Links


ARTES PERFORMATIVAS


ZOMBY. PARA LÁ DO DUBSTEP

RUI MIGUEL ABREU

2011-09-01



 

É um dos gigantes contemporâneos da produção electrónica, mas recusa-se a recolher a recompensa mais óbvia de tal estatuto: participar como dj no circuito internacional de clubes, e isto apesar da sua música ser um claríssimo comentário a essa cultura;

é uma assumidíssima «fashion victim» e no entanto não embarca no jogo do culto da personalidade;

conta com a participação de Panda Bear no seu aclamadíssimo segundo álbum, Dedication, e no entanto deixou os Animal Collective pendurados em Nova Iorque há um par de anos quando acrescentou mais um «no show» à sua já longa e notória lista de cancelamento de espectáculos sem aviso prévio.

Como Banksy, com quem partilha a militância do anonimato, Zomby recusa terminantemente as regras do jogo, enquanto se diverte a reequacionar o passado e a inventar novos futuros em cada disco. «Dedication» é prova clara disso. E um dos mais interessantes registos a conhecer edição em 2011.

 



 

Zomby começou por causar ondas em 2008, quando cada um dos seus novos eps na Hyperdub de Kode9 parecia obrigar a uma redifinição dos limites do dubstep, tal o carácter progressivo do pensamento por trás de cada um dos temas, tão preparados para testar a máxima elasticidade dos mais poderosos woofers dos sistemas de som dos clubes, como para transformar qualquer par de auscultadores num abismo de ambientes profundos, regados a reverb e banhados de luz negra. Ainda assim, perante a sucessão de maxis de 2008 não seria possível prever o que a estreia em álbum traria no ano seguinte: «Where Were U in ’92?» parecia um trabalho criado à medida das teorias de Steve Goodman, cujo estatuto de homem do leme da Hyperdub como Kode9 em nada colide com o seu doutoramento em filosofia ou a publicação do denso tratado teórico Sonic Warfare: Sound, Affect, and the Ecology of Fear. Para Goodman, a visão de cada um dos capítulos da história da música de dança electrónica em Inglaterra não pode ser encarada de forma estanque. Tanto o público como certa crítica têm a tendência para encarar o aparecimento de novas tipologias como uma licença para o total branqueamento do passado, como se acid house, digital dancehall, drum n’ bass, garage, grime, dubstep e as múltiplas variações e desvios de cada uma dessas sonoridades fossem sempre um novo princípio e não uma continuação. O UK Hardcore Continuum que pontua o discurso académico de Steve Goodman é também a mais forte linha condutora do trabalho de Zomby. Em «Where Were U in ’92?» foi a memória do som das raves que serviu que lastro conceptual para a criação de 14 ferozes e curtas declarações de intenções. Algum dos temas tinham pouco mais de um minuto e o mais longo pouco se estendia para lá dos 4 minutos e meio, muito pouco se tivermos em conta as tais regras do universo da música criada a pensar nos clubes.


No novíssimo «Dedication» a gestão temporal das composições volta a ser uma questão: algures entre os 51 segundos e os 4 minutos e três segundos encontra-se o fôlego do mais sombrio dos trabalhos de Zomby. A começar na capa de um negro reasgado apenas pelo lettering que nos revela o nome do artista, do álbum e dos temas que o compõem, e prolongando-se para os títulos - «Witch Hunt», «Black Orchid», «Riding with Death», «Vortex», «Things Fall Apart», «Lucifer», «A Devil Lay Here» ou «Haunted» - este é um trabalho de uma negritude imensa que se espelha ainda nos arranjos, nos acordes menores que regem as densas texturas digitais ou nos harmónicos suspensos das notas de piano banhadas em reverb. Zomby tem essa capacidade de tanto evocar o mais desolado dos desertos gelados do norte, como a densa folhagem de uma floresta tropical. E tudo com o recurso a simples arpeggios de sintetizador. Ao nível da produção, Zomby é absolutamente imbatível e a gestão dos seus temas tão cirúrgica que se sente que qualquer simples adição a um destes arranjos colocaria em causa o delicado equilíbrio de que parecem usufruir. E depois há as programações rítmicas: a lição que Zomby oferece com a verdadeira aceleração de partículas em que se traduz a sua sequenciação de pratos de choque no tema inaugural, «Witch Hunt» (piscadela de olho clara ao Witch House à sua natural obsessão pelo R&B digital norte-americano), pode vir a render uma explosão para quem ouse seguir-lhe a inspiração. Uma vez mais, Zomby não se escusa a comentar a paisagem electrónica que se ergue à sua volta, procurando um lugar no Continuum, forçando os seus limites.


