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CRISTINA ATAÍDEA TERRA AINDA É REDONDA?MNAC - MUSEU DO CHIADO Rua Serpa Pinto, 4 1200-444 Lisboa 05 JUL - 01 OUT 2023
Earth, my likeness, Whitman, W. (2006), p. 101
A Terra ainda é redonda? Pergunta Cristina Ataíde. Um sentimento contraditório que agita a consciência. Refletimos sobre a existência do ser, do corpo, da coisa, e, por sua vez, a ausência de Gaia, o silêncio da Terra e do Universo. Uma impossibilidade de querer abarcar o invisível, que se anuncia como um vislumbre no discurso estético. Um devaneio entre caminhos. Uma impressão em vermelho. Entre desenhos/pinturas, esculturas, objetos-naturais, instalações e vídeos, Cristina Ataíde delineia trilhos pela natureza, respeita ritmos, movimentos e energias, como diria curador David Barro (2023): A artista entrega-se às formas a partir de uma profunda consciência do tempo e do espaço, abraçando os seus ritmos. Nesta mostra, que apresenta várias obras criadas de propósito para o espaço da exposição, a artista ilustra a transformação que tem desenvolvido no contexto de uma observação atenta e cuidada da natureza mais crua. O pó vermelho unifica o ser com a Terra, dilui-se na natureza, na água e na obra de arte. O gesto que se torna a metonímia de todo o corpo, entrelaça o ser com o não-ser, o humano com o não-humano, o corpo com a coisa em si, a natureza. Uma dialética de opostos, cujo movimento se agrega em múltiplas intensidades de formas e de energias. Tudo se transforma, flui livremente no espaço-tempo. Sente-se. A cor vermelha sinaliza a presença da artista na Terra, um vestígio do ser. Apresentam-se sinais do lugar que rasgam o interior do ser, em gestos ausentes, contemplamos formas escultóricas arredondadas na série Pedras do Mundo, 2023. Lembra-nos rituais ancestrais que enaltecem a Mother Earth, a Mãe Natureza, porventura, um símbolo do nascimento, a origem na qual tudo começa. O pó testemunha o registo efémero em que tudo se desvanece na impermanência do tempo. A Terra transforma-se no corpo, o corpo na Terra. No espaço, ecoa Gaia, a grande Deusa da Terra, da mitologia grega, uma expressão de um grito sem som, numa tentativa de último sopro, uma ressonância cuja intensidade provoca o questionamento - A Terra ainda é redonda? A resposta ressoa na nossa consciência, da qual surgirá uma outra questão: Que foi que já silenciou as vozes da primavera em inúmeras cidades dos Estados Unidos? Interroga Rachel Carson, na sua obra Silent Spring, 1962, uma visão que nos parece tão distante e continua a ser tão pertinente: Mudanças químicas sutis, e altamente importantes, se encontram continuamente em processo; tais mudanças convertem elementos, derivados do ar e da água, a forma adequadas para que as plantas deles se utilizem. Em todas estas mudanças, os organismos vivos é que são os agentes vivos. (Carson [s/d] Primavera Silenciosa, p. 64) Em A Terra ainda é redonda? de Cristina Ataíde, descortina-se vários caminhos do ser que assombram a Terra. Numa experiência fluida do ser perante o outro, a artista desperta-o pela poiesis aos desastres ecológicos e à ação destrutiva humana, que continuam a permanecer imersos na resposta. O ser e o outro escapam-nos ao entendimento do senso-comum, transmutam-se em pó vermelho nas suas diferentes obras de arte, como um memento ténue da passagem pela Terra, uma espécie de memória líquida ou pigmentada que se dissolve na paisagem, na água, no rio, na terra ou no vento.
© Eduardo Sousa Ribeiro
O ser esvanece na existência, funde-se na unidade, reclama-se o lugar, enquanto casa - oikos. O ser incorpora o lugar na Terra. De certo modo, expressa a conceção espácio-temporal, em que o movimento se apresenta quase circular, mas impermanente, oscilando entre os dois polos, numa dicotomia entre exterior e interior, côncavo e convexo, alto e baixo, baixo e alto, forma e vazio, cor e não-cor, ser e não-ser. Um movimento constante que se converte numa onda semicircular, é curvo. O vermelho abraça-nos, sente-se, envolve-nos de intensidade, circunscreve-nos no espaço e no tempo. Todavia, através dele, o vermelho, abre-nos caminhos e possibilidades de perceções estéticas – o vermelho como paisagem - uma densidade em que interior se expande para o exterior e o exterior se materializa no ser. O espectador, assim, contempla o outro. A fim de sentir o fluxo e o movimento, a artista leva-nos a interagir no espaço. O espectador devaneia pela sala de exposição, a sala dos fornos, corporiza a cor vermelha na natureza, que se dissipa no chão. Através do gesto mergulhamos no lugar, uma visão fluida da natureza, marca um ritmo, dia após dia, pó em pó, reinicia o movimento em La Couleur du Jour, vídeo, 2013-2022. O espectador é transportado para o exterior (natureza), embora esteja no interior (sala), a artista convoca-nos a uma experiência do lugar, in situ, e um sentimento psicológico do ser. Através da deambulação, balançamos numa experiência da deriva pela paisagem, o lugar do ser através da cor vermelha, o pó como gesto, uma miragem refletora de uma manifestação de um ritual. Tudo gera mutuamente, completam-se ritmos, numa pura sensação, meditamos na essência de todas as coisas.
Porque o Ser e o Não-Ser geram-se mutuamente. (Lao-Tzu [2009] Tao-Te King, p. 38)
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