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EXPOSIÇÕES ATUAIS


Vista da exposição. Cortesia Museu de Arte Contemporânea de Elvas. Fotografia: Alberto Mayer


“Untitled” (2008)


“Ghost” (2014)


Vista da exposição. Cortesia Museu de Arte Contemporânea de Elvas. Fotografia: Alberto Mayer


"Untitled Dyptich" (2008)


“Untitled” (2003), vídeo still


“Even all the hairs of your head are all mumbered” (2014)


Série “Untitled 2012 (Snow Dust)”


Vista da exposição. Cortesia Museu de Arte Contemporânea de Elvas. Fotografia: Alberto Mayer

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ARQUIVO:


RUI CALÇADA BASTOS

À luz sincera do dia




MACE - MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA DE ELVAS
Rua da Cadeia
7350 Elvas

05 OUT - 31 DEZ 2014

Sobre uma composição de movimentos ausentes


“À luz sincera do dia” é a primeira exposição individual de Rui Calçada Bastos no Museu de Arte Contemporânea de Elvas – Colecção António Cachola.

 

Nela, Rui Calçada Bastos regressa a algumas das suas investigações recorrentes: a itinerância pela(s) cidade(s), o espaço urbano como possível lugar do sublime, onde o artista exerce uma certa interrupção poética da realidade, sem que haja uma anulação do movimento, antes uma insistência nesse mesmo movimento que o transforma em coreografia; o desafio de encontrar pequenas narrativas pessoais em espaços indiferentes. A mudança, como fatalidade romântica, a dualidade auto-referencial da presença/ausência, as memórias como fragmento misterioso, inacessíveis aos outros, um certo nomadismo recolector ou a percepção do tempo, são elementos que podemos encontrar novamente neste percurso expositivo.

 

A iniciar a exposição estão duas obras frente a frente, duas paredes que se encaram. Uma fotografia de um muro de cimento manchado, “Untitled” (2008), e uma escultura-desenho, “Ghost” (2014), uma parede onde se vê o traçado de uma escada sulcado no pladur, construída especificamente para os espaços onde é apresentada e destruída depois de terminada a exposição. Estas duas “paredes” denotam claramente a passagem do tempo. Numa, as marcas derivam da exposição ao clima, aos efeitos da natureza, enquanto que na outra encontramos vestígios de uma vivência humana, o rasto de uma construção e de uma destruição. É curioso que esta última obra, que personifica o “movimento” mais longo da exposição, seja ela própria uma obra efémera, votada à destruição certa assim como ela é já sinal de uma destruição passada - é preciso construir para poder mostrar a destruição. Não é só a escada que é o fantasma aqui (a projecção 3D que podemos imaginar acoplada à parede), mas a obra ela mesma, aparece e desaparece, vemo-la, mas sabemos que é um “fantasma adiado”.

 

Esta obra é também o suporte de outra. O vídeo “Passagem de nível” (2014) é projectado na parte de trás desta parede com o traçado do desenho da escada. O vídeo mostra uma sucessão de planos fixos captados nos exteriores da cidade de Berlim: uma grua, uma tela com uma impressão a abanar lentamente, um chão que vai escurecendo com a chuva que cai, manchas e sombras, um copo que oscila, gotas, flocos de algodão ao vento, água a correr num piso de tartan, reflexos em paredes, folhas de árvore, um candeeiro de rua com luz ténue – escuro. Tentamos naturalmente construir uma narrativa com estes elementos desapercebidos do ritmo da vida urbana, ajudados pela trilha sonora composta por sons ambiente e por música, que soma uma certa envolvência e dramatismo à composição. A cidade pessoal de Rui Calçada Bastos torna-se aqui a cidade imbuída de memórias das nossas próprias experiências. Traz-nos assim uma possibilidade de significação de imagens invisíveis.

