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COLECTIVAASCENSÃO: VERS LA LUMIÈREFUNDAÇÃO ARPAD SZENES - VIEIRA DA SILVA Praça das Amoreiras, 56 1250-020 Lisboa 02 OUT - 31 DEZ 2025
Met Amor Cósmico Fose
Fose diz da "sensação subjectiva de luz ou de cor" — ou de uma corruptela de fase, dir-se-ia, artística. Uma fase evolutiva em direção ao derradeiro encontro, num tempo oblíquo, de Chuva Oblíqua, como o da paisagem que o sonho atravessa…
“Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito”.
O olhar estende-se em súplica na pintura. Estamos acompanhados do curador, Nuno Faria, que gentilmente nos faz uma visita guiada, providenciando algumas das suas chaves para esta exposição, como os nomes de trato íntimo entre os artistas, que, sendo mitológicos, desdobram o olhar em pensamento simbólico, i.e., pensamento que une e é jogo entre pares e ímpares em todo o espaço expositivo, outrora Fábrica de Tecidos e Seda — indicação relevante. Eis-nos pois diante de Le retour d’Orphée (1982-86) e a beleza sombria do intrincado da tessitura da elegia de Eurydice, aqui, duplo de Helena Vieira da Silva, que inverte o chamado e é ela, enquanto ninfa, e portanto espectral, quem dos escombros da morte chama pelo amado, Arpad Szenes. Trata-se de uma tessitura silenciosa, já que a voz toma a direção da luz que declina a cor entretecida na tela rumo ao porto — “O porto que sonho é sombrio e pálido” — No generoso acolher da sombra, o abraço da pálida paleta de Arpad. Mas antes, um desenho que faz aparecer o pronome oblíquo contigo. Um pequeno cosmos íntimo; o espaço sideral imaginado e partilhado do ofício, aqui, aberto à dupla presença-ausência. Pintaram juntos as constelações de Le feu d’artifice (1939), cujas faíscas de suas luminosas órbitas forjadas no céu noturno amanhecem em Arpad (1986); são atrito da metamorfose, céu diurno rasgado à noite da alma, aquilo que em nós sente, prestes a revelar as leis cósmicas do reencontro — À flor da pele e do papel. Ao lado de Metamorfoses III (1935), desenho de Arpad Szenes, VI (2016), da série Seres Inefáveis-Brancos. O vocabulário esbarra na parede, no papel e na pele — Nada será como dantes. É oblíquo o tempo, não se expõe ao surdo mundo exterior; tem a medida do ritmo do coração que sustenta a criação de uma paisagem outra, nessa outra direção que demanda outro corpo, renascido de uma radical fotosensiblidade. E este coração já não pertence apenas ao mesmo corpo; é batimento cósmico. Do exterior, da colagem de Sara Sara, testemunhamos o ofício de sustentação da Vida no interior do Real; asas irrompem do espaço pictórico, transcendem-no. O corpo imobilizado, ainda cego, mobiliza os novos membros em traçado de portas pivotantes para o Aberto, a derradeira queda para fora do tempo linear.
E n t r e t a n t o , L’infinit turbulent (1985).
