todos, que transforma de um modo viral as nossas referências e projecções simbólicas. Pelo efeito de uma espécie de consciência global, somos hoje levados a crer que pertencemos não apenas a um país, a um território ou continente, mas que fazemos parte de um todo maior e cada vez mais presente nas nossas vidas, isto é, um planeta partilhado e vivenciado em permanente comunicação, mais do que comunhão, por todos aqueles que o habitam. Por isso, os processos de identidade estão hoje longe, em muitos aspectos, dos que caracterizavam as premissas de solidariedade e acção identitária do século XIX. Onde antes havia a presença ou o contacto físico e psicológico entre seres humanos, existe agora, no essencial, uma ligação mediada pela inebriante máquina digital. A dicotomia “aproximação/confronto” humano que antes se estabelecia numa relação de espaço-tempo dependente das condições naturais, é hoje marcada e quase substituída pela esmagadora e omnipresente circulação da imagem, o que inviabiliza qualquer estabilização espaço-temporal, promovendo inclusive uma invasão sistémica entre opostos significacionais. Isso é notório não apenas no que diz respeito aos domínios físicos, reais e virtuais, que se relacionam e transformam por contágio invasivo, como pode ser observado numa simbólica em permanente transitoriedade que nos molda a todos como seres sem molde concreto ou reconhecível, abandonados na crise de identidade que nos caracteriza desde a queda das transcendências e a ascensão dos efeitos imanentes (1). A arte, por sua vez, teve e continua a ter o seu papel em todo este processo, reinventando permanentemente o seu aparato interdisciplinar e os espaços onde se apresenta e legitima. Desde o pós-minimalismo dos anos 60 e 70, em particular com “o campo expandido da escultura” (2) , que a invasão das formas e dos objectos artísticos nos espaços naturais, públicos, políticos e sociais passou a representar uma prática corrente, de onde se estabelecem novas leituras dos lugares e dos seus significados, assim como da ideia de arte e da sua função. Ora, é precisamente nesta tradição invasiva, perturbadora da leitura convencional do lugar e da sua relação com a arte, que os seis artistas convidados a expor no âmbito do projecto “Invasões Contemporâneas” – Miguel Palma, Paulo Mendes, Pedro Amaral, Pedro Loureiro, Dora Nogueira e Fernando Ribeiro – realizam um conjunto de intervenções que pode ser apreciado desde o espaço público dos seis municípios que constituem a Plataforma Intermunicipal das Linhas de Torres. Os trabalhos agora apresentados interferem assim com o quotidiano de alguns espaços não identificados com a prática artística, mas onde convergem diariamente milhares pessoas que traduzirão uma inesperada mas quase obrigatória reacção. Deste modo, as intervenções protagonizadas pelos artistas não pretendem promover uma leitura directa ou deliberada sobre a memória iconográfica, política ou histórica das Invasões Napoleónicas, embora haja sempre paralelismos e ligações que permanecerão inevitáveis, procurando agir essencialmente dentro do conceito de invasão contemporânea que se projecta desde a circulação simbólica e semiótica dos nossos dias e promove a instabilidade significacional a que associamos a experiência do novo e da diferença em constante metamorfose, ou o confronto de imagens e ideias que, de outra forma, nunca se cruzariam. Desse modo, o território português que assistiu e protagonizou as chamadas Linhas Defensivas de Torres, e que hoje faz parte de seis concelhos do Distrito de Lisboa, unindo Torres Vedras, a Oeste, a Vila Franca de Xira, junto ao rio Tejo, recebe, de novo, um propósito de invasão, agora mais pacífico, criativo, mas igualmente operante ao nível da consciencialização estética, mas também política e social. O nível de receptividade desta intervenção no espaço público dos diferentes territórios resultará tanto mais eficaz e produtivo quanto for visitado na integra, percorrendo os seis municípios em busca da arte mapeada para ser descoberta como quem avança sobre o desconhecido, fazendo assim o caminho que identifica um passado de experiência militar, política e social do século XIX com as características específicas das invasões contemporâneas, isto é, aquelas que dependem da imagem e da sua profícua