E depois há o trabalho com vozes em «Natalia’s Song», o primeiro single, e «Things Fall Apart». No primeiro caso, a voz de Irina Dubtsova (revelada no X Factor russo!!!) é retalhada para se compor um monumento gótico de beleza sublime onde antes existia apenas um pré-fabricado pop anódino. No segundo caso, é Noah Lennox, aka Panda Bear, que ajuda a transformar «Things Fall Apart» numa das canções do ano, portento que arranca com uma sirene e um tiro e que inunda de frequências graves o tanque de reverb em que o homem de Tomboy normalmente flutua.




«Dedication» não é apenas um dos álbuns do ano. É muito provavelmente um dos álbuns do futuro, 35 minutos de beleza negra, digital e profunda cujo alcance ainda demorará muito a medir correctamente.


http://www.myspace.com/zombyproductions

http://www.discogs.com/artist/Zomby


 

 

 




Outros artigos:

2024-06-20


ONDE ESTÁ O PESSOA?
 

2024-05-17


ΛƬSUMOЯI, DE CATARINA MIRANDA
 

2024-03-24


PARADIGMAS DA CONTÍNUA METAMORFOSE NA CONSTRUÇÃO DO TEMPO EM MOVIMENTO // A CONQUISTA DE UMA PAISAGEM AUTORAL HÍBRIDA EM CONTÍNUA CAMINHADA
 

2024-02-26


A RESISTÊNCIA TEMPORAL, A PRODUÇÃO CORPORAL E AS DINÂMICAS DE LUTA NA ARTE CONTEMPORÂNEA
 

2023-12-15


CAFE ZERO BY SOREN AAGAARD, PERFORMA - BIENAL DE ARTES PERFORMATIVAS
 

2023-11-13


SOBRE O PROTEGER E O SUPLICAR – “OS PROTEGIDOS” DE ELFRIEDE JELINEK
 

2023-10-31


O REGRESSO DE CLÁUDIA DIAS. UM CICLO DE CRIAÇÃO DE 10 ANOS A EMERGIR DA COLEÇÃO DE LIVROS DO SEU PAI
 

2023-09-12


FESTIVAL MATERIAIS DIVERSOS - ENTREVISTA A ELISABETE PAIVA
 

2023-08-10


CINEMA INSUFLÁVEL: ENTREVISTA A SÉRGIO MARQUES
 

2023-07-10


DEPOIS DE METADE DOS MINUTOS - ENTREVISTA A ÂNGELA ROCHA
 

2023-05-20


FEIOS, PORCOS E MAUS: UMA CONVERSA SOBRE A FAMÍLIA
 

2023-05-03


UMA TERRA QUE TREME E UM MAR QUE GEME
 

2023-03-23


SOBRE A PARTILHA DO PROCESSO CRIATIVO
 

2023-02-22


ALVALADE CINECLUBE: A PROGRAMAÇÃO QUE FALTAVA À CIDADE
 

2023-01-11


'CONTRA O MEDO' EM 2023 - ENTREVISTA COM TEATROMOSCA
 

2022-12-06


SAIR DE CENA – UMA REFLEXÃO SOBRE VINTE ANOS DE TRABALHO
 

2022-11-06


SAMOTRACIAS: ENTREVISTA A CAROLINA SANTOS, LETÍCIA BLANC E ULIMA ORTIZ
 

2022-10-07


ENTREVISTA A EUNICE GONÇALVES DUARTE
 

2022-09-07


PORÉM AINDA. — SOBRE QUASE UM PRAZER DE GONÇALO DUARTE
 

2022-08-01


O FUTURO EM MODO SILENCIOSO. SOBRE HUMANIDADE E TECNOLOGIA EM SILENT RUNNING (1972)
 

2022-06-29


A IMPORTÂNCIA DE SER VELVET GOLDMINE
 

2022-05-31


OS ESQUILOS PARA AS NOZES
 

2022-04-28


À VOLTA DA 'META-PERSONAGEM' DE ORGIA DE PASOLINI. ENTREVISTA A IVANA SEHIC
 

2022-03-31


PAISAGENS TRANSDISCIPLINARES: ENTREVISTA A GRAÇA P. CORRÊA
 

2022-02-27


POÉTICA E POLÍTICA (VÍDEOS DE FRANCIS ALŸS)
 

2022-01-27


ESTAR QUIETA - A PEQUENA DANÇA DE STEVE PAXTON
 

2021-12-28


KILIG: UMA NARRATIVA INSPIRADA PELO LOST IN TRANSLATION DE ANDRÉ CARVALHO
 

2021-11-25


FESTIVAL EUFÉMIA: MULHERES, TEATRO E IDENTIDADES
 

2021-10-25


ENTREVISTA A GUILHERME GOMES, CO-CRIADOR DO ESPECTÁCULO SILÊNCIO
 

2021-09-19


ALBUQUERQUE MENDES: CORPO DE PERFORMANCE
 

2021-08-08


ONLINE DISTORTION / BORDER LINE(S)
 

