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VALTER VENTURAOBSERVATÓRIO DE TANGENTESMNAC - MUSEU DO CHIADO Rua Serpa Pinto, 4 1200-444 Lisboa 17 FEV - 07 MAI 2017 O Tiro Fotográfico
Em português, como em inglês, «tirar», «disparar», aplica-se tanto a uma bala como a uma fotografia, enquanto que em francês, tirar uma fotografia, é fazer-se uma tiragem. Na maioria das línguas há também palavras comuns ao tiro, à caça e à fotografia: o fotógrafo é um caçador de imagens (mesmo que alguns estejam mais à espera do momento certo), ele capta as imagens, ele aponta, ele dispara; Susan Sontag utilizou muito esta analogia no seu livro Sur la Photographie.
Uma exposição em 2010 nos Rencontres Internationales de la Photographie em Arles chamava-se também Shoot! À entrada encontrava-se uma verdadeira barraca de tiro onde, se a bala acertasse no alvo, era-se automaticamente fotografado: divertimento feirante dos anos 30 e 40, frequentado por Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre (em cima), Man Ray e Lee Miller, e outros, como testemunhavam os seus troféus fotográficos na exposição, é o caso da a holandesa Ria van Dijk que pratica este desporto desde 1936.
Aí também víamos fotógrafos (Jean-François Lecourt, Rudolf Steiner, Thomas Bachler) atirando (com pistola, espingarda ou por vezes com arco) em camerae obscurae herméticas, o impacto da bala criando desde logo uma camâra pinhole, orifício através do qual a luz entra e vem impressionar a superfície sensível: o impacto da bala no papel fotosensível corresponde então ao cano da espingarda na imagem, desde que o atirador fique imóvel. Podemos vê-los como autoretratos performativos, como exercícios de criação/destruição da imagem, e como um questionamento «desconstrutivo» do acto fotográfico. É um trabalho menos literal e mais poético sobre este tema o que Valter Ventura apresenta no Museu do Chiado, na sala Sonae, até 7 de Maio (ver também a emissão da RTP entre 5’15 e 8’). Valter Ventura é um fotógrafo português (1979) que se interessa antes de mais pelo que é a fotografia, mais do que aquilo esta mostra. Fotografou também céus, desperdícios e neblinas incertas, sempre à margem da representação. Foi aluno de Timm Rautert, um dos primeiros fotógrafos conceptuais (com Anastasi, Snow, Hilliard, Dibbets e, claro Ugo Mulas) que, desde 1970, se têm debruçado sobre a ontologia da fotografia, sobre a fotografia auto-reflexiva, aquela que é o seu próprio tema. O ponto de partida do trabalho de Valter Ventura, intitulado «Observatório de Tangentes», é a experimentação do francês Étienne-Jules Marey (1830-1904) que, em 1882, para compreender a mecânica do voo das aves, construiu uma espingarda fotográfica, com coronha e visor mas onde o carregador era substituído por um cilindro graças ao qual doze imagens de um pássaro se sucediam em curtos intervalos, podendo-se sobrepôr sobre o papel fotosensível. Marey era um médico, um científico, diferente do fotógrafo americano Eadweard Muybridge que, na mesma altura, analisa a locomoção animal e humana (e em primeiro lugar o galope do cavalo) graças a uma bateria de aparelhos em linha que disparavam automaticamente à passagem do corredor ou do cavalo. O engenho de Muybridge leva a uma sucessão de imagens do movimento decomposto, o de Marey a uma imagem única onde o movimento se vê pela sobreposição. Quisemos muitas vezes ver aqui o proto-cinema mas, apesar de toda esta tecnologia, o objectivo é diferente: os irmãos Lumière, 15 anos depois, criam uma ilusão do movimento continuo, enquanto Marey e Muybridge decompõem o movimento numa série de imagens fixas. À direita, Valter Ventura apresenta uma discreta vitrina que pode servir de introdução técnica e histórica à sua exposição (A Medida de Olhar): aqui vemos