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MARIANA CALÓ E FRANCISCO QUEIMADELA, COM MATTIA DENISSE E VON CALHAU!CARMA INVERTIDO![]() CONVENTO DOS CAPUCHOS Caparica 19 JUL - 25 OUT 2025 ![]() ![]()
O Carma é ao mesmo tempo físico e espiritual. Diz respeito àquilo que é feito e às suas consequências. Como um princípio para nós hoje básico da física, qual seja, a ação e reação, o carma precisa, para realizar-se, do trabalho mais fundamental do tempo e nos mostra que dele é impossível fugir. É no Convento dos Capuchos, em Almada, que o Carma Invertido está instalado. Edificado em 1558 e pertencente à Ordem Franciscana, o convento é caracterizado pela elevada simplicidade nos traços e pela inserção orgânica com o território. Rochas são usadas como paredes e o seu declive natural e seus afloramentos rochosos são aproveitados para as celas e miradouros. A Ordem Franciscana, conhecida pelo seu voto de pobreza, tem também na natureza um aspecto central da sua relação com a espiritualidade: a natureza não é vista como recurso ou cenário: a natureza é um meio de encontro com Deus.
Agora Ha Retiro Des-Cuidados, Mattia Denisse, 2025. Pintura Mural - Vista da exposição Carma Invertido, Mariana Caló e Francisco Queimadela. Artistas convidados: Mattia Denisse e Von Calhau!. Um projeto Contemporânea no Convento dos Capuchos, Caparica. Curadoria Susana Ventura. Fotos: Carbonara.st. Cortesia dos artistas e Contemporânea.
Nesse contexto, adentramos na exposição. A primeira sala apresenta um conjunto de pinturas semelhantes que parecem ossos ou runas: elas aparecerão em outros espaços do convento e trata-se de pequenas abstrações que quase alcançam formas definitivas ou símbolos. Ao fundo, na mesma sala, uma janela interna deixa entrever um conjunto de reproduções naif de menires. Com referências evidentes às práticas pagãs, o exercício artístico se revela, já na primeira sala, como um experimento sobre o humano e sobre o tempo. Convoca e figura um antigo espaço de ritual e santuário que marcava uma relação mais orgânica do humano com os elementos do cosmo. Os menires são feitos, talvez, de esferovite e, por isso, há qualquer coisa de experimental e de frágil nessas construções. Ao lado das pinturas mezzo-abstratas, mezzo-simbólicas, ficamos a pairar nas nuvens de uma eventual nostalgia naif, com a sugestão de qualquer alfabeto ainda não encontrado ou não criado, uma sala ao mesmo tempo de vestígios e criações de um tempo possível ou perdido. A fragilidade da construção dos menires, entretanto, deixa qualquer coisa em aberto, dada a materialidade da obra que sugere uma transitoriedade, uma fragilidade ou uma precariedade, que se articula com um tempo mais curto, mais rápido – e eventualmente com a banalização do sentido das coisas. Assim acabam por se revelar, na primeira sala, obras que, propositadamente ou não, expressam uma espécie de melancolia de final de mundo, onde o romantismo em relação ao passado se alia a uma condição contemporânea em que tudo, pela fragilidade ou desconexão com a história, acaba por banalizar ou descontextualizar sentidos comunitários. Se crítica ou expressão impensada do contemporâneo, a referência clara às práticas astronómicas varridas pelo tempo e pela ciência, fazem-nos inevitavelmente lembrar um tempo em que a natureza encontrava frequentemente o seu filho perdido, o homem [1], e a ele se ligava com mais força. De toda a forma, pela materialidade das obras, tem a capacidade de nos convocar para qualquer espaço temporal incômodo, que talvez seja o presente. No primeiro andar, entretanto, a tecnologia contemporânea já se revela. Estão lá instalados um conjunto de seis dispositivos fílmicos que criam projeções rotativas em que, novamente, o abstrato, em uma tentativa pouco definida de formas, faz novamente a sua aparição: dessa vez projectam uma espécie de teatro de sombras, uns simulacros daquilo que seriam, talvez, folhas. Enquanto isso um outro dispositivo projeta um vídeo que retrata a rotina, o dia, a visita – não se sabe bem – de umas poucas pessoas em uma construção medianamente grandiosa no que parece ser um terreno desértico. Ao lado, um outro filme, dessa vez retratando uma vida microscópica ou o desenvolvimento microscópico de algo que não sabemos bem definir.