2021-07-06


AURORA NEGRA
 

2021-05-26


A CONFUSÃO DE SE SER NÓMADA EM NOMADLAND
 

2021-04-30


LODO
 

2021-03-24


A INSUSTENTÁVEL ORIGINALIDADE DOS GROWLERS
 

2021-02-22


O ESTRANHO CASO DE DEVLIN
 

2021-01-20


O MONSTRO DOS PUSCIFER
 

2020-12-20


LOURENÇO CRESPO
 

2020-11-18


O RETORNO DE UM DYLAN À PARTE
 

2020-10-15


EMA THOMAS
 

2020-09-14


DREAMIN’ WILD
 

2020-08-07


GABRIEL FERRANDINI
 

2020-07-15


UMA LIVRE ASSOCIAÇÃO DO HERE COME THE WARM JETS
 

2020-06-17


O CLASSICISMO DE NORMAN FUCKING ROCKWELL!
 

2019-07-31


R.I.P HAYMAN: DREAMS OF INDIA AND CHINA
 

2019-06-12


O PUNK QUER-SE FEIO - G.G. ALLIN: UMA ABJECÇÃO ANÁRQUICA
 

2019-02-19


COSEY FANNI TUTTI – “TUTTI”
 

2019-01-17


LIGHTS ON MOSCOW – Aorta Songs Part I
 

2018-11-30


LLAMA VIRGEM – “desconseguiste?”
 

2018-10-29


SRSQ – “UNREALITY”
 

2018-09-25


LIARS – “1/1”
 

2018-07-25


LEBANON HANOVER - “LET THEM BE ALIEN”
 

2018-06-24


LOMA – “LOMA”
 

2018-05-23


SUUNS – “FELT”
 

2018-04-22


LOLINA – THE SMOKE
 

2018-03-17


ANNA VON HAUSSWOLFF - DEAD MAGIC
 

2018-01-28


COUCOU CHLOÉ
 

2017-12-22


JOHN MAUS – “SCREEN MEMORIES”
 

2017-11-12


HAARVÖL | ENTREVISTA
 

2017-10-07


GHOSTPOET – “DARK DAYS + CANAPÉS”
 

2017-09-02


TATRAN – “EYES, “NO SIDES” E O RESTO
 

2017-07-20


SUGESTÕES ADICIONAIS A MEIO DE 2017
 

2017-06-20


TIMBER TIMBRE – A HIBRIDIZAÇÃO MUSICAL
 

2017-05-17


KARRIEM RIGGINS: EXPERIÊNCIAS E IDEIAS SOBRE RITMO E HARMONIAS
 

2017-04-17


PONTIAK – UM PASSO EM FRENTE
 

2017-03-13


TRISTESSE CONTEMPORAINE – SEM ILUSÕES NEM DESILUSÕES
 

2017-02-10


A PROJECTION – OBJECTOS DE HOJE, SÍMBOLOS DE ONTEM
 

2017-01-13


AGORA QUE 2016 TERMINOU
 

2016-12-13


THE PARKINSONS – QUINZE ANOS PUNK
 

2016-11-02


patten – A EXPERIÊNCIA DOS SENTIDOS, A ALTERAÇÃO DA PERCEPÇÃO
 

2016-10-03


GONJASUFI – DESCIDA À CAVE REAL E PSICOLÓGICA
 

2016-08-29


AGORA QUE 2016 VAI A MEIO
 

2016-07-27


ODONIS ODONIS – A QUESTÃO TECNOLÓGICA
 

2016-06-27


GAIKA – ENTRE POLÍTICA E MÚSICA
 

2016-05-25


PUBLIC MEMORY – A TRANSFORMAÇÃO PASSO A PASSO
 

2016-04-23


JOHN CALE – O REECONTRO COM O PASSADO EM MAIS UMA FACE DO POLIMORFISMO
 

2016-03-22


SAUL WILLIAMS – A FORÇA E A ARTE DA PALAVRA ALIADA À MÚSICA
 

2016-02-11


BIANCA CASADY & THE C.I.A – SINGULARES EXPERIMENTALISMO E IMAGINÁRIO
 

2015-12-29


AGORA QUE 2015 TERMINOU
 

2015-12-15


LANTERNS ON THE LAKE – SOBRE FORÇA E FRAGILIDADE
 

2015-11-11


BLUE DAISY – UM VÓRTEX DE OBSCURA REALIDADE E HONESTA REVOLTA
 

2015-10-06


MORLY – EM REDOR DE REVOLUÇÕES, REFORMULAÇÕES E REINVENÇÕES
 

2015-09-04


ABRA – PONTO DE EXCLAMAÇÃO, PONTO DE EXCLAMAÇÃO!! PONTO DE INTERROGAÇÃO?...
 

