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JOÃO FONTE SANTAO Colapso da CivilizaçãoVPF CREAM ART Rua da Boavista 84, 2º 1200-068 Lisboa 15 MAI - 28 JUN 2014 O futuro do passado não é o presente de agoraÉ mais fácil falar do passado, porque todos temos coisas a dizer. Mas falar do futuro é difícil. E por que é que não falamos do futuro, quando a ciência vai à frente e progride? Há muitas razões, a primeira delas é o fracasso das utopias do século XIX e do século XX, principalmente o marxismo. Aliás, acho que estamos a viver o fracasso da última grande utopia liberal, com Fukuyama e o fim da história. Por um lado, as ditaduras acomodam-se muito bem no mercado liberal; e, por outro, vemos que a diferença entre a franja mais rica dos ricos e a mais pobre dos pobres não pára de crescer, quer dizer, não há nenhuma realidade correspondente à utopia do fim da história. A ciência é o único domínio dentro do qual podemos ter uma ideia positiva do conceito de progresso. Descobrimos coisas importantes, estamos na fronteira do universo. A razão pela qual não podemos imaginar bem o futuro é porque temos medo do futuro, das situações económicas, por exemplo, há muitas formas de medo. Mas também porque há uma incerteza sobre o que vamos descobrir: há uma democratização da angústia pascaliana. Marc Augé, em entrevista ao jornal argentino Clarín, 08-04-2014. [1] Depois de recentemente ter comissariado a exposição “Nós” na Plataforma Revólver, onde traçava “uma ‘radiografia’ do estado das coisas” [2], Fonte Santa regressa agora com uma exposição individual na galeria VPF Cream Art. O título, O Colapso da Civilização, na senda dos títulos anteriores, revela mais um acrescento a um corpo de trabalho que investiga o contexto socioeconómico, político, nacional e internacional do autor, através de uma abordagem crítica baseada numa apropriação humorada de elementos e técnicas da cultura de massas. Costumam apontar-se influências provenientes do mundo da banda desenhada, da ilustração e do design gráfico, no trabalho de João Fonte Santa. No entanto, mais do que referir esses padrões formais ou iconográficos, as obras de Fonte Santa fazem uso de um território onde a imagem e a palavra vão lado a lado e onde a literatura, o cinema e algumas obras de arte são referências concretas, explícitas. A exposição integra três núcleos de obras, mais um conjunto de dois desenhos a grafite. O primeiro, uma série de diminutas aguarelas que parecem pequenas paisagens bucólicas para se revelarem, vistas mais de perto, retratos de centrais nucleares. A intenção de Fonte Santa era recorrer a este registo da aguarela, comummente associado a um romantismo, a uma ideia de paisagem ideal, e retratar todas as centrais nucleares do mundo como se desconhecêssemos que eram centrais nucleares ou quais são na realidade os seus perigos. Se olharmos bem, as centrais nucleares estão localizadas em sítios isolados, no meio de vegetação densa, parecem fortalezas ou templos, com as suas torres e cúpulas. Esta série, intitulada “Cinquenta e Quatro Centrais Nucleares”, agrupa-se em três níveis na sala, com muitos espaços entre as obras, como se estivéssemos à espera de ir vendo preencher essas falhas com as restantes centrais nucleares. Elas não estão ali representadas, mas estão presentes através dos espaços vazios, que são bem mais do que os ocupados pelas pequenas paisagens. Se “cada civilização deixa para o futuro o melhor de si”, como citou Fonte Santa numa visita, o desastre de Chernobyl criou uma situação paradoxal, além da contaminação radioactiva da zona, criou condições para que a vida selvagem, agora sem a presença humana, pululasse fecundamente em torno do sarcófago de cimento e radiações. Uma futura reserva natural radioactiva. Como diz Augé na entrevista, “é mais fácil falar do passado, porque todos temos coisas a dizer. Mas falar do futuro é difícil.” Para conhecer o futuro é preciso imaginá-lo, no sentido primeiro da palavra, “criar imagens”. A exposição O Colapso da Civilização propõe uma espécie de amostra visual dessa sociedade do futuro, restos recuperados não propriamente de um cataclismo destruidor, mas de uma ruína civilizacional, um progressivo desaparecimento de um tipo de pressupostos sociais que pautaram correntes e linhas de pensamento no século XIX e XX. O que é que resta nessa imagem futura deste nosso mundo supostamente cada vez mais perfeito? Ao olhar para alguns exemplos na parede vemos tecnologias domésticas, laboratórios, programas espaciais, políticos, câmaras de vigilância, “trabalhando para a corporação 7 dias por semana”, automóveis, velocidade... Nesta série de desenhos a marcador, que Fonte Santa diz ter criado de forma quase diarística, reagindo aos acontecimentos quotidianos e documentando a sua experiência imediata perante a sua própria realidade, não há um fio condutor, uma narrativa, uma ordenação pictórica na montagem. São quase como folhas de um calendário destacadas e dispostas ao correr da parede. Tanto esta série como a das aguarelas apresentam o mesmo título, o da exposição. É desta combinação entre um registo rápido da realidade veloz, uma reacção imediata aos acontecimentos diários, e um construir cuidadoso das pequenas paisagens a aguarela, que emerge o verdadeiro Colapso, com “C” grande, aquele que deriva destes processos, destas pequenas acções que todos tomamos no dia a dia e das decisões e programas estratégicos, pensados a longo prazo. Todos os dias somos partícipes na construção/destruição de um futuro. Os três acrílicos presentes na exposição têm os três igualmente o mesmo título: 3ª aparição da virgem a Friedrich von Hayek nas ruínas do Centro para a Investigação do Desconhecido. Nos três figuram animais: uma mulher segura uma serpente, um tigre repousa numa espécie de eco-casa e dois ursos polares parecem olhar a palavra “FANTÁSTICO”, que flutua colorida no céu. A serpente, o tigre e o urso – a fera domesticada, o “capitalismo selvagem” acolhido e alimentado em nossa casa. A referência ao fundador do neoliberalismo, que acreditava que a interferência do Estado na economia levava “a civilização ao colapso”, e ao centro de investigação patrocinado pelo fundo Champalimaud, é uma clara alusão à privatização da investigação na área da saúde, ao direccionamento de verbas para determinadas pesquisas segundo os interesses de um grupo específico da população. E esta civilização em colapso de todas as maneiras, já nem existe no escuro futuro ainda mais longínquo, de grafite sobre papel, onde já nem resquícios do auge da civilização restam. Aqui no meio da desolação, só se vislumbra uma nave alienígena que se aproxima para uma aterragem. A “arqueologia futurista”[3] de Fonte Santa leva-nos do futuro ao presente, e mostra-nos como o criar de imagens de um futuro, não tendo medo da incerteza do vindoiro, poderá ajudar a formar esse mesmo momento. Apesar do “fracasso das utopias do século XIX e do século XX”, interessa atentar nos futuros que não são necessariamente possíveis ou que nunca chegaram a ser. Interessa também perceber o que aconteceu a esses futuros do passado que nunca tiveram o seu presente e perguntarmo-nos se ainda é possível um futuro para os futuros. Liz Vahia Licenciada em Antropologia e doutoranda no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. ::: Notas [1] Disponível em: http://www.revistaenie.clarin.com/ideas/Marc-Auge-antropologo-mundo-global_0_1114688536.html [2] Texto da exposição “Nós”, disponível em: http://www.artecapital.net/plataforma.php?id=44&t=piso1 [3] Expressão contida no texto da presente exposição, disponível aqui: http://www.artecapital.net/vpfcreamart/ ::: [a autora escreve de acordo com a antiga ortografia]
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