Vista da exposição Carma Invertido, Mariana Caló e Francisco Queimadela. Artistas convidados: Mattia Denisse e Von Calhau!. Um projeto Contemporânea no Convento dos Capuchos, Caparica. Curadoria Susana Ventura. Fotos: Carbonara.st. Cortesia dos artistas e Contemporânea.
Por último, na última sala, dois filmes, um abaixo do outro. Um deles projeta um disco que roda, com o símbolo da toxicidade nuclear, dentro de uma mata. Tem um ar fantasmagórico e o objeto roda como se se tratasse de um aviso, um prenúncio ou um vestígio. E por cima, um outro vídeo, em que um homem descreve algumas interações suas com animais diversos – uma raposa, um lavagante – em voz-off sobre imagens variadas. Sua descrição do encontro com esses animais tem qualquer coisa de primário: a estranheza é a marca que se inscreve em um encontro com um ser que parece tomar o ar de outridade absoluta, mas também revelar a cisão fundamental entre o humano e o seu meio, onde o animal aparece como o mais estrangeiro dos estrangeiros.
Efeito Orla, Mariana Calo? e Francisco Queimadela, 2013. Instalac?a?o composta por dois canais si?ncronos e justapostos verticalmente, cor, som, 14’40’ - Vista da exposição Carma Invertido, Mariana Caló e Francisco Queimadela. Artistas convidados: Mattia Denisse e Von Calhau!. Um projeto Contemporânea no Convento dos Capuchos, Caparica. Curadoria Susana Ventura. Fotos: Carbonara.st. Cortesia dos artistas e Contemporânea. As imagens projetadas e o facto do vídeo estar acompanhado, de certa forma, pelo vídeo abaixo, que carrega certa fantasmagoria, sugerem um mistério que deixa vestígios, seres estranhos de outridade absoluta, desenhos e cartografias a serem desvendados. Os trabalhos de projeção fílmica, nesse sentido, parecem sugerir que nas aproximações e afastamentos da câmara, mundos maiores e menores são descobertos e criados – que o ponto de vista altera o reconhecimento das coisas e sugere que os vestígios deixados no território pela mão humana variam entre construções arquitetónicas a ambientes nucleares tóxicos. Sinais nossos deixados no mundo. E a arte, é claro, que também partilha da mesma vocação criadora. Tudo é criação, afinal. Nesse sentido mesmo ambíguo da criação cósmica da vida e da criação artística dos sentidos. A relativização e equalização de tudo, entretanto, não seriam um sintoma do nosso tempo? O tema do antropoceno, nesse sentido, parece ser uma referência evidente. Não só por jogar luz ao impacto humano na terra, mas também pela possibilidade ontológica de dilatar a nossa percepção de tempo. Ao conceder-nos um novo sentido espaço-temporal, carregando também uma melancolia característica do fim, reconfigura a nossa percepção do presente. Há qualquer coisa de fundamental nesse exercício, de renovar o presente por meio da revisitação do passado. Mas há ainda qualquer coisa de naif que marca o trabalho, que opera com materiais frágeis, propositadamente ou não, mas também se deixa levar por alguma aleatoridade e experimentalismo. Uma tentativa, parece, de apreender o mistério do cosmos como se fosse um vocabulário perdido – ou de brincar com a percepção entre o próximo e o longínquo, tanto do ponto de vista temporal como do ponto de vista da diferença. Experimenta afinal, dentro da relação humano e território — e joga, entre o passado e o futuro, moedas que tateiam por vezes algumas formas desconexas. No convento dos Capuchos, esse convento da Ordem Franciscana, já sem metafísica, mas com uma arquitetura que o revela, deixa-se ficar, então, até dia 25 de outubro, qualquer tentativa de apreender o tempo e seu mistério, o presente e a sua vocação.
Mariana Varela
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Notas [1] Nietzche em O Nascimento da Tragédia.
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