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JOÃO PENALVAJOÃO PENALVA![]() GALERIA FRANCISCO FINO Rua Capitão Leitão, 76 Marvila, Lisboa 25 SET - 08 NOV 2025 ![]() ![]()
Em 1972, em Londres, João Penalva estudava ballet na London Contemporary Dance School. Trabalharia a partir do ano seguinte com Pina Bausch, mas voltaria à capital inglesa, quatro anos depois, para estudar pintura, até 1981. Mostraria os seus trabalhos pela primeira vez, pouco depois, no Porto. Mais de quarenta anos depois, a exposição que apresenta na Galeria Francisco Fino, sem título, é composta por imagens fúmidas. Às Sete vistas de espaços entre cinco cadeiras, uma geometria convexa faz surgir silhuetas, crucigramas, labirintos. Sem vermos o título retemos, com alguma dúvida, a fisionomia destes objetos – a textura da madeira, as perpendicularidades do objeto. O que se guarda é o enredo de linhas, subjetivado pela lente aproximada. As cadeiras são reconfiguradas num mikado complexo, sujeitas a uma permanente distensão entre o abstrato e o figurativo. O grão da imagem e o tom sépia ficcionam uma historicidade construtivista, um gosto pelo tátil ou analógico. O título é literal, definindo a obra através do processo que a fundou.
Seven views of spaces between five chairs (2015), João Penalva. © carbonara.st
A seguir, um padrão têxtil evoca um relevo que não existe. Parece-nos escultórico, depois pictórico, e revela-se fotográfico. Vemos remendos a protagonizarem acasos, como se cerzidos num tecido para ser usado. Uns maiores que outros, os remendos dispõem-se numa geografia retangular, sempre paralela ou perpendicular, cuidadosamente reproduzida. A imagem dá pelo título de Nu Reclinado (Abstracto). Não percebemos. Somos levados a induzir que, entre a abstração e a figuração, o texto vai surgindo como mediador. Não revela, mas suspende um primeiro juízo sobre as imagens. Como já sabemos, no trabalho de João Penalva, a relação texto-imagem é permanente, até obsessiva. Também o verificamos em Composição com dois sacos de papel japoneses, não só pelo título (mais uma vez, feito mínimo denominador comum), mas através da descrição do objeto que vemos, espalmado e crepitante, contra uma superfície vermelha. Ela dá-nos o contexto daqueles dois sacos, a sua proveniência e historicidade, como se dispostos num museu etnográfico. Não nos revela a narrativa possível por trás dos dois olhos do crocodilo (sugeridos pelo artista), na parte inferior da peça – a subjetividade permitida e refletida no objeto retirado do seu contexto. A nova vida dos mortos. Ou extravasando, a língua de uma boca aberta, como aquela de John Tanner 1892, ou um dos possíveis rostos no kintsugi espontâneo de Shiroyama. É assinalável a possibilitação destas ficções no trabalho de Penalva (por nós, ou por ele), nunca adulterando o objeto em causa.
Shiroyama (2025), João Penalva. © carbonara.st
Nestes dois últimos casos, o texto é um enigma, ora sublinhando uma inscrição na própria obra (no caso de John Tanner 1892), quer remetendo a uma relação íntima, a que apriori não nos é dado acesso (Shiroyama). Quando possível, essa relação é desmistificada no pequeno e bonito livrete (um livro de artista, no sentido mais prático do termo) que acompanha a exposição, com explicações ou contextualizações. Parece-nos ser ele o núcleo, e o motivo para chamar esta exposição de “retrospectiva” – termo abusivo se levado à letra, à inferição de que veremos um extenso percurso pelo trabalho do artista. João Penalva vai expondo as suas considerações num tom confessional, sincero, cómico, milimétrico, fora de tempo – e nesse sentido, retrospetivo. Intervala facto e comentário. Olha os trabalhos como motivos para recordar. O hipertexto não põe em causa o efeito das obras – a tradução dos seus trabalhos tem brechas, acolhe interferências, ou possibilidades de correspondência. Tradução, talvez seja um termo abusivo, é preferível transliteração. Exemplificativo é esse permanente convite a uma pareidolia, nunca descortinada, mas permitida, e por vezes sugerida, pelo artista: reflexo da constante indagação do seu trabalho, a sua atração inevitável por uma complexidade “derivada estrictamente pela necessidade e pelo acaso”.
W (1994), de João Penalva. © carbonara.st
É nesse sentido que lemos a obra mais antiga da exposição W, de 1994: letra serifada, sozinha, enclausurada num pequeno painel de madeira. Olhando com tempo, a serifa evoca-nos uma distensão: três pregos curvos, condenados. O óleo reluzindo numa ferrugem negra, sob a claridade dos janelões da galeria. Veremos inscrições semelhantes na madeira de John Tanner, procurando uma afinidade narrativa, no filme benningiano da exposição. Segue-se outro trabalho pictórico, deste ano, Philarmonie, inspirado em Erich Fritz Reuter (1911-1997) – paisagem de padrões, fluxo de ritmo e simetria, árido e seco. O intervalo dá-se com Pessoas no Ar. Evocam-se um conjunto de temas comuns às várias obras: a relação permanente entre texto e imagem; o texto que descreve, e contextualiza, sem descodificar; a obra como disposição museográfica, bailado de formas regulares, padronizadas (pós-irónicas?), procurando um lugar na História. Mas aqui, estamos num cenário quase alienígena: um fundo salmão intenso num espaço quadrado; as imagens aglomeradas, apenas, do lado direito. Acaso? Não é um acaso. A estranheza, o deslocamento vai-se calcinando à medida que olhamos em volta: tudo começou nas cadeiras hirtas, alinhadas, mas separadas pelo vão de entrada: duas de um lado, cinco do outro, esticando e encolhendo. Opacas, quase impercetíveis: tingidas pelo fumo do tempo.
Miguel Pinto ![]()
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