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MIGUEL BRANCOTERRAGALERIA JOÃO ESTEVES DE OLIVEIRA Rua Ivens, 38 1200-224 Lisboa 30 JAN - 14 MAR 2014 Aqui na TerraVisitar Terra é entrar no espaço polifónico da contemporaneidade, onde diversas referências históricas e artísticas se misturam e diferentes processos técnicos se conjugam, numa aparente uniformidade pictórica. Uma fotografia discretamente inicia a exposição. Nela reconhecemos um interior austero que é uma biblioteca. É uma sala reconhecível como biblioteca, mas foram apagados todos os artefactos que pudessem dar mais informação sobre quem habitou aquele espaço. Há elementos tipológicos, a mesa, o tapete, o candeeiro, a moldura... mas não há traços de uma presença humana individualizada. Não é a biblioteca de alguém que estamos a ver, mas sim o espaço da cultura ocidental. As formas e a linguagem, a arquitectura base desta nossa contemporaneidade. Há aqui a convocação de um período histórico traduzido em imagem: um interior holandês do século XVII, um momento em que o ocidente estava interessado em expandir-se geografica e culturalmente. É o número zero da série Terra, esta imagem que foi depurada até à sua essência. Miguel Branco trabalhou digitalmente esta imagem, pesquisando e colando diversos elementos. Desta construção inicial derivaram os desenhos que se distribuem pelo espaço da galeria, de dimensões várias, associando-se em grupos ou isolando-se, destacados, em pares, quádruplos ou mesmo singulares presenças em locais estratégicos. Miguel Branco pensou este corpo de trabalho para o espaço da galeria João Esteves de Oliveira, uma montagem estudada para uma junção perfeita entre as peças e a sua disposição espacial. Inicia-se com uma fotografia tratada digitalmente e termina com um detalhe ampliado dessa mesma fotografia, mas pelo meio, tudo são desenhos a carvão sobre papel, fruto de meses de intenso e cuidado trabalho manual – 20 dias de trabalho quase contínuo para desenhar o maior deles. Há 4 desenhos centrais, semelhantes mas diferentes, representando essa mesma sala invadida por um bando de babuínos que tomaram o espaço e fizeram dele o seu habitat. Há frutas e legumes, em jeito de natureza morta (outra referência ao mesmo período histórico), espalhados pelo chão da sala. Ao redor dos desenhos maiores estão desenhos de menor dimensão com detalhes desses mesmos babuínos. A disposição espacial dos desenhos é um elemento a ter em conta na nossa relação com as peças. Assim como a dimensão das próprias obras. Nos trabalhos de pintura e escultura de Miguel Branco a pequena escala impera. O jogo das escalas que propõe tem uma implicação conceptual. A escala reduzida não nos convida a ser imersivos, obriga-nos antes a OLHAR para as obras. A pequena escala reforça o lado de exterioridade que temos com as obras, faz-nos posicionar face a esses objectos, aproxima-nos deles. O pequeno objecto ou a pequena imagem é um íman que nos coloca perigosamente perto dessas obras, afastando-nos do público em direcção a uma experiência privada. Reduzir não é apenas diminuir o tamanho, é também concentrar e constranger, e ao mesmo libertar, pois como afirma Miguel Branco, a pequena escala permite pintar qualquer coisa. Este interesse pelas tradições artísticas “menores”, pelas formas e motivos que ficaram em segundo plano na história da arte, permite-lhe um questionamento da ideia de representação, de narratividade, e um cruzamento de linguagens temáticas e plásticas (o retrato, a natureza morta, o desenho anatómico...). Os desenhos que aqui aparentam ser fragmentos antecederam, no que diz respeito à sua execução, os desenhos maiores. Portanto, o que parecia ser um estilhaçar de fragmentos em redor do desenho maior (o desenho completo de elementos e concluído na sua execução), é no entanto o inverso, é da reunião de todos aqueles excertos que se produz a imagem final. Esses fragmentos não são cópias de porções do desenho final, têm uma relação mais espacial com esse desenho do que uma relação de referência. Aqui estes fragmentos concretos não constroem aquela imagem final concreta, não são pedaços arrancados ou copiados do desenho final. Se virmos uma fotografia do atelier de Miguel Branco, onde imagens diversas ocupam a quase totalidade de uma das paredes, percebemos como este fascínio pelas imagens e pelas relações que se criam entre elas devido à sua disposição, influíram no arranjo da série Terra. Perde-se a imagem como elemento concreto e único para se criar uma miríade de imagens que formam um imaginário. Estes desenhos da série Terra são