Vers la lumière (1991) — Um tropismo existencial, mas em direção a que luz? À luz possível para este corpo sustentar, no intrincado da sua obliquidade. Está em e-terna partida — Le Départ (1992). Sem um fio condutor, linear, as interrogações turvam o tempo — l’interrogation (1991) — pedindo clareza. E A Luz Entra na Caverna #1 (2014). Como no mito, a Luz convida a sair do ensimesmamento começando por olhar as sombras. O olhar agiganta-se muda aqui de escala; na transição, a aparição dos Seres Inefáveis-Brancos de Sara Sara nesta pintura de Ilda David. As obras desta exposição sustentam um campo; um campo misterioso de ligações do Ser. Ao lado, a clareza dourada verticaliza-se num tetraedro linear; a memória do fogo, à procura da sua profundidade, a outra dimensão. Pode alguém saber o que é a alegria se não lhe por possível re-parar nesta obra de arte, e ir por ela? É Corda trina com nó (2017), de Sara Sara. No vértice, o nó da pyr…Pirotécnico: Le signes du zoodiaque (1939), de Vieira da Silva, pintados no mesmo ano de Le feu d’artifice. Já ali figuravam alguns arquétipos zodiacais…Leão, peixes, caranguejo, juntamente com a música das esferas. O poema Chuva Oblíqua do seu gémeo astrológico foi publicado pela primeira vez em 1915 na revista Orpheu…O Orphée da parede oposta é outro, bem sabemos. Uma textualidade no espaço expositivo torna-se presente ao visitante, porventura herdada dos seus tempos de Fábrica, lembrando que texto foi outrora tecido. Ou, como na astrologia — que tanto interessou Fernando Pessoa —, oposições, trígonos, quadraturas, sextis…As linhas de força da mandala astrológica; um saber entretecido pelos aspetos tensos e/ou favoráveis formados entre planetas (Macrocosmos), duplos das nossas pulsões psíquicas (microcosmos) — Aqui, entre obras, no espaço criado. O que a mim me interessa é que no entretecimento dos aspetos das obras experimento o facto sensível — a tessitura sinestésica — que a soma das partes é incomensuravelmente maior que o todo; que na passagem por cada obra é-me dado a ver que o Cosmos está, de facto, em expansão — como eu, como nós —, na relação com o mundo interno em-cada-um-de-nós. Rui Toscano: Epsilon Indi Bb (2017). Le bout du monde (1986) de Vieira da Silva é um lugar difícil de chegar. Esta é uma dessas raras exposições cuja cuidadosa curadoria é facilitadora de lugares que não existiam até então enquanto experiência íntima…Ainda assim, tão difíceis de chegar…Por assim ser, é preciso voltar à tessitura enquanto extensão de voz que prolonga o corpo até ao fim do mundo para que (o) outro comece, já sem mim a obstruir o meu próprio devir alteridade. Mas tessitura é também textura e texto indecifrável, resistência da pele inversa sobre o papel, intrincado vital de Si Mesmo na demora do registo das coisas — É preciso com precisão voltar ao desenho: Uma série; Estudos (2001), por Jorge Feijão. Nós, das árvores. Mais implicações, menos explicações. Um bosque; uma emboscada de autorias de artistas. Antes de entrar, um dragoeiro (entre outras espécies por reconhecer) de Miguel Rondon, de Vieira da Silva e Ana Hatherly. Sem um elucidário de artistas com nomes científicos inscritos em legendas, as árvores de Arpad Szenes — Les Taillis, e La Forêt (1920) — podem confundir-se com as árvores de Maria Capelo, que no limite da sua frugalidade pictórica parecem estar sob o efeito oracular de um persistente vento sibiliante…São haikus; podadas formas poéticas. Eis que descobrimos, neste instante de misteriosa obscuridade, outras árvores de Arpad Szenes e Maria Capelo, bem como de Vieira da Silva e Ilda David. No bosque, trilhos inexplicáveis. Helena pinta no atelier, é observada por Arpad, que a desenha; e, por uma daquelas árvores antigas (Dans l’atelier, 1945). Conhece-lhes o mais delicado gesto: La tentation des arbres (1950-55), talvez pela mão também lhe escapar para acariciar, enquanto pinta, aparentemente séssil. Ressurge nos últimos desenhos do bosque, por Ilda David, um díptico (Dobra, 2024); na continuidade de um ramo, que é anagrama de amor. E, assim, também a árvore presa se libertou da interdição amorosa. (L’arbre en prision, 1932) — Evaporam-se misteriosamente para ressurgir noutro mistério, talvez da fé…
Antes de ressurgir, Evaporação XIV, 2003, Ilda David.
