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INAS HALABIALL THAT REMAINSLA LOGE Kluisstraat 86 - Rue de l’Ermitage 86 B-1050 Brussels 04 SET - 30 NOV 2025
E tu lhe perguntas
A escritora Adania Shibli dedicou o ensaio A Lesson in the Nature of Resistance (2025) ao pequeno arbusto de alcaparras do jardim dos seus pais, onde passou a infância. O texto breve termina com a imagem de um galho deste teimoso vegetal brotando das frestas da parede do depósito que foi construído no lugar onde existia, mais de trinta anos antes. A insistência vital da planta nos lembra que os seres não-humanos atuam ininterruptamente sobre os espaços e os sujeitos. Entretanto, é comum nos esquecermos deste fato evidente. Assim como o mundo geo-biológico é sempre histórico, a história tem caráter físico – é, também, topografia, paisagem e bio ou cosmogênese: agência em forma material. A exposição All That Remains [2], de Inas Halabi (Palestina, 1988), patente na galeria La Loge, em Bruxelas, é construída precisamente a partir dessa premissa. O título faz referência ao livro homônimo de Walid Khalidi, que leva, ainda, o subtítulo The Palestinian Villages Occupied and Depopulated by Israel in 1948. No início da obra, o autor declara o contexto do seu estudo: o texto convoca a memória da destruição e do apagamento físico dos vilarejos palestinos obliterados em 1948 durante o Nakba – a “catástrofe”, o êxodo forçado de cerca de 750 mil palestinos como consequência do projeto colonialista-sionista de instauração do Estado de Israel – revelando como a paisagem atual ainda guarda vestígios silenciosos desse mundo desaparecido. Khalidi evoca, ainda, a presença de oliveiras e outras árvores frutíferas, cactos e plantas que sobreviveram ou cresceram descontroladamente nessas regiões, declarando que o livro – um esforço impressionante de catalogação com informações historiográficas detalhadas relativas a centenas de cidades – deve ser compreendido como uma espécie de “memorial” a estes locais e pessoas [3]. Em All That Remains [4], Halabi atualiza esta proposta, lembrando que o Nakba é um processo contínuo e salientando, sobretudo, um aspecto perverso da ocupação israelense: a criação, ao longo de décadas, de parques florestais sob administração da instituição sionista criada em 1901 Jewish National Fund (JNF), em territórios onde antes haviam populações e cidades palestinas. As quatro obras apresentadas na exibição foram produzidas enquanto fragmentos do filme em produção The Right of Return [5]. Logo no primeiro piso, perto da entrada da galeria, uma sala à direita nos leva ao Fragmento I. O espaço onde a instalação se encontra é completamente fechado, sem nenhuma entrada de luz. Escutamos sons e vozes enquanto os olhos demoram alguns instantes para perceber as palavras escritas em três paredes. Nos segundos de desorientação visual, adentramos abruptamente no mundo criado por Halabi: uma Palestina inscrita entre o passado anterior ao Nakba, a continuidade deste processo de limpeza étnica no presente, e um futuro em aberto que a artista convida a imaginar. Os textos projetados por três carrosséis de slides são nomes de cidades e aldeias destruídas em 1948 e 1967 por grupos paramilitares sionistas e, posteriormente, pelas Forças de Defesa de Israel (IDF). Além de expulsar, assassinar e violentar seus habitantes, os vestígios físicos das construções foram quase integralmente apagados, demolidos. Os nomes das cidades também foram trocados por outros em hebraico, que não referem os originais. Ao mostrar os nomes originais na ausência de qualquer imagem, a instalação expõe a violência sionista duplamente: na aparente falta de visualidade consequente da destruição, e na própria linguagem – um campo sempre necessário à disputa política; conforme Edward Said afirmou em The question of Palestine (1979), “a simples menção a Palestinos ou à Palestina é nomear o inominável”. Confrontando esta interdição, a primeira obra da mostra explicita seu intuito: a reivindicação do fazer histórico através de imagens e sons, sublinhando que todo fazer da história é, também, um fazer político. Acompanhando a sequência de nomes, ouvimos uma miríade de sons, dos quais vários foram captados no local das vinte e quatro aldeias assoladas que compõem a instalação: o canto de pássaros, jatos militares de combate, vozes e canções tradicionais palestinas gravadas pelo grupo El-Funoun Palestinian Popular Dance Troupe [6] e pela cantora Reem Talhami [7]. Saímos desta sala inebriados pela quase completa escuridão e pela intensidade tanto sensível quanto semântica do áudio. Após a imaginação flutuar entre temporalidades distintas em um movimento de projeção mental daquilo que não é mostrado visualmente, aparecem as primeiras imagens da exposição: ao subir as escadas ao fundo do corredor, nos deparamos com o Fragmento II – fotografias projetadas por outro carrossel de diapositivos. As imagens, aqui, mostram plantas, árvores, bosques: ambientes verdes, de “natureza”. Conforme as fotografias