gerados ou decorrem de um processo de trabalho específico, um processo que não precisa de um referente concreto para actuar, que se alimenta fagocitando outras imagens e referências, sendo impossível destrinçar já qualquer ideia de origem. Assim como no início desta exposição não está o autêntico, está um espaço que não existe nem nunca existiu como tal, um espaço que é portanto virtual, a ideia de origem é aqui também irrelevante, não há uma matriz fundadora, à qual todas as outras imagens se reportem. O desenho final é aquele que parece menos construído, mais de acordo com o que poderia ser uma imagem de época, enquanto na verdade é o resultado de um elaborado processo de selecção, colagem, redimensionamento. Estes desenhos-fragmentos recordam-nos que há uma mediação entre aquele que vê e o desenho em si, sendo isso conseguido também pelo não apagar do efeito “construído” da imagem. Há aqui neste corpo de trabalho uma negociação entre o analógico e o digital. O analógico é baseado na existência de um referente físico, mas neste caso os desenhos “analógicos” derivam de um processo iniciado com técnicas digitais. Além disso, o analógico é contínuo e aqui é constituído por pedaços assemblados por técnicas digitais e desenhado recorrendo a uma série de procedimentos técnicos (máscaras, fita-cola, moldes em papel vegetal) que subvertem a ideia de execução virtuosa e genialidade artística. O processo de feitura de alguns desenhos ficaram lá para reforçar esse lado “constructivista”. Miguel Branco afirma que criou mecanismos para mostrar que já não se pode acreditar na eloquência da mão humana. Com o reforço destas práticas quer que a mão se torne secundária, se torne mais mecânica, analítica e atomizada. O contemporâneo tem mais a ver com o processo do que com o aspecto do produto final. Por isso há esta constante reiteração dos modos de manufactura destes desenhos: os cantos incompletos, as formas geométricas que se sobrepõem, as fitas-colas a reservar espaços não trabalhados, os desiguais tons de grafite a mostrar diferentes estágios de trabalho num mesmo desenho. À medida que progredimos no espaço da galeria, vamos também como que fazendo uma linha temporal. Se na sala de entrada temos o bando de babuínos, nos desenhos das salas seguintes vamos assistindo a uma progressiva humanização. Do espaço da biblioteca passamos ao banho turco, tema de inícios do século XIX e presente na pintura académica francesa da época (aqui chimpanzés substituíram as figuras femininas), enquanto na última sala estão retratos de gorilas e chimpanzés, podendo reconhecer-se referências a algumas obras clássicas (O Pensador, de Rodin, por exemplo). A finalizar a exposição está uma ampliação da moldura que figura no centro da imagem da biblioteca. É uma moldura que não mostra nada, completamente preenchida de negro, cheia e vazia ao mesmo tempo. A moldura, como espaço da representação, já não representa nada. A biblioteca, esse lugar cimeiro do ocidente, repositório de cultura, espaço da racionalidade, foi profanado por seres inconscientes, seres sem linguagem. A moldura vazia, colocada no centro da imagem, qual buraco negro sugador, está também a lembrar-nos que o lugar da arte instituída foi tomado de assalto por todos esses registos menores de representações de animais, pelo grotesco, pelos excrementos, pela degradação ética. Foi invadida pela nossa actualidade. Poderíamos recorrer aqui ao termo zoografia, utilizado por Derrida (De la Grammatologie, 1967) para enfatizar uma certa violência praticada sobre a realidade. Derrida diz-nos que quando se usa a zoografia (representação gráfica ou descrição de animais) convoca-se a morte, quer seja através da representação visual, quer seja através da descrição, pois o que era vivo agora está morto, nunca está lá no momento do questionamento (da representação/evocação). Na zoografia o animal é sempre representado de forma a ser reconhecido como “animal”, como um outro que não um humano, mantido separado através da violência da representação mimética. Se os animais foram das primeiras representações gráficas humanas, ainda hoje essa distinção humanidade/animalidade é um dos traços definidores da cultura ocidental. Será que Miguel Branco, qual “serial killer” contemporâneo que se apropriou da forma de desenhar do século XIX – como o próprio definiu a técnica que usou – pacientemente elaborou as imagens da nossa involução? Liz Vahia é licenciada em Antropologia e doutoranda no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra.
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