2015-08-05


BILAL – A BANDEIRA EMPUNHADA POR QUEM SABE QUEM É
 

2015-07-05


ANNABEL (LEE) – NA PRESENÇA SUPERIOR DA PROFUNDIDADE E DA EXCELÊNCIA
 

2015-06-03


ZIMOWA – A SURPREENDENTE ORIGEM DO FUTURO
 

2015-05-04


FRANCESCA BELMONTE – A EMERGÊNCIA DE UMA ALMA VELHA JOVEM
 

2015-04-06


CHOCOLAT – A RELEVANTE EXTRAVAGÂNCIA DO VERDADEIRO ROCK
 

2015-03-03


DELHIA DE FRANCE, PENTATONES E O LIRISMO NA ERA ELECTRÓNICA
 

2015-02-02


TĀLĀ – VOLTA AO MUNDO EM DOIS EP’S
 

2014-12-30


SILK RHODES - Viagem no Tempo
 

2014-12-02


ARCA – O SURREALISMO FUTURISTA
 

2014-10-30


MONEY – É TEMPO DE PARAR
 

2014-09-30


MOTHXR – O PRAZER DA SIMPLICIDADE
 

2014-08-21


CARLA BOZULICH E NÓS, SOZINHOS NUMA SALA SOTURNA
 

2014-07-14


SHAMIR: MULTI-CAMADA AOS 19
 

2014-06-18


COURTNEY BARNETT
 

2014-05-19


KENDRA MORRIS
 

2014-04-15


!VON CALHAU!
 

2014-03-18


VANCE JOY
 

2014-02-17


FKA Twigs
 

2014-01-15


SKY FERREIRA – MORE THAN MY IMAGE
 

2013-09-24


ENTRE O MAL E A INOCÊNCIA: RUTH WHITE E AS SUAS FLOWERS OF EVIL
 

2013-07-05


GENESIS P-ORRIDGE: ALMA PANDRÓGINA (PARTE 2)
 

2013-06-03


GENESIS P-ORRIDGE: ALMA PANDRÓGINA (PARTE 1)
 

2013-04-03


BERNARDO DEVLIN: SEGREDO EXÓTICO
 

2013-02-05


TOD DOCKSTADER: O HOMEM QUE VIA O SOM
 

2012-11-27


TROPA MACACA: O SOM DO MISTÉRIO
 

2012-10-19


RECOLLECTION GRM: DAS MÁQUINAS E DOS HOMENS
 

2012-09-10


BRANCHES: DOS AFECTOS E DAS MEMÓRIAS
 

2012-07-19


DEVON FOLKLORE TAPES (II): SEGUNDA PARTE DA ENTREVISTA COM DAVID CHATTON BARKER
 

2012-06-11


DEVON FOLKLORE TAPES - PESQUISAS DE CAMPO, FANTASMAS FOLCLÓRICOS E LANÇAMENTOS EM CASSETE
 

2012-04-11


FC JUDD: AMADOR DA ELETRÓNICA
 

2012-02-06


SPETTRO FAMILY: OCULTISMO PSICADÉLICO ITALIANO
 

2011-11-25


ONEOHTRIX POINT NEVER: DA IMPLOSÃO DOS FANTASMAS
 

2011-10-06


O SOM E O SENTIDO – PÁGINAS DA MEMÓRIA DO RADIOPHONIC WORKSHOP
 

2011-09-01


ZOMBY. PARA LÁ DO DUBSTEP
 

2011-07-08


ASTROBOY: SONHOS ANALÓGICOS MADE IN PORTUGAL
 

2011-06-02


DELIA DERBYSHIRE: O SOM E A MATEMÁTICA
 

2011-05-06


DAPHNE ORAM: PIONEIRA ELECTRÓNICA E INVENTORA DO FUTURO
 

2011-03-29


TERREIRO DAS BRUXAS: ELECTRÓNICA FANTASMAGÓRICA, WITCH HOUSE E MATER SUSPIRIA VISION
 

2010-09-04


ARTE E INOVAÇÃO: A ELECTRODIVA PAMELA Z
 

2010-06-28


YOKO PLASTIC ONO BAND – BETWEEN MY HEAD AND THE SKY: MÚLTIPLA FANTASIA EM MÚLTIPLOS ESTILOS