Na galeria de acesso às demais salas do Museu, um excerto de Metamorfoses, de Emanuele Coccia, torna novamente presente que esta é a quinta exposição — o “último capítulo” — de um projeto curatorial mais amplo, intitulado 331 Amoreiras em Metamorfose. O quinto capítulo começa por interpelar o luto de Helena Vieira da Silva; a perda do seu companheiro de vida e ofício, co-anfitrião deste espaço; desta grande casa. É sabido que depois da sua morte, a pintora nunca se referiu ao parceiro conjugando a sua existência no passado. Não nos cabe — não tem cabimento — indagar sobre tal dor, mas sim empreender a consciência no descabimento da Vida. Noutro momento do texto citado, Coccia refere que cada um de nós carrega a “infância do Universo”, é portador de vida que não possui o ajuste perfeito ao corpo que habita; vida que está em devir outro — outro corpo. Esse excesso de vida procura novas alianças com outros micro e macro corpos, é inconformável quanto aos limites do corpo que a contêm [1]. Porventura o mesmo filão de vida que participa da experiência de fluxo, nos termos que Mihaly Csikszentmihalyi a descreveu, recolhendo testemunhos essencialmente de artistas. Aí onde o presente é experienciado enquanto eternidade extática, fazendo aparecer a constelação de gestos; onde temporalidades distintas se coalizam e onde Arpad (Peinture, 1973) está — e não, esteve — ao lado de Inez Teixeira (No vazio da onda, 2014), como em tantos encontros desta exposição. Na sua última fase artística, Helena aproxima-se do companheiro, da sua paleta; sob o nosso olhar, como esta exposição dá a ver, talvez nunca tenham estado tão perto desse porto pálido, em tão cósmico contacto — Helena continua a pintar. A vida é sempre mais; como o intrincado da sua pintura também a fita de ADN do corpo humano, uma vez desenrolada, tornaria possível ir e voltar ao sol 600 vezes. São as distâncias astronómicas que possuímos, essa vida que nos excede e ascende…Bem mais próxima, a lua e a sua atração gravitacional sobre todas as águas; inclusive as ondas das águas de cor (leia-se também cór). Ao lado do excerto de Coccia, uma série de Inez Teixeira — Mensageiro cósmico —, segundo o curador, exposta pela primeira vez. Entre os mistérios das grandezas celulares e solares, a aparição de vibrantes nebulosas. Não raro, quem trabalha com aguarela, medium que se esquiva ao controlo, sentir-se testemunha, em fluxo, e portanto em estado duplamente de maravilhamento e ausência, de uma força outra atuante sobre o papel; uma imensa Presença. Teria Akhenaton intuído a grandeza solar no seu próprio corpo, a ponto de fazer tábua rasa a toda uma tradição religiosa politeísta milenar e instituir no tempo consagrado à sua existência apenas o sol como o único deus, seu duplo, ou seria apenas a estratégia política que há muito conhecemos? Uma série de 12 desenhos intitulada Aton (2020), por Alexandre Conefrey, partilham do mesmo espaço dos estudos de Helena Vieira da Silva para Painel da sacristia da capela do Palácio de Santos, em Lisboa. Não se trata de resgatar a memória da continuidade do monotéismo, aqui, com o catolicismo, mas de uma união cósmica luminosa, pela representação de Aton — um disco solar de onde se estendiam raios que terminavam em mãos que abençoavam o faraó herético —, e, parafraseando Kafka, a arte que como uma oração é uma mão estendida na escuridão, procurando algum toque de graça, que possa transformá-la numa mão que concede dons. Em suma: Os raios de Aton e os da Custódia de Helena Vieira da Silva co-incidem em acontecimento figurativo do Ser. Notre Dame du Rosaire (1983). Helena retorna à árvore…Os vultos ao sol daquelas árvores antigas — Será de fato a nossa existência a intensa sombra da nossa essência? Carolina Vieira, Essência 2025. Um vulto na mesma sala, uma escultura de mar…more, de Manuel Rosa. Não é a Mulher de Ló, petrificada no sal do seu pranto, pelo passado que deixa atrás. É Ligeia II (2025); a sereia da tessitura de voz clara, ou o retorno da esposa espectral do conto de Edgar Allan Poe. Ou até um Ser Branco-Inefável, ou ainda, Helena e o seu intricado espírito "por onde os navios passam por dentro dos troncos das árvores / Com uma horizontalidade vertical". Ligeia pontua verticalmente o espaço conduzindo a atenção para as pinturas de Arpad, também elas verticais — Mér, étude (1979), Deux traits orange et jaune (1977-79), Peinture (1974) ou Eclipse (1962)…Helena assombra-o; está próxima, New Amsterdam I e II (1970), desde sempre.
