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© Filipe Ferreira
Aurora Negra estreou o ano passado no Teatro Nacional D. Maria II (TDMII), e volta agora a esta casa um ano depois. Uma instituição cultural como o TDMII ao colocar em cena pela segunda vez esta peça, é já um acto significativo: que a cúpula cultural reconhece a necessidade de tornar visíveis estes corpos. A estes corpos é negado constantemente o acesso à construção das suas narrativas, quer seja pela sua ausência nas criações da maioria vigente, ou pela sua presença que quando existente é muitas vezes justificada e remetida a estereótipos e preconceitos. Este espetáculo foi vencedor da segunda edição da Bolsa Amélia Rey Colaço. A criação artística, a direcção, e a interpretação são de Cleo Tavares, Isabel Zuaa, e Nádia Yracema. A produção é da associação cultural A CAMA e é co-produzido pelo TDMII, Centro Cultural Vila Flor, Espaço do Tempo, Teatro Viriato, apoiado pelo Alkantara e Casa Independente.
Ao nível artístico, é difícil não referir que Aurora Negra continua amarrada aos velhos moldes teatrais e a uma maneira de fazer teatro conservadora. Apesar do tema ser tudo menos conservador, a postura dos corpos em cena, o modo de dizer o texto e a dramaticidade das personagens estão longe dos lugares de experimentação performativa e cénica que pautam no panorama mais alternativo das artes performativas em Portugal. Contudo, esta peça é indispensável a este mesmo panorama, e felizmente voltou a estar em cena um ano depois da sua estreia.
© Filipe Ferreira
Esta peça representa a urgência dos corpos negros, urgência que continuará ainda durante muito tempo uma vez que estamos bastante longe de uma consciência colectiva política de que a nossa sociedade é estruturalmente racista. O discurso do revisionismo histórico colonial acabou de começar em Portugal, ao contrário de países como a França, a Inglaterra, o Brasil ou os EUA. Dizer isto não é dizer que a desigualdade social e económica das minorias racializadas nestes países esteja resolvida. Não está, e os seus contextos sociais e políticos, tal com o português, são terríveis, ainda profundamente racistas e discriminatórios. Estes valores estão institucionalizados pelo Estado, e nos países aqui referidos, esta ideia é já aceite como facto cientifico, é já amplamente partilhada pela grande maioria da comunidade académica das ciências sociais e humanas e por partes significativas da sociedade civil, como a juventude. Em Portugal, o pensamento desta comunidade científica vai na mesma direcção, mas ainda em atraso, sendo pouco contagiante na sociedade civil.
A luta antirracista nesta peça está naturalmente associada á luta da comunidade LGBTQIA+ e à comunidade imigrante. A violência exercida sobre a comunidade afro-descente em Portugal é a mesma a violência exercida nestas comunidades. E o grande motivo pelo qual continua a ser exercida é também o mesmo: a fobia à comunidade imigrante e a qualquer reivindicação sexual-política da comunidade LGBTQIA+ é também institucional. O Estado é nacionalista, racista e patriarcal, tal como todos os outros Estados que tenham passado colonial, sejam eles colonizadores ou colonizados. É claro que os Estados outrora colonizadores, têm hoje que enfrentar e se responsabilizar pelas acções desse passado histórico. Seria e será absolutamente inaceitável não o fazerem. O sofrimento, a dor, a culpabilização, a injustiça e a vergonha passam, e vão continuar a passar de geração em geração pelas histórias daqueles que conhecem tudo isto. Muitas delas conhecem-nas pela experiência, outras tantas pela voz dos pais e dos avós que as experienciaram. É certo que são casos diferentes, mas não me parece relevante medir a intensidade daquele que está mais traumatizado: estão ambos. Mesmo os filhos e as filhas que não vivenciaram o horror da guerra colonial, da violência da migração forçada e do trabalho escravo sabem sobre a sua realidade por testemunhos em primeira mão. Estas histórias são parte muito importante das referências históricas e do imaginário destas pessoas, uma vez que todas elas sofrem ainda hoje do mesmo racismo que sofriam os seus pais e avós. A violência um dia exercida nos seus familiares, é a violência exercida hoje nos seus corpos, e é justificada ideologicamente da mesma forma.
© Filipe Ferreira
Estados colonizados como o Brasil ou os Estados Unidos (não obstante o último ter-se tornado também ele um estado colonizador) reproduzem inevitavelmente mecanismo e formas de fazer da era colonial. A cultura política, a educação, os atavismos e a mentalidade social não são obviamente indiferentes a quinhentos anos de colonialismo. O poder político e as elites económicas reproduzem os mecanismos de descriminação e desigualdade do colonialismo, perpetuando a estigmatização do pobre e alimentando a guerra entre classes sociais. Contudo, são em países como o Brasil que a luta antirracista toma dimensões significativas e extraordinárias, inspirando a luta das comunidades racializadas em todo o mundo. Por aqui, a luta vai se fazendo, infelizmente de forma muito lenta, mas com manifestações de esperança e alento que nos fazem olhar para a frente, como é o caso deste espectáculo.
Rodrigo Fonseca
Licenciado em História da Arte pela FCSH/UNL, e pós-Graduado em Artes Cénicas pela mesma faculdade. Viajou pela Europa central, pelos Balcãs, América do Sul, e viveu em Itália, Grécia e Brasil. O seu trabalho artístico desenvolve-se na música e no corpo. Organiza e programa os festivais culturais Dia Aberto às Artes (Mafra) e Sintra Con-Cê (Sintra) e é membro fundador da associação cultural A3 - Apertum Ars e da editora CusCus Discus.