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RUDI BRITOHORA DE FERRO![]() BALCONY RUA CORONEL BENTO ROMA 12 A 16 MAR - 06 MAI 2023 ![]() ![]()
Na inauguração desta exposição, e noutros momentos, ouvi ser dito “Rudi, o melhor pintor desta geração!”. Aparece-me uma certa aflição com esta frase, sem sombra de dúvida lançada com um entusiasmo de que também partilho. É admirável a continuidade de uma prática onde se pressente o trajecto, um lastro de pintura a pintura, que vai ondulando entre estados anímicos. Já lá irei, à admiração e surpresa. Por agora, e acompanhada de um texto de Ursula Le Guin - “A ficção como cesta: uma teoria” traduzido e editado recentemente pela Dois Dias Edições na sua versão portuguesa - , onde é expressa uma celebração da cesta como a derradeira ferramenta ou utensílio de subsistência, os recipientes e contentores como sustento de uma ideia de humano. Sem palco e também sem heróis. Sem heróis é menos entusiasmante contar uma história; colher bagos e carregá-los num saco é menos impressionante do que a descrição da perseguição de uma presa, dos adjectivos usados para o cheiro a sangue e para a vitória da caça. Interessa-nos para este ponto isto, a ideia que me fez ligar a cesta à consideração sobre a figura de Rudi, O pintor. Tenho, por princípio, aversão à visão da criação artística enquanto competição - uma corrida para alcançar um pódio de... sucesso, fama? Parece-me justa a admissão de que o trabalho artístico, mesmo o de execução individual, é colectivo e nasce da absorção e da vivência de outros e outras que nos rodeiam. Resulta da troca de experiências, do contar e partilhar de histórias vividas, mais ou menos heróicas, das sugestões e sugestionamentos [porque não, desdobrar?] de exposições, músicas e livros apreciados. E, por fim, da pertença a uma geração, que define um plano histórico comum de experiências e características, apesar do acrescento seccional de camadas que não podemos desconsiderar. Neste seguimento, apetece-me corrigir esta frase ouvida, e dizer, de forma menos heróica, que o impressionante trabalho do Rudi se encontra num grupo alargado de excelsos pintores da sua geração, segmentados em aptidões e afinidades. Esquecendo-me de muitos, e admitindo o meu desconhecimento, colho para esta cesta muitos nomes que têm vindo a ser referidos e mapeados nesta mesma magazine.
Vista da exposição Hora de Ferro de Rudi Brito. © João Neves / Cortesia Balcony.
Voltando ao início de admiração e surpresa. Hora de Ferro é o título da exposição individual de Rudi Brito inaugurada a 16 de Março na Balcony - Contemporary Art Gallery e patente até 06 de Maio (visitem!). Esta hora, parafraseando as palavras de Leylâ Gediz que assina o texto de introdução a esta exposição, é o crepúsculo imaginário que estas pinturas representam e é inspirada na expressão francesa “entre cão e lobo” ou hora azul, um período de transição de luz, onde sujidade, quietude, violência e prata se reúnem. Não só este título, mas também a sua contextualização por parte de Leylâ, me recordou um outro escrito, desta vez de Italo Calvino no ponto 1.3.1 do livro Palomar: A lua da tarde. Palomar, título e personagem, vela a lua da tarde até que esta se sustente, até que não haja dúvidas de que esta já não é da tarde, mas da noite, e que não necessita mais de auxílio ou vigília. A lua da tarde é o momento ténue da lua, em que não é ainda certo que ela chegará inteira ou plena à noite onde a esperámos, indiferentes. A lua da tarde é “frágil e pálida, franzina” inscrita num céu “muito compacto e concreto”, onde a “incerteza é acentuada pela irregularidade da figura”. Estes recortes das palavras de Calvino poderiam ser também aplicados a uma parte da pintura de Rudi. A fragilidade inscrita sobre algo sólido, bruto, onde as sucessivas imagens, trazidas a um só plano sem profundidade nos dão a ver as irregularidades das figuras, temas ou motivos, e uma certa incerteza que é também cuidado, é também respeito e carinho para com as imagens, as cores e a matéria. Se a imagem geral desta exposição nos dá a ver elementos repetidos que surgem e se escondem ao longo de cada uma das pinturas, como as grades, as grelhas, os espinhos, as flores... Como se estes voassem entre cada uma delas e nos dessem, numa linha de tempo, equações para a sua repetição. Se as segmentações de planos nos trazem pautas de divisão de uma matemática sensível, se as cores nos extasiam pedaço a pedacinho, e se uma certa alucinação nos deslumbra até mesmo antes de vermos o herói; uma destas pinturas deu-me mais ainda. Como um culminar de uma prática, no fim do trajecto da exposição [descer, direita, direita, direita, direita, frente], a última pintura que vi lembrou-me os corpos estendidos e entrecruzados de Luís Dourdil, pintor português autodidata. Numa parte da sua pintura, talvez a menos aclamada, aparece-nos a planificação dos membros, assim como uma paleta rósea, delicodoce, como uma tendência para uma abstracção sonhada ou sonhadora. Também Rudi nesta pintura - e em contraste com outras desta mesma exposição, muito mais acesas e frenéticas - nos dá espaço para respirar dentro do plano; o esquema à mostra, a pele da pintura com as ossadas à vista. As velas e as flores, como temas repetidos e recorrentes, e um ainda-não rosto, um ainda-sim de bota de criança. Parece-me um cair da Primavera, um correr terno para memórias gastas de uma infância feliz.
Vista da exposição Hora de Ferro de Rudi Brito. © João Neves / Cortesia Balcony.
Não sei ainda se sobre a pintura se pode falar, se para acompanhar uma pintura se tem de acompanhar à letra o vento que ela traz, se o espírito sensível impregnado nelas as torna vivas, se há uma única pintura recortada à mão ou um milhão delas à procura dos seus caminhos, não sei se a pintura está moribunda, perdida ou precária como nós, se ainda resiste e dá cotoveladas ao aprisionamento, como nós, se a emoção musical de Rudi deve ser traduzida na palavra, ou apenas descrita, depois da contemplação. Ainda não sei se para a pintura a palavra nos basta, para além do conselho de que a vejam no lugar onde vive agora, entre a galeria e a rua. Por não saber, que não se ache outra coisa que não que este texto assina uma surpresa entusiasta face ao corpo de trabalho de Rudi Brito, uma nota de consideração à exposição vista, e uma curta e limitada descrição da experiência de a visitar.
Catarina Real (Barcelos, 1992) Trabalha na intersecção entre a prática artística e a investigação teórica nos campos expandidos da pintura, escrita e coreografia; maioritariamente em projectos colaborativos de longa duração. É doutoranda do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho com uma investigação que cruza arte, amor e capital. Encontra-se em desenvolvimento da Terapia da Cor, prática aplicada entre teoria da cor, arte postal e intuição coreográfica.
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