|
|
PEDRO PORTUGALGabinete da Politécnica – O Importantário EstetoscópicoMUSEU NACIONAL DE HISTÓRIA NATURAL E DA CIÊNCIA Rua Escola Politécnica, 58 1250-102 Lisboa 18 MAI - 18 DEZ 2011 Só a arte sobrevive a tudo, na sombra ou em gradações O que acontece quando a Natureza deixa de ser objecto de contemplação e representação artísticas passando a ocupar o protagonismo do objecto contemplado? Animais embalsamados, insectos que perpetuam a sua forma dentro de frascos de formol, esqueletos, conchas colossais… o Passado fossilizado e minuciosamente arquivado em vitrinas. Não falamos já de obras de arte? O museu será apenas um arquivo universal onde guardamos o que findou, o que perdeu a vida? Ou será o espaço onde os objectos, através do nosso olhar, ganham uma nova vida? A problemática do estabelecimento de fronteiras entre arte, história natural e ciência, aliado a um questionamento do “arquivo universal” enquanto espaço de ocultação/exibição de objectos, tem constituído nas últimas décadas tema de reflexão por parte de artistas como Mark Dion, que recorre a noções científicas na criação das suas obras, explorando o potencial estético dessas mesmas noções. Exposições que provocam no espectador uma sensação de retorno aos gabinetes de curiosidades, também denominados de “quartos das maravilhas” que, nos séculos XVI e XVII, expunham e arquivavam uma multiplicidade de objectos de enorme raridade para a época, oriundos dos mundos animal, vegetal e animal, bem como quadros e pinturas. Os gabinetes de curiosidades constituem os precursores e antecessores do actual espaço museológico, sendo os seus objectos apenas no século XVIII transferidos para museus de arte ou de história natural, momento em que se delineia a fronteira entre objecto artístico e objecto natural ou científico. Voltando ao Presente, podemos constatar a permanente oscilação e questionamento dessas fronteiras, pois que, perante a evolução da conceptualização estética, parecem deixar de fazer sentido. Deste modo, objectos centenários, cujo valor parecia estar apenas na sua longevidade, são recuperados, adquirindo uma grandeza que provém de uma re-contextualização espácio-temporal e conceptual, na medida em que agora não se tratam já de raridades exóticas e inacessíveis, mas de objectos escultóricos que parecem encerrar em si uma marca da vitalidade que em tempos lhes pertenceu, e é aí que está encerrada toda a sua beleza, na mescla de vida e morte que conciliam e conservam, como se o Tempo, por muito que lhes tenha dado uma nova forma – a morte -, não lhes consegue retirar o vestígio do que já foram: vida. O Importantário Estetoscópico, da autoria de Pedro Portugal, leva-nos a colocar questões em torno do modo como o espectador se relaciona com as obras expostas num espaço, desenvolvendo uma crítica sociológica ao museu enquanto instituição que, ao invés de dar a ver, parece por vezes armazenar objectos, colocando-os em “cofres” poeirentos onde permanecem esquecidos e ocultos à comunidade. O Gabinete da Politécnica parece então, ao dar uma peculiar visibilidade a peças resultantes de processos de investigação científico-natural, ressuscitar essas mesmas peças, conferindo-lhes uma diferente natureza, pois que agora as contemplamos como se de obras de arte se tratassem. E se assim o é, haverá alguma legitimidade na trivial distinção entre obras de arte e obras da Natureza? O homem é o autor da arte ou apenas o seu juiz? Pedro Portugal fez uma selecção de peças pertencentes ao Museu de História Natural e, transformando algumas e dispondo-as estrategicamente numa sala, criou uma obra que encerra uma totalidade que nos coloca num espaço onde o tempo parece cessar. Objectos pertencentes a um tempo pretérito, animais embalsamados, insectos dentro de frascos, peles penduradas dentro de vitrinas, numa estrutura de biblioteca onde uma grande mesa central está rodeada de armários, se cruza com a actualidade da nossa presença viva no interior do espaço e com o Futuro do que parece estar ainda por descobrir para incluir nos espaços por preencher. I. A Natureza: eterna criadora de obras de Arte Antes de Duchamp ter transposto um mero urinol para o território artístico, ao dar-lhe um nova designação e uma marca autoral, poderíamos dizer que uma obra de arte se definia pelo processo criativo humano que lhe era intrínseco. O ready-made representou uma ruptura conceptual no âmbito da estética, “desumanizando” um pouco a arte no sentido em que esta se veio