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PEDRO CABRITA REISOne after another, a few silent steps![]() MUSEU COLEÇÃO BERARDO Praça do Império 1499-003 Lisboa 04 JUL - 02 OUT 2011 ![]() ![]() A origem da obra de arte é o artista. Uma reflexão em torno da obra do artista Pedro Cabrita Reis torna inevitável uma extrapolação para outros domÃnios, levando-nos a questionar conceitos a respeito da função que a arte sempre exerce enquanto representação antropológica e poética que coloca o ser humano perante um reflexo de si mesmo, da sua existência num espaço e num tempo irrevogáveis. A retrospectiva do artista que actualmente se encontra no Museu Colecção Berardo propõe uma viagem ao universo do autor. Território e materialidade são o ponto de partida para uma mescla de obras cuja caracterÃstica basilar é a interdisciplinaridade artÃstica na qual os limites impostos pela terminologia clássica que distingue pintura, escultura ou desenho deixam de fazer o menor sentido. Pedro Cabrita Reis “trabalha com um material anterior à s palavras, teoricamente impossÃvel de transmitir em linguagem corrente, isto é, numa linguagem que não seja a sua, porque qualquer outra é uma linguagem errada.†(1). I. Sacralização do objecto na Arte Pedro Cabrita Reis é um “artista que faz tudo o que lhe apeteceâ€, no entanto, não é de aleatoriedade ou de ausência de mensagem que aqui se trata. O artista selecciona materiais, transforma-os, une-os, criando, deste modo, obras de arte que evocam a religiosidade intrÃnseca a qualquer objecto. “Que respeito pelos objectos. Cada um tem beleza própria porque é único, possui o insubstituÃvelâ€, afirmou Jean Genet referindo-se à s obras de Alberto Giacometti. Este mesmo respeito pelos materiais pode ser constatado perante as obras de Cabrita Reis. “Há uma objectividade própria à identidade intransigente de um material.†(2), no entanto, essa mesma objectividade, através do processo criativo, converte-se numa subjectividade que estabelece um diálogo com a subjectividade do espectador. Estabelece-se uma relação osmósica entre a vida e a arte, mediante um processo artÃstico que se baseia na transladação de materiais pertencentes à quotidianidade para um domÃnio que, de certo modo, torna possÃvel um outro olhar sobre estes, “o espectador percebe um objecto tal como ele concretamente é, algo que existe no espaço e no tempo. Dessa forma, a experiência é interessante na medida em que a relação entre espectador e objecto pode ser envolvida em drama; ou seja, na medida em que esse relacionamento possa ser tornado teatral.†(3). A obra I dreamt your house was a line poderá parecer uma mera instalação composta por grandes suportes de luz, mas o que presenciamos é um simples desenho no qual o lápis foi substituÃdo por luz – desenhos de luz, uma casa cujas linhas circundantes emanam luz. A arte contemporânea ficou marcada por uma aproximação a valores filosóficos e conceptuais na medida em que não é já apenas a tonalidade da cor ou a perfeição do traço que são sujeitas a uma apreciação, sendo-lhes acrescentadas questões que se escondem por trás dessas cores e desses traços; “as formas inelutavelmente linguÃsticas de pensar, discutir, definir e interpretar a arte tornam-se os próprios materiais da prática da arte (…) as obras assumem a forma de declarações.†(4). Daà que a arte contemporânea, na sua generalidade, tenha desenvolvido uma forte componente de auto-reflexão antropológica, sendo o percurso artÃstico desenvolvido por Cabrita Reis um exemplo inegável dessa transformação no seio da arte. Como um dos seus representantes no meio artÃstico português, o próprio afirma “qualquer obra de arte é um problema de pensamento.†E se recuarmos ao século XVIII, podemos encontrar um prenúncio desta arte auto-reflexiva nas palavras de Hegel, “a obra de arte deve, portanto, ter por um lado um conteúdo interno e por outro representá-lo, de maneira a mostrar que tanto esse conteúdo como a sua forma não são somente uma parte mais ou menos inteligente da realidade exterior, mas um produto resultante da representação humana.†(5). Contrariamente à desumanização da arte de que nos falava Ortega y Gasset em 1925, a arte contemporânea parece reflectir o pensamento humano de um modo mais realista do que o próprio realismo pictórico alguma vez o fez. O Quadrado negro sobre fundo branco (1915) de Malevitch estará por ventura mais próximo de uma representação do inconsciente humano do que qualquer retrato de Vermeer. É o ser humano, demasiado humano como medida de todas as coisas, a intimidade subjectiva enquanto base para qualquer criação ou vislumbre. E as obras de Cabrita Reis manifestam de um modo indubitável a marca presencial e autoral de um ser humano. “Permanece inalterável para a refracção estética o que é alterado; para a imaginação o que ela concebe.†(6). O espectador e a relação que este estabelece com as obras tornam-se um factor primordial ao longo de todo o processo de criação artÃstica, sendo ele que concebe a reflexão que dá a obra por consumada. Deste modo, o meio artÃstico é forçado a pensar a arte não apenas enquanto objecto que se apresenta à contemplação, mas enquanto processo de criação e acto de pensamento. II. Construção e Território: A Casa “A casa é a concepção de um modelo de universo que se pode medir.