influência no nosso modus vivendi. [David Santos] Notas: (1) Sobre esta alteração de valores e a sua relação com a produção artística cf. Hal Foster, The Return of the Real, The MIT Press, Cambridge, Masschussets, 1996. (2) Cf. Rosalind Krauss, “The Expanded Filed of Sculpture”, in October, vol. 8, 1978. Dora Nogueira Na cafetaria da Biblioteca José Saramago podemos encontrar um conjunto de fotografias de grande escala que, aparentemente, nos projectam apenas alguns aspectos da experiência lúdica de veraneio. Porém, quando observada com mais atenção, essa série remete-nos para a ideia de uma dialéctica entre simbólicas ancestrais, através dos jogos, do relaxamento, da ordem e da comunhão. Como lugar de natureza em campo aberto, mas também de espaço público informal, a praia surge aqui ainda como metáfora do acampamento militar ou do treino de preparação para o combate, subtil ligação encontrada nos gestos das figuras e no aparato formal do enquadramento das imagens. De outro modo, na série “Trabalho de Campo”, observada no percurso das escadas e na zona de audiovisuais da Biblioteca de Loures, a artista apresenta-nos a singularidade contemporânea da ideia de vizinhança ou partilha territorial, nas tensões traduzidas pela disposição metonímica da arquitectura de habitação, explorando assim a imagem dos terrenos baldios, esses espaços por conquistar. Pedro Amaral No largo do Município de Arruda dos Vinhos, mais especificamente nos vidros frontais da antiga galeria municipal, Pedro Amaral desafia o transeunte a confrontar-se com uma iconografia só em parte estranha a esse espaço público. Imagens de jovens asiáticas (chinesas) em veloz passagem motorizada funcionam, afinal, enquanto espelho de uma circulação rodoviária quotidiana, que une o planeta à escala global, num exercício comum – ainda que a pintura de Pedro Amaral nos mostre ao mesmo tempo como essa velocidade em BD sugere uma acção violenta, ou espécie de perseguição armada, ela surge traduzida, porém, em bandas de inofensiva ficção. Por outro lado, as pequenas pinturas que se insinuam nas janelas superiores mostram-nos figuras tailandesas que espreitam o largo principal da vila, prometendo uma simbiose cultural invasiva de identidade difusa, ainda que todos estejamos hoje familiarizados, de algum modo, com o romantismo dançante da ficção de Bollywood (neste caso, tailandesa). Fernando Ribeiro Em Vila Franca de Xira, na varanda semi-circular que une a esquina da Avenida dos Combatentes da Grande Guerra com a Rua Alves Redol, (junto ao Museu do Neo-Realismo), Fernando Ribeiro apresenta uma imensa “bandeira” em duplicado especular que une também as duas simbologias de leitura política, económica e social mais decisivas do mundo ocidental. No longitudinal aparato pictórico aqui proposto, vemos apenas como a bandeira dos Estados Unidos da América absorve a simbologia estelar da bandeira da União Europeia. Com efeito, no espaço quadrangular azul onde normalmente se distribuem as estrelas referentes aos Estados americanos vemos agora as estrelas dos Estados europeus em forma circular, pontuando desse modo uma reflexão sobre a dependência europeia relativamente à omnipotente política norte-americana. Deste modo duplamente simbólico, o artista procura lembrar a invasão americana que desde o segundo pós-guerra e a execução do Plano Marshall tem vindo a transformar a Europa num parceiro político sem peso, cumpridor apenas das intenções de domínio dos EUA. Esta leitura permite-nos afirmar que as invasões dos séculos XX e XXI têm sido concretizadas, sobretudo, através do desenvolvimento de políticas económicas, financeiras e culturais, recorrendo por isso, cada vez menos, à força e às estratégias militares. Em última análise, é o signo e a sua transmutação constante que varrem o espaço físico e identitário, como nova apropriação ou domínio territorial. Paulo Mendes De modo inesperado, o ideário da Revolução Francesa invade subtilmente a fachada e a simbologia religiosa do Palácio de Mafra. Para Paulo Mendes, Liberdade, Igualdade e Fraternidade, constituem uma trilogia crucial, pela qual vale a pena lutar. Bastante esquecidas na actualidade, estas palavras remetem para uma histórica mudança de paradigma político, ainda hoje determinante no desenvolvimento das sociedades democráticas. O