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RUI MATOSA SEQUÊNCIA DOS DIAS![]() SOCIEDADE NACIONAL DE BELAS ARTES Rua Barata Salgueiro, 36 1250-044 Lisboa 07 SET - 15 OUT 2022 ![]() ![]()
O espectador contempla as esculturas nas suas múltiplas possibilidades no espaço, expandindo através do silêncio, do tempo, da matéria e da cor, o invisível. O escultor apela a uma construção de um sistema de signos que se manifestam temporalmente, enquanto escala de valor, tonalidade e leveza. Entre o peso e a ligeireza, do ferro à ferrugem, da matéria à cor, Rui Matos envolve-nos, enquanto sujeitos, a um caminho que fora percorrido ao longo de 34 anos do seu trabalho através das suas 34 obras plásticas, tal como especificou o curador Manuel Costa Cabral. O tempo e o espaço marcam um compasso tímbrico da sensação. Ou melhor, o ritmo de “pesados silêncios / (nas) sombras brancas” como citou Eva Mendes, na folha de sala (2022) da exposição na Sociedade Nacional de Belas Artes. Rui Matos desenha e redesenha as esculturas em linhas finas e delicadas como elegantes apontamentos arquitectónicos, sussurrando sobre o mistério de todas as coisas. Em contraponto, rasgam no espaço, grandes obras escultóricas, as narrativas d’ A Sequência dos Dias, 2019. Como actos de sensibilidade estética, as esculturas compõem novas linguagens, em que a palavra suspensa incide na penumbra do espaço. No silêncio e no vazio, o espectador é projetado para uma jornada sobre as origens da criação cujas dimensões desconhecidas antecedem aos mitos e à palavra.
Rui Matos, Contra a Natureza (2016). Ferro pintado, 128x315x100cm.
Intuímos, enquanto espectadores, a presença da origem. A linguagem e a escultura unificam-se, criando, assim, a alusão da transformação da matéria com a “não-palavra”. A obra escultórica de Rui Matos torna-se, assim, uma “obra-enquanto-processo”, segundo Mertens (1983) a designou: “Uma obra torna-se um processo quando se refere somente a si mesma” (p.89). O escultor, tal como um músico, gera no processo da linguagem uma estrutura compositiva aberta entre o resultado sonoro/visual e a performance compositiva. Nestas narrativas, desenvolvem-se tensões a serem resolvidas estruturalmente em torno da busca da abstração na essência da natureza. Segundo John Cage, as suas composições são “uma forma de acordar para a vida em que vivemos, que é tão excelente uma vez que colocamos nossas mentes e desejos fora do seu caminho para que opere à sua própria vontade” (Cage citado por Nyman, 1999, p. 26). Operando, assim, numa semelhante abstração intrínseca à natureza, cuja “gramática” se revela particularmente universal, o escultor interliga dois sistemas, o do geométrico-matemático com o da linguagem primordial. Desdobrando numa múltipla literacia visual, o artista comunica através do material o seu discurso estético, movimentando-se da harmonia ao ritmo, do contraponto da abstração à narração. A matéria, enquanto ferro, comunica com o observador. Num compromisso de constante diálogo entre sujeito e objeto. Rompe-se em sequências de múltiplas narrativas que se dirigem ao espectador, partilhando na matéria e no corpo como formas delicadas e composições escultóricas, ora em pedra ora em gesso, que se rasgam em ferro pequenas miniaturas de cidades e ambientes íntimos. Vislumbramos, assim, num jogo dicotómico de escala, em que o pequeno contradiz o grande. A cor, a não-cor. A matéria, a essência. O peso, a leveza. A rudeza, a delicadeza. Através da expressividade, entrelaçam-se as linhas nas formas numa demanda silenciosa da natureza. O jogo continua na descoberta do ser, entre a linguagem primordial e a memória, recorda-nos, assim, o que diria Agustina Bessa-Luís (2004): “Porque as memórias procriam como se fossem pessoas vivas. Acreditem que sim e passamos ao capítulo seguinte.” Na exposição sequência dos dias, Rui Matos modela a memória por estar ligada a esse lado mais vivo do ser, a realidade interior de cada um, e, porventura, por se revelar como algo de mais íntimo e misterioso. Segundo Proust, em Le temps retrouvé (1954, p. 885): “le passé dont les choses gardent l’essence et l’avenir où elles nous incitent à le goûter de nouveau”. A memória é, para o escritor francês, também involuntária, quase como uma dimensão metafísica. Ela emerge à superfície como um deslumbramento da nossa própria “essência”. Do passado, torna-se presente. Ou por outras palavras, o pintor Delacroix já nos tinha oferecido semelhante ideia:
Un souvenir est un fragment de vie personnelle dont l'évocation tend à la réactivation du moi passé. Mais le moi passé commence par se refaire présent avant de s'évoquer comme passé. Il déborde [...] le présent qui l'évoque. (Delacroix, 1934, p. 120).
Na presente exposição, Rui Matos procura essa descoberta interior, abrindo uma outra via para além da existência do tempo, submetendo a repetição constante na transformação da memória, mas que se modifica através de um gesto subtil e depurado na matéria. Incorpora, desta forma, nos visíveis vestígios e nas memórias do ser, a própria alegoria da vida. Assim, lembramos as palavras de Rui Matos (2019) “Cada escultura é a construção de um novo ser que me foi devolvido pela transformação que a memória em mim sofreu.” Através dessa transformação, contemplamos os seus mundos imaginários e a memória “arquétipa” do passado longínquo.
Joana Consiglieri
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