†(7). A questão do território e do modo como o ser humano se relaciona com o espaço consagrou, durante um vasto perÃodo, uma temática constantemente presente nas obras de Cabrita Reis, daà que vulgarmente este seja tido pela crÃtica como criador de obras arquitectónicas. No entanto, a arquitectura é aqui colocada em oposição à construção enquanto acto primordial do ser humano ao estabelecer uma relação com um território particular. “A construção tem a ver com o lugar que os homens criaram dentro e por oposição à Natureza, a qual inevitavelmente pertencem mas com a qual, inevitavelmente não comunicam†(8), “É a tentativa de encontrar um lugar único a partir do qual se pudesse imaginar a construção quase perfeita de uma cosmogenia ou cosmogénese que seria o lugar do autor no mundo.†(9). O acto de construir, inserido no pensamento e prática artÃsticos de Pedro Cabrita Reis, é indÃcio da luta que a espécie humana trava, desde os seus primórdios, contra a sua animalidade, contra o caos da Natureza, impondo ao território uma criação autoral, para que, de certo modo, este lhe pertença. A construção da casa torna-se sÃmbolo de uma pulsão tectónica que impõe ao espaço os contornos do pensamento humano. “É, de facto, um olhar de inteligência que perdeu o acesso ao ParaÃso e faz uma imposição sobre o mundo. Consegues uma casa. E essa casa é o universo.†(10). III. Marca Autoral e Metafórica A obra de Pedro Cabrita Reis está marcada por uma dimensão metafórica mediante a criação de contextos de emergência de significados respeitantes a questões basilares da existência. Há uma sensibilidade que atravessa e extravasa os materiais, convocando, não sem uma certa obscuridade e ambiguidade, a natureza enigmática das obras. “Quando a arte se fala, pela voz ou mão do artista que a transporta, toda a palavra será obscura.†(11). O objecto artÃstico dá origem a um sentido mutante, pois que resulta da confluência do processo artÃstico com a experiência do espectador ao confrontar-se com a obra. As construções de Cabrita Reis impõem a primordialidade das formas e os modelos arquetÃpicos: a casa, a árvore, a água, a luz. A textualidade que contamina as criações de Cabrita Reis, e que apresenta uma coerência ao longo do seu percurso artÃstico, remete-nos para uma intensa marca autoral, baseada num formalismo alfabético que se reduz a uma essencialidade geométrica e pictórica, um retorno a formas primordiais: linha, cÃrculo, plano, quadrado, cubo, bem como a ao repetido recurso a materiais rudes, degradados e aparentemente insÃpidos. A simplicidade das formas está patente em obras como The Grid (2006), um ordenamento de quadrÃcula numa tela de enormes dimensões, perante o qual podemos constatar a total ausência de uma tal perfeição geométrica na Natureza, o que nos remete para um olhar/criação exclusivamente humanos. Cabinet d’Amateur#2 (2001) coloca-nos perante uma sala na qual parece estar presente a gama cromática de um mundo onde a cor é apenas isso, a pigmentação que absorvemos a cada olhar. No que diz respeito à pintura, o artista, opõe o rigor geométrico de alguns dos seus trabalhos à coloração aquática de telas colossais que lembram misturas quÃmicas, onde a tinta se espraia como se tivesse vontade própria, numa eterna movimentação que se opõe à estaticidade de outras pinturas. Cada obra afirma a necessidade de regressar ao primordial a fim de concretizar a experiência humana de apropriação da Natureza. O princÃpio está presente, não sob a forma de um retorno, mas como uma intemporalidade: um eterno sempre do qual nunca partimos e ao qual nunca chegaremos. “Mas a beleza está não no poema, nem no azul, nem no comum, mas na poesia. A poesia está por todo o lado, onde menos se pode reconhecê-la. É ela que salva todos os possuÃdos pela falta das imagens ou os embriagados pelo excesso delas. A poesia é, assim, polÃtica, porque afecta o comum, cria as formas do comum. É nestas que o humano tem lugar.†(12). Pedro Cabrita Reis coloca-nos esta poesia diante dos olhos, que sendo partilhada, nos qualifica de comunidade, para que não possamos escapar à sua contemplação, e, através dela, reconhecer que a beleza do “poema†está em todo e qualquer lugar. “Prefiro a lucidez de uma aparente incoerência e aprender, nessa cacofonia de rumores e murmúrios, que em cada trabalho nos traz, devolvido, o silêncio do princÃpio, a claridade com que teremos sentido o primeiro encantamento. Afinal uma obra não se conhece, revela-se.†(13). E, “acerca daquilo que não se pode falar tem que se ficar em silêncio.†(14). NOTAS (1) Antunes, António Lobo, in Catálogo da exposição One after another, a few silent steps. Lisboa: Museu Colecção Berardo, 2011, p. 5. (2) Pedro Cabrita Reis em entrevista ao suplemento “Ãpsilonâ€, in Público, 1 de Julho de 2011. (3) Harrisson, Charles, Hood, Paul, Modernismo em Disputa: a Arte desde os Anos 40. São Paulo: Cosac & Naify, 1998, p. 108. (4) Charles Harrison e Paul Hood (1998), Modernismo em Disputa: a Arte desde os Anos 40. São Paulo: Cosac & Naify, p. 204. (5) Hegel, G.W.F., Estética. Lisboa: Guimarães Editores, 1993, p. 393. (6) Adorno, Theodor W., Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2011, p. 16. (7) Pedro Cabrita Reis em entrevista ao suplemento “Ãpsilonâ€, in Público, 1 de Julho de 2011. (8) Idem. (9) Idem. (10) Idem. (11) Reis, Pedro Cabrita, “As Notas Polacasâ€, in Catálogo da exposição One after another, a few silent steps, Museu Colecção Berardo, 2011, p. 15. (12) Miranda, José Bragança de, Corpo e Imagem. Lisboa: Vega, 2008, p. 40. (13) Reis, Pedro Cabrita, “As Notas Polacasâ€, in Catálogo da exposição One after another, a few silent steps, Museu Colecção Berardo, 2011, p. 15. (14) Wittgenstein, Ludwig, Tratado Lógico-Filosófico, Investigações Filosóficas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, p.142. ![]()
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