passam, percebemos, em algumas delas, ruínas de pedra e partes de construções. São os destroços das antigas cidades da Palestina, resquícios que precedem a instauração violenta do Estado de Israel em 1948. Segundo a antropóloga Nadia Abu El Haj, a maior expressão do mito sionista de “redimir a terra” – fundamental para o estabelecimento do novo país – é a ocupação do território sob o conceito de Yishuv (cuja tradução literal do hebraico é “assentamento”). Abu El Haj também afirma que o projeto de “fabricação de lugares” é, na prática, uma reconfiguração material e simbólica da paisagem [8]. Sob o pretexto de fazer florescer uma “terra vazia” e árida, o JNF administra mais de cento e cinquenta parques e florestas com nomes tão sórdidos quanto “American Independence Park” [9] ou “Britannia Park” [10], onde estão ausentes quaisquer informações históricas a respeito da sua ocupação compulsória. Halabi expõe de forma poética – tão bela quanto melancólica – este projeto de pacificação que pretende apagar a existência palestina não apenas da história, mas da própria paisagem, para naturalizar a nova presença no território. Essa ausência artificial – criação programada de espaços vazios – é encarnada nas imagens verdes, onde o discurso crítico da artista borra os limites entre natureza e cultura. Das paredes residuais das construções, é extraído um mundo inaudito, fazendo emergir um futuro escavado no solo sofrido desse território: de seu âmago, surge uma vitalidade extrema produzida pelas ruínas e pela vegetação nativa. Nesse sentido, a obra também incorpora as árvores enquanto “evidência botânica do genocídio”, termo do arquiteto Paulo Tavares [11]. Algumas imagens mostram cactos, plantas cuja presença naquela região precede 1948 – ao contrário das coníferas europeias cultivadas após esta data, que devido à dificuldade de adaptação ao clima, morrem precocemente. Os cactos possuem participação ativa na história cultural palestina e representam resistência. Como exemplo visual dessa sobrevivência política vegetal, há uma conhecida fotografia da agência AP Photo que registrou cactos perfurados por balas nos arredores de Deir Yassin, onde mais de cem palestinos foram massacrados pelos grupos paramilitares Irgun e Lehi durante o Mandato Britânico da Palestina (1920-1948). As imagens fotográficas produzidas pela artista conjuram esses eventos ao apresentar as plantas como testemunhas vivas da violência. No último andar da galeria, encontramos dois trabalhos que formam uma instalação: o Fragmento III é um trecho de cinco minutos do filme em produção The Right of Return [12]. A sequência filmada em 16mm mostra, como as fotografias do Fragmento II, áreas florestais marcadas pela presença eventual das ruínas – aqui, em preto e branco. Novamente, a presença vegetal autóctone é assinalada, dessa vez através da imagem de uma árvore de alfarroba, cuja nomenclatura deriva do árabe kharr?b [13]. Halami relatou que foi obrigada a abrir as latas com os rolos de filme devido ao controle de segurança das autoridades israelenses, danificando a película – resultado que aparece na projeção. Além disso, foram utilizados extratos de plantas locais no processo de revelação dos negativos, talhando na matéria do filme mais uma camada de sentido: na pele da imagem, aparecem as cicatrizes de diferentes agentes políticos. Finalmente, no Fragmento IV, a artista propõe um ambiente de acolhimento e pausa. Uma mesa, cercada por almofadas dispostas diante da projeção do trecho do filme, convida o público a servir-se de um chá preparado com três ervas nativas, colhidas em solo palestino: sálvia, tomilho selvagem e hissopo. Esses vegetais possuem uma relação cultural e simbólica com a história palestina; não por acaso, têm sido alvo de regulamentações arbitrárias por parte do Estado israelense, relativamente à prática de foraging. A tradição do chá, na cultura palestina, está ligada à hospitalidade. Assim, o Fragmento IV resgata uma memória de acolhimento vinculada aos espaços domésticos, situando temporariamente o espectador como sujeito implicado nos processos histórico-políticos que atravessam todo o percurso expográfico. Nesse espaço, ativam-se aspectos sensoriais e corporais da materialidade — tanto da terra quanto do próprio ambiente expositivo. A dimensão visual é abrangida pela textura do filme; a sonora, através do ruído contínuo do projetor de 16mm, que mantém o espectador consciente da sua própria presença e, portanto, em estado crítico; já a dimensão háptica manifesta-se no sabor do solo transformado em chá e na partilha em torno da mesa – um gesto que é, necessariamente, uma inscrição histórica e mnemônica sobre os corpos. All That Remains [14] produz um imaginário político fragmentário a partir da experiência sensível que faz o território emergir enquanto palimpsesto temporal: o próprio material orgânico, composto por tecidos heterocrônicos, é o espaço para a enunciação de um futuro que tem raízes profundas.
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