artista recupera-as aqui para as inscrever em três bandeiras independentes, cada qual com uma das cores da bandeira francesa. No topo dos mastros, a simplicidade destas bandeiras agitadas pelo vento reflecte, no entanto, um conjunto significativo de questões políticas, sociais e artísticas: qual o sentido actual destas palavras de ordem, associadas ao espírito liberal que assolou a Europa durante o século XIX? Até que ponto, é hoje possível inscrever este slogan revolucionário e secularista no domínio de uma simbólica global onde todos os significados parecem anulados pela sua excessiva circulação comunicacional? O confronto invasivo que estas palavras promovem, terá algum eco junto dos visitantes do Palácio de Mafra? Para além da sua dimensão estética e processual, será a arte contemporânea capaz ainda de agitar ideias e leituras de carácter histórico-político? Miguel Palma Como espécie de tiro de partida da exposição “Invasões Contemporâneas”, Miguel Palma realizará durante a inauguração uma performance evocativa das batalhas militares do século XIX, ao procurar derrubar soldados em miniatura a partir da “acção violenta” de uma espingarda de pressão de ar. O artista sugere assim que no acto de atirar sobre cada um dos “soldados” possamos identificar a cultura de confronto directo entre atirador e alvo que caracterizou as acções militares oitocentistas. De outro modo, e após o exercício performativo, os visitantes do edifício principal do Município de Torres Vedras poderão verificar os resíduos objectuais do “conflito” e visionar o registo audiovisual dessa acção passada. Tal como as “Invasões Francesas”, a acção registada no momento inaugural pertence já ao passado e, no final da exposição intermunicipal, serão poucos os que recordarão essa experiência artística baseada num “aqui e agora” irrepetível e, por isso, redutor ao nível do público testemunhal. No fundo, esta dimensão processual funciona ainda como metáfora sobre a evocação de um passado que hoje nos parece bastante longínquo, confinado ao registo historiográfico e à sua análise político-militar. Observar os “objectos-documentos” que restam enquanto memória da “Batalha de Miguel Palma” resulta finalmente como experiência análoga à visita de uma exposição documental sobre as “Invasões Francesas”. Para tal, será necessário identificar o nível de leitura deceptiva que o artista nos anuncia com este trabalho, salvaguardando, desse modo, as diferenças essenciais entre o peso decisivo da história humana (neste caso, da Guerra Peninsular) e a criatividade lúdica sua memória residual. Pedro Loureiro As fotografias de Pedro Loureiro revelam um olhar particularmente atento à dimensão humana que nos rodeia, explorando não apenas a sua pluralidade político-social, económica e etnográfica, como as linhas comuns que a identificam na partilha do nosso mundo. Este é um olhar experiente e viajado, que sabe da reacção do ser humano perante a câmara fotográfica. Nas cinco imagens seleccionadas para o atrium do Cine-Teatro de Sobral de Monte Agraço, Pedro Loureiro dá-nos precisamente uma ideia do caleidoscópio identitário que espelha a diversidade planetária. Entre a violência implícita na exibição da arma à cintura de um vendedor de supermercado em Joanesburgo (África do Sul) à pose formal de um militar russo com roupa estendida por cenário, passando pela invasão contemporânea que significam os desastres ecológicos – como o verificado em 2002 na Galiza, aquando do naufrágio do petroleiro “Prestige” que afectou centenas de quilómetros de costa e muitas espécies marinhas –, até à descontracção em pose do activista sarauí que nos olha de modo directo ou à preparação para a posteridade do soldado israelita que parece ter a Cisjordânia a seus pés, encontramos nestas imagens uma matriz comum: a temática do território, os conflitos sociais, políticos e militares, bem como a inocência humana perante os jogos de poder da realpolitik, patente nos trajes e nos modos dos que humanamente a representam, de algum modo. Esta é a grande mais-valia do conjunto agora proposto, permitindo-nos assim identificar como, apesar das distâncias temporais entre factos históricos, gerações e espaços geográficos, tudo se resume à expressão do poder sobre o território e a sua permanente (re)identificação. ![]() |
