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MIRIAM CAHNO QUE NOS OLHA![]() MAAT Av. de BrasÃlia, Central Tejo 1300-598 Lisboa 26 JUN - 27 OUT 2025 ![]() Pintar com luz a escuridão![]()
“In the dark times
Aquilo que nos olha e aquilo que é olhado são dois pólos do mesmo núcleo da visão. Encontramo-nos com as coisas e nelas nos entranhamos. De olhos abertos ou fechados o mundo oferece-se à nossa visão, aguardando pela régua, pela caneta, pelo pincel — pela ação. As coisas tornam-se as coisas por meio do nosso olhar: é o nosso olhar que antecede o ato e é ele que mede, na flutuação do tempo, o gesto que lhe procederá. Porque olhar é ver e saber que vê, ele é por isso também a consciência diante d’aquilo que vemos; a responsabilidade de debruçar-nos, com atenção, sobre aquilo que nos aparece à frente. “O que nos olha” é o nome da primeira exposição individual da pintora suíça, Miriam Cahn (Basel, 1949) no MAAT, até dia 27 de outubro de 2025, sob a curadoria de João Pinharanda e Sérgio Mah. A exposição, que conta com um conjunto de 160 quadros e uma sala-instalação, incide de maneira precisa sobre as questões do nosso tempo e inclui trabalhos maioritariamente da sua produção mais recente – não excluídas, entretanto, as obras das décadas de 70, 80 e 90. De maneira geral, Cahn pinta sobre temas contemporâneos e, ao mesmo tempo, longevos: a violência, a guerra, o estupro, a humilhação, a decadência e o horror. Inscreve, ainda, os estados de espírito que acompanham a tragédia humana: medo, pavor, desespero, pânico, sadismo. Na quase totalidade das obras, o corpo aparece como medium central e privilegiado da sua exposição, seja como recetáculo, como perpetuador ou como enigma sensível dos fenómenos da violência. Os estados de espírito macabros que acompanham os quadros figurativos apresentam-nos desde situações violentas até quadros de retratos - de rostos ou corpos. Envolvidos por um continuum de vida a morte, ou, mais precisamente, de destruição e devastação, os quadros nascem e renascem sistematicamente na exposição atravessados por uma melodia semelhante, qual seja, a melodia dos estados horroríficos causados pela guerra, pela decadência do humano e pela imponente violência sádica, indiferente e irresponsável na experiência do nosso tempo. A pintora dedica-se, assim, a pintar o grotesco e o brutal, buscando alcançar o insuportável da experiência humana. A exposição comporta momentos diferentes da sua trajetória e, também por isso, momentos de maior simplicidade e outros de maior aprofundamento técnico.
Miriam Cahn, b.t. 10.05.2012, 2012, pastel e grafite sobre papel, 84 x 70 cm.
Com uma ênfase evidente, entretanto, na pintura figurativa – adquirindo por vezes caracteres infantis, como no caso dos desenhos em grafite e carvão – as salas encontram-se lotadas de acontecimentos e cores. A exposição como um todo veicula um certo excesso, não de informações – porque a forma como os quadros estão dispostos é bastante equilibrada – mas por uma espécie de sobrecarga psíquica sugerida desde o início do percurso, que alcança maioridade ao longo da exposição. A pintora utiliza diferentes formas para alcançar ou expressar a violência e o macabro, das quais se destaca o entrelaçamento do traço figurativo e exímio domínio no uso das cores.
Miriam Cahn, Wesen, 28.05.2018. Óleo sob madeira.
Miriam Cahn, fuck abstraction! (2007-2022).
O corpo aparece na exposição sob diferentes luzes e diferentes traços, revigorando a sua centralidade enquanto suporte da experiência estética e marcando também uma forte componente de género no seu trabalho. Cahn apresenta, nesse contexto sombrio, o corpo precisamente com a sua simples e extraordinária simplicidade: um corpo é um corpo. Ao evocar também as questões relacionadas ao envelhecimento, a pintora figura o corpo feminino precisamente no seu carácter transitório, envelhecido, com as suas veias salientes e as suas formas naturais. A mulher é, aqui, corpo – suporte da experiência e da intervenção do mundo – e também experiência feminina particular: rituais de parto, estupro e violência de género estão presentes na exposição, não descurando do aspecto essencialmente político e muitas vezes heróico de estar viva como mulher. Assim, sob diferentes luzes e diferentes experiências, o corpo aparece e reaparece: opaco ou belo, horroroso ou simples, iluminado ou obscurecido, ele é o caminho central para a experiência da pintora e do humano no mundo — constitui forma privilegiada de figuração e veículo para a vida e a expressão estética. Nesse sentido, profundamente atenta ao nosso tempo, Miriam Cahn apresenta-nos uma exposição sombria que entrelaça ao mesmo tempo a sua experiência enquanto mulher e a tentativa de figurar o não figurativo, de dar contorno à absoluta desfiguração, de retratar o carácter sombrio do nosso tempo. Em um contexto político, económico e histórico em que as guerras, os genocídios e a cumplicidade política com políticas de morte são notícias diárias; em que corredores humanitários são dispostos para que milhares de pessoas caminhem mesmo sem ter para onde ir, despedaçadas de seus territórios e das suas vidas, a entrada no imaginário dessa artista é, no fundo, a entrada na irrealidade do real. Nesse sentido, o trabalho pujante dessa pintora suíça coloca-nos não só diante das suas obras, mas diante das questões fundamentais do nosso tempo, daquilo que não podemos dizer não ver. Lembra-nos, assim, da experiência humana, individual e coletiva, que diz respeito ao compromisso de olharmos o que nos olha, de entranharmo-nos na realidade – de estar presente no nosso tempo e enfrentar as questões ao mesmo tempo contemporâneas e longevas, quase eternas, como as da violência e da guerra, da destruição do outro e da acumulação desenfreada, da vingança e da matança como motores históricos. A partir do corpo, cabe-nos perguntar o que resta do humano, revitalizar a nossa sensibilidade diante de um futuro maquinal que se ergue entre guerras e catástrofes, mas também em meio à indiferença, à hipocrisia e à banalidade. Cabe a nós olhar, sentir e fazer as questões do nosso tempo.
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[1] O quadro em questão foi vandalizado, em 2023, depois de vários grupos de direitos das crianças haverem denunciado a pintura como pornografia infantil e pedirem que ela fosse retirada - tentativa que foi rejeitada pelos tribunais franceses. No mês de maio, um homem idoso, insatisfeito com a suposta representação, vandalizou o quadro com tinta roxa. ![]()
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