 

Outro vídeo integra esta exposição. “Untitled” (2003) é um vídeo em loop que mostra um grupo de operários a desmontar um andaime nas traseiras de um prédio. O plasma está colocado na vertical, no chão encostado à parede, dando um carácter escultórico à peça. O contexto da situação que nos é dada é mínimo, pois o enquadramento é praticamente restrito à estrutura metálica e aos operários dispostos em cada patamar, que vão passando uns aos outros partes do andaime. O movimento repetitivo cria uma corrente que podia ser infinita, uma acção elíptica, presa num permanente retorno, reforçada pelo loop do vídeo, como se o andaime se desconstruísse e reconstruísse a si próprio. Não é só a disposição do vídeo que é escultória, mas a acção em si é um mecanismo em movimento, que se desmonta e monta. Num ambiente tão urbano surge aqui um movimento orgânico, intimamente unido ao tempo, neste caso cíclico, mas também ao corpo e à sua possibilidade de mudança. O corpo em trânsito dos operários, este corpo que é lugar da experiência quotidiana, está preso neste movimento repetitivo da paisagem urbana, num encanto hipnótico desta coreografia de peças metálicas e braços ao alto.
Com este trabalho, Rui Calçada Bastos põe em jogo uma série de conceitos que a ideia de repetição traz consigo, ligando-os à vivência urbana: produção/reprodução, orgânico/mecânico, finito/infinito, conformidade/mudança. A repetição de um movimento leva à dissolução do mesmo e ao surgimento de um outro estado. Neste caso, a acção individual dos operários dissolve-se e dá origem a um fluxo que percorre a estrutura vertical. Despida da sua razão de ser – não dá origem a nada pela montagem em loop – a acção destes operários transforma-se numa poderosa imagem-comentário.

 

Detalhes da vida na cidade deram origem também à série “Untitled 2012 (Snow Dust)”, 6 fotografias de resíduos de neve sobre o lago gelado de Malaren, na Suécia, que se assemelham a paisagens cósmicas de um azul celeste. Pequenas partículas de neve arremessadas por alguém para a superfície do lago transformam-se sob o olhar do artista num pedaço do universo. Uma acção banal de alguém desconhecido, uma história que nunca saberemos porque está no meio de tantas outras acções quotidianas sem aparente significação.

 

Esta possibilidade expansiva da acção ordinária pode também ser visível na obra “Even all the hairs of your head are all mumbered” (2014). O curioso título é já de si uma forma irónica de investir significado a uma simples acção de cortar o cabelo: cortar o cabelo requererá cuidado se os cabelos estiverem efectivamente numerados. Para sabermos temos que nos aproximar. Aqui, ao mostrar esse aspecto privado que é o corte e os cabelos espalhados pelo branco da camisa, Rui Calçada Bastos revela a intimidade que há nesta perspectiva, a permissividade ao desejo e ao voyerismo. Rui Calçada Bastos entrega-nos este homem desprotegido. Visto de costas, uma imagem comum no trabalho de Rui Calçada Bastos, este homem cujo rosto não se vê, está mais próximo de nós.

 

Vemos que o tempo nestes trabalhos de Rui Calçada Bastos não é linear, está relacionado com os fenómenos naturais: o clima, a água, as manchas de humidade nas paredes, a vegetação parasita, as folhas caídas, o cabelo cortado que voltará a crescer. Do natural emerge o pessoal, a imagem descontínua, a memória fragmentada, a incerteza interpretativa.

 

“À luz sincera do dia” é um percurso pessoal pela cidade, a “sua” cidade, entre imagens que têm presente um movimento, uma passagem do tempo com deslocação/alteração, esse acto invisível que fica antes ou entre imagens – essa acção que produz a próxima forma. Exemplo disto são também as duas fotografias que parecem idênticas e que mostram um cruzamento num quarteirão qualquer, onde num segundo olhar se percebe que a diferença central está na ausência de passadeiras para peões na primeira imagem e a presença destas na segunda. Esta acção, entre o vazio e o pintado das linhas brancas no chão, está algures no interstício das duas imagens, e apesar de não representada, ela impõe-se sobre elas.

 

É à luz do dia, não uma luz artificial, mas a luz regular e quotidiana, que Rui Calçada Bastos quer que façamos o mesmo exercício que aqui propõe. A cidade revela-se sem precisar de artifícios. Na atenção, na repetição, na montagem, descobre-nos as formas, as relações de uma coreografia do quotidiano, invisível porque sempre presente.

 

 

 

Liz Vahia

 


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[a autora escreve de acordo com a antiga ortografia]



Liz Vahia