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COLECTIVAWHEN THE WORLD IS FULL OF NOISEESPAÇO.ARTE LG dos Carvajaes 7370-047 Campo Maior 20 SET - 07 DEZ 2025
No meio do vasto e sereno Alentejo, de campos cobertos por uma capa de silêncio, surge uma exposição que desafia esta calmaria. “When the world is full of noise” [1], com curadoria de Orlando Franco, instala-se num intervalo onde o ruído se converte em presença, convocando-nos a escutar o que vibra por baixo da superfície do visível. Uma inscrição dourada anuncia uma promessa interrompida: “The secret for eternal life is”... Vítor Reis lança um segredo, com um tom de esperança, que rapidamente se transforma e projeta em nós, espectadores ávidos, uma inquietação quase infantil - como se houvesse realmente uma receita mágica para essa tão desejada eternidade.
Vitor Reis, The Secret For Eternal Life Is, 2025. © Orlando Franco
A dor estridente e vermelha que ecoa pelo espaço, ao observarmos o sangue escorrer de um dedo em ferida, contrasta com o azul imenso de um céu ou mar, para onde mergulha um corpo despido. A sensação de uma angústia bela para com a fotografia de Beatriz Banha é ampliada pelo sentimento de suspensão que a pintura de Diogo Nogueira provoca. Uma figura lança-se num voo cego, num movimento que desafia a gravidade. Um impulso vital que atravessa o quadro e transcende os seus limites - um ruído interno, talvez, ou o instante logo após se suster a respiração. Existe algo de mórbido no silêncio, uma espera que parece ser infinita, assustadora e pesada. Tomás Toste retrata esse silêncio através de um crânio rosado, que, acompanhado por um castiçal e flores secas, servem-nos de “memento mori”. Se desviarmos o olhar mais para a direita, suspende-se novamente o fôlego (!): o corpo de um cavalo caído no chão, imóvel, no meio da escuridão. Cai a sombra que Vanitas prometeu e apaga-se a luz, para o sono eterno. As chamas vermelhas acendem de novo o nosso olhar, trazendo um ruído mudo. Ouvimos o carro a arder, as labaredas que queimam furiosas. Mas ao contrário do fogo, feiticeiro da transformação, permanecemos inertes, num silêncio ensurdecedor. Contrastam com a serenidade do vento que assobia e dança por entre os campos dourados de cereais e flores secas, de Miguel Marquês. A ironia de Duarte Netto ao projetar uma imagem tão pequena e discreta de algo tão monumental como a cratera de um vulcão, surge iluminada numa parede branca. Muito naturalmente, estabelece-se a relação com a instalação de Susana Anágua, um “geoarquivo”. Numa caixa – o chão negro vulcânico serve de contraponto ao objeto branco que nos aponta o olhar para as linhas delicadamente desenhadas em fundos azul-escuro, as quais lembram a imagem de uma escarpa recortada. Da boca do vulcão ergue-se um fumo que ganha forma, como se um ser adormecido despertasse e se desfizesse logo em seguida no ar. Por oposição, Sofia Aguiar aproxima o olhar do ínfimo, revelando o esforço e a delicadeza do mundo minúsculo. Entre o zumbido da mosca e o silêncio da formiga trabalhadora, as suas pinturas captam a persistência discreta da vida que se move nas margens do visível. As cores fluorescentes das composições de Nuno Gaivoto e os corpos elásticos (ou partes deles) que se movimentam flexíveis pela tela, constroem um cenário alienígena que se revela num ruído visual tão imperturbável, quanto agitado. No outro lado, o vazio. O breu, o silêncio daquilo que não existe, ou o ruído daquilo que sabemos ou conseguimos imaginar, mas já não podemos ver. Num fundo preto, Orlando Franco faz surgir uma figura feminina, branca e estática. Apresenta-se a nós sem rosto, sem corpo, apenas com os pés que desaparecem na escuridão. Uma luz artificial alaranjada envolve a figura submersa num clarão quase sagrado, onde o gesto quotidiano de “adicionar ao carrinho” se torna ritual. Num gesto dúbio, que não sabe dizer se é de socorro ou de adoração, surge à tona uma mão - ela, dominadora e submissa, que se faz refém do ruidoso consumo digital. A obra de Ricardo Castro retrata uma tentativa de encontrar sentido no excesso, de fazer do impulso um instante de atenção. Do conjunto de várias pinturas de Luís Silveirinha, sobressai uma pequena tela que seduz o olhar do espectador. Evocando o Suprematismo de Malevich, com a ideia de “white on black”, carrega