progressivamente a emancipar do acto de produção humano a que, no seio de uma classificação clássica, correspondia. Assim, as obras que a Natureza produz poderão, através do mesmo processo de classificação e autoria artísticos, ser abordadas enquanto obras de arte, o que permite ao espectador contemplá-las sob uma perspectiva totalmente antagónica à abordagem puramente científica que busca apenas um conhecimento prático ou taxionómico das peças. “É neste sentido que o Gabinete da Politécnica deve ser entendido. É a constatação do all-ready-made que é a artephysis, ou seja, da inseparabilidade entre processos da arte e os processos da natureza” [1] II. A Natureza Morta desemoldurada Ao entrarmos no Gabinete da Politécnica temos a sensação de estar dentro de uma pintura de naturezas-mortas. Numa mesa, sobre um fundo de pano preto podemos contemplar uma caveira sob uma redoma de vidro e uma ave embalsamada, o que nos remete de imediato para as obras Vanitas, excepto que agora podemos tocar essa fatalidade e angústia da mortalidade inerente à vida, uma vez que ela não é tinta sobre uma tela, ela invade o espaço, o nosso espaço. A intensidade da experiência estética está aí, pois que ao invadir esse espaço quebramos o silêncio e a quietude da morte – uma estaticidade secular que contrasta com a vida, com o movimento, com o som dos nossos passos pela sala. E, deste modo, parece-nos partilhar já essa morte com os objectos, numa comunicação osmósica que vamos estabelecendo com as obras. No entanto, há uma irrupção da vida e do Tempo que parece rasgar uma paisagem morta e que é intencional por parte do autor, que vai alterando as peças ao longo dos meses em que decorre a exposição. Ao fundo da sala, encontramos por vezes alguém que, numa secretária rodeada de papéis rascunhados, desenha, em traços simples, como que numa quase aleatoriedade de formas, rostos, crianças, casas. A obra que de um modo mais evidente denuncia a invasão de uma incontornável temporalidade que actua sobre os objectos é o Museu do Pão, uma pequena escultura para a qual o único material usado foi pão, um museu em miniatura sobre o qual o tempo vai dando novas formas e cores, através da deterioração da matéria de que é feito. Esta peça remete-nos, não apenas para a crítica à instituição do museu, que Pedro Portugal pretende elaborar através da exposição, mas também para a ideia de que até no inanimado o tempo decorre, perseguindo tudo o que habita o espaço. III. Museu: espaço de exposição, espaço de encobrimento O espaço museológico sempre foi alvo de uma dupla abordagem: é espaço de arquivo, de memória, mas é também espaço de visibilidade, de exibição e de actualidade. Esta dupla função faz do museu enquanto instituição tema de debate e crítica constantes. É esta uma das bases teóricas que sustenta a presente obra de Pedro Portugal, uma vez que, se por um lado existe a necessidade de conservação enquanto criação e sustentação de uma memória e passado colectivos, por outro não é possível que estes sejam imunes à própria passagem do tempo que faz destes a sua condição de pretérito. Ao olharmos uma Gioconda necessitamos de sentir o tempo que sobre esta foi exercido e não o contrário, não o seu congelamento no tempo, pois só a longevidade lhe confere o estatuto que adquire. Neste sentido, surge uma espécie de contestação ao Museu enquanto espaço de presentes passados, existe a necessidade de mutação e degradação da obra enquanto constituinte do espaço museológico, isto é, uma aproximação à vida naquilo que é a obra de arte na sua essência – o site specific sempre num espaço cronológico específico que nenhum outro iria possibilitar. Assim que a obra deixa de pertencer ao seu tempo de concepção, surge a necessidade de vermos nesta a passagem do próprio tempo enquanto elemento intrínseco à Natureza, e a Land Art teve uma indubitável preponderância na reflexão destes conceitos. “O museu é o último reduto da não democracia porque o museu acaba quando o povo puder entrar livremente no museu.” [2] Pedro Portugal elabora, através da própria arte, e recorrendo a um espaço museológico, uma forte crítica aos limites impostos à arte pelo espaço que esta habita por excelência: o museu. NOTAS [1] Portugal, Pedro, “Museta”, in Gabinete da Politécnica - O Importantário Estetoscópico, p.7. [2] Portugal, Pedro, “A história, os museus e os insignificantes imperturbados”, in Gabinete da Politécnica - O Importantário Estetoscópico, p.2.
|