"E passa para o outro lado da minha alma…"
Outra colagem de Sara Sara da mesma série. As mesmas convulsões internas resultam agora em dois fragmentos tumulares; a legenda indica que são o resto de um bloco de mármore de Vila Viçosa. Mas talvez ao invés de uma partida, anunciem uma chegada: A chegada a Paysage sur triangle (1977-79), de Arpad Szenes, cuja aparição neste campo de forças não surge apenas do diálogo da pintura com o bordado de Fernando Marques Penteado, Abelhas, (2021). Não se trata, portanto, de profanação; é a manifestação do Sagrado: "Para o artista, amar é 'prodigalizar formas'" (Mª Gabriela Llansol) [2]… Prodigalizar com rigor, sem disperdício; é libertá-las de tudo o que não são. Há que treinar a virtualidade no mais profundo Real — a virtualidade incomputável. Desse treino, i.e., dessa escuta, fala-nos a experiência imersiva proposta por Francisco Janes — deveras distante da experiência proposta por algum entretenimento imersivo com lugar nas imediações do número 331 do Jardim das Amoreiras. A exposição ganha aqui, pelo som, uma ampliação do seu espaço. O videasta criou a partir de grande parte do seu repertório uma instalação projetada em contínuo no auditório do Museu, permitindo ao visitante da exposição, como refere, assistir a cinco segundos ou cinco minutos, pois cada experiência tem o seu valor próprio. Há uma confiança no Real com lugar para lá do tempo cronológico; o acon-tecer do kairós: Nos breves instantes em que estivemos no auditório assistimos a um plano em que dois anéis se unem num só. Trata-se — explica-nos Francisco — de um efeito próprio das lentes catadióptricas, destinadas a telescópios — às grandes distâncias—, por si usadas naquele vídeo em particular, pois são ‘cegas ao centro’. Isso de imagem, o seu aberto; o que a câmara não resolveu, foi o suficiente para evocar a união cósmica de Arpad e Helena, proposta pela curadoria. Retorno ao início da exposição, e ainda no piso inferior — lembrando que é possível outra leitura desta obra a partir do piso superior; um outro alçado. Estou diante de Atelier, Lisbonne (2023) por Sara & André, uma escultura habitável criada pela dupla de artistas, a partir da pintura homónima de Vieira da Silva, a convite de Bruno Humberto, no contexto de uma programação anterior, intitulada Vieira da Silva em Festa. A primeira vez que entrei em contacto com esta pintura, numa ilustração de um livro, lembro-me do corpo me projetar de imediato para a memória infantil das cambalhotas, para a frente e sentada para trás, nas barras do recreio da escola — coisa que só ganhei confiança para fazer quando sozinha. Esse treino serve a virtualidade com que me aproximo dos objetos artísticos; sozinha, num misto de confiança e incerteza — risco cúmplice. A espacialização de Atelier Lisbonne tem qualquer coisa do Promenraum de El Lissitsky (1923). Lembra-me da responsabilidade enquanto visitante de ativar as obra de arte; o espaço — ter uma experiência, na sua dupla forma; subjectiva e objetiva. Experiência essa em constelação com outros espaços e temporalidades individuais e coletivas. A escultura da dupla não possui tantos elementos geométricos a dobrar o espaço pré existente como Promenraum, mas é jogo e basta-me a memória das cambalhotas — a "infância do Universo" — para curvar o espaço-tempo e encontrar-me, também eu, com Helena e Arpad — "para bem compreender que o problema de criar é insolúvel, é necessário estar no acto de criar". (Mª Gabriela Llansol).
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Notas: [1] Emanuel Coccia, Metamorfoses, Rio de Janeiro, Dantes, 2020, p.111. [2] Maria Gabriela Llansol, "A Arte é uma Metafísica Experimental", in João Barrento, A carne da cor e da imagem — Os desenhos de Maria Gabriela Llansol, Lisboa, Mariposa Azual, 2025, p.28. [3] Maria Gabriela Llansol, op cit., p. 29.
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Madalena Folgado é formada em arquitetura, mas a sua abordagem de investigação fenomenólogica — o contrário do controlar e prever da prática de projeto em arquitetura — fê-la organicamente deslocar-se para contextos artísticos passíveis de acolher processualidades híbridas, constelares/ anacrónicas. Neste sentido, interessa-lhe a construção pela montagem — e também montagem em tempo real —, de espaços para reme-morar e re-membrar Corpos de Imagens enquanto Corpos de Afetos, na charneira entre o individual e o coletivo, de modo íntegro e intrincado — Do com-texto ao espaço físico; o Lugar enquanto combinação de memória e espaço, com potencial performativo emergente. O acaso como elemento por excelência da arte é o grande catalisador da sua prática híbrida.
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