documentos sobre Marey e a sua espingarda-câmara, embalagens, catálogos tanto de tiro como sobre fotografia. Do outro lado da entrada, nove fotografias a cores (Observatório de Tangentes) mostram vários instrumentos de óptica e de tiro, como troféus nas paredes de um castelo. Aí encontramos visores, óculos de tiro e outros instrumentos onde apenas um especialista poderia definir a sua utilização; o mais comovente é um fato de atirador de um tropa de elite dos comandos, camuflagem vegetal impressionante na sua veracidade, uma concha vazia, inabitada. O homem que poderia voltar a vesti-lo está presente no resto da exposição, através do resultado dos seus tiros: numa parede, doze fotografias de pombos de barro, despedaçados (Snapshot). Noutra, quinhentos alvos em cartão e perfurados pelo impacto e atravessados por um espeto de madeira (Olho e Linha: Arquivo de Pequenos Desvios): os ligeiros desvios em relação ao centro do alvo criam assim um volume que se distancia um pouco da perfeição do paralelepípedo, e por conseguinte do tiro, mas de facto pouco, pois o artista (que sabemos ser também um pugilista semi-profissional) parece ser um excelente atirador. Ao fundo, sobre um duplo écran e ocupando toda a sala na penumbra (Fade to Black) Valter Ventura, à esquerda, concentrado e esforçando-se por ser certeiro, tenta atirar pedras em direcção a uma grande lâmpada eléctrica sobre o écran da direita: a imagem é cortada em duas e quando, após várias tentativas, ele consegue, a sala fica na escuridão, acompanhada pelo som do vidro estilhaçado, o que sobressalta os espectadores. É o fim, o fim da luz, o fim da imagem, o fim da fotografia.
Este fim trágico invocou, na minha opinião, o trabalho do excêntrico artista inglês Mr. Pippin que, na sua série «Point Blank» desenvolve um mecanismo muito sofisticado através do qual uma bala de pistola destrói um aparelho fotográfico, o qual, no momento de morrer, regista uma última imagem da sua destruição, como um sinal do fim da fotografia. Encontramos aqui o mito, bem analisado por Margarida Medeiros no seu livro A Ultima Imagem, Fotografia de uma Ficção, da retina dos moribundos, conservando a última imagem antes da sua morte (acreditando que tomando antecipadamente e analisando a retina, poderíamos assim identificar o assassino). Mas a força do trabalho de Valter Ventura é de não se focar somente no poder destrutivo do tiro, quer seja ele de bala ou de fotografia, como outros fizeram, mas de fazer-nos meditar sobre o acto de atirar mais do que o seu resultado. Quem tenha praticado tiro desportivo sabe a que ponto a concentração, o controle sobre si mesmo, a capacidade de «esvaziar» o espírito, a focalização mental sobre o alvo, são essenciais. Celso Martins, que assina o texto de apresentação do catálogo editado pelo museu, cita uma das leituras de Valter Ventura, um pequeno livro de Eugen Herrigel, professor alemão que ensinara filosofia no Japão, entre 1924 e 1929, e que se iniciara, com o mestre zen Awa Kenzô, ao tiro ao arco. Este livro, Zen e a Arte do Tiro com Arco, era o breviário de Henri Cartier-Bresson: a ascese do atirador de arco, o esquecimento de si próprio, a capacidade de se desligar, não mais se preocupar com o seu alvo, mas apenas consigo mesmo, da sua concentração espiritual, que são tão difíceis de dominar para um ocidental, são perfeitamente adequadas para um fotógrafo. É isto que retiramos desta exposição: que a fotografia não é apenas uma técnica, contrariamente ao que parece, que ela não é apenas um medium, contrariamente ao que se espera, mas que ela é, antes de mais, na hora da omnipotência numérica, um percurso mental em tangente, uma resistência às selfies e aos ecrãs alienantes.
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