consigo uma força existencial – onde cabe tudo e nada em simultâneo - que tanto nos alicia a debruçarmo-nos sobre ela, como nos mantém à distância. Como se houvesse um certo receio de compreender o que se encontra por trás disso. Já a pintura de Tomás Colaço não levanta dúvidas na sua relação com o espaço. Pousada no chão de madeira, surge uma paisagem romântica, de tons acastanhados desvanecidos, que convida o espectador a adentrar pelo espaço pictórico. Numa outra sala, também instalada no chão, observa-se uma tela luminosa de Weronika Kocewiak - que obriga o olhar a baixar-se, a escutar a gravidade. O corpo que nela surge move-se entre o metal e o reflexo, prisioneiro de uma coreografia maquinal - como se a artista procurasse traduzir a linguagem invisível do trabalho e do cansaço, onde até o sorriso parece imposto. O registo fotográfico de tom nostálgico, de Maria Peixoto Martins, evoca a memória de alguém que manobrava a palavra escrita enquanto voz. Espaços vazios, mas vivos, iluminados por uma luz suave que funciona como um rasto de presença. Numa outra superfície escura, as palavras já não se leem, apenas se pressentem. Fragmentos luminosos emergem como vestígios de uma escrita perdida, traços de uma voz que o tempo quase apagou. A obra de Rodrigo Bettencourt da Câmara habita o limiar entre aquilo que se diz e o que cala, entre o que permanece e o que se dissolve. Por outro lado, o arquivo iminente de Ana João Romana - através da recolha de textos primários, capítulos essenciais, frases fulcrais e palavras banais, nasce a compilação de um livro-objeto único e não existente, ainda por vir. No oposto, a palavra dita, ou as poucas palavras faladas, através de telemóveis antigos - uma obra de Kamil Kucharzewski - enclausurados por garras e dentes brancos, numa homenagem a alguém que já partiu e se servia da palavra para (sobre)viver. Ou ainda, a palavra escondida de Cristina Ferreira SZWarc, coberta por vestes de peles vermelhas sanguíneas e o ruidoso traço da caneta de feltro escrito ora velozmente, ora delicadamente desenhado, como que num exercício de paciência e atenção. Os rostos cuidadosamente desenhados pelas mãos de Cecília Corujo, onde a grafite se revela um meio brilhante para o registo das singularidades das feições e expressões subtis que constroem o rosto de cada pessoa, distinguem-se da pintura de Carlos Lérias - onde o arrastamento da tinta de óleo, num gesto que invoca a pincelada de Gerhard Richter, não permite o total reconhecimento da pessoa retratada. Fica no ar uma sensação de dúvida e mistério, que nos envolve. Surge um murmúrio. Entre linhas ondulantes de verde, a paisagem emerge como corpo que respira. O gesto de Jorge Lopes repete-se, vibrante e solto, em busca de um silêncio que só o movimento pode produzir, insinuando faces disfarçadas por um ruído transparente. Entre o brilho do metal e a textura orgânica da pedra, um gesto mínimo procura redirecionar a luz. A obra de Nuno Vicente nasce do desejo de orientar o sol, de transformar a sua trajetória em matéria poética. Nesta relação entre natureza e artifício, o silêncio não é ausência, mas escuta: o instante em que a luz se detém para tocar a matéria. No oposto do espectro, o desenho de Ana Carolina Rodrigues converte o silêncio em pulsação e o ruído transforma-se em sombra. Sobre um fundo rosado, expandem-se ramos densos e serpenteados; matéria viva que se contorce e desvanece em memória. “When the world is full of noise” não é apenas um enunciado sobre o excesso contemporâneo; é, sobretudo, uma meditação sobre o que persiste no meio desse tumulto: a respiração, o gesto, o silêncio que resiste ao apagamento. Este conjunto de obras, tão distintas umas das outras, quanto semelhantes, não procura calar o mundo, mas compreendê-lo no seu delírio. Convoca uma escuta atenta, pois tudo fala, ainda que baixo. Tudo permanece, mesmo quando o mundo é demasiado alto.
Leonor Guerreiro Queiroz
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Notas [1] A ordem pela qual vou referenciando as obras de cada artista não segue uma lógica cronológica ou de orientação no espaço. Menciono certas obras em determinados momentos, a fim de criar relações entre o corpo de trabalho dos diversos artistas participantes.
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