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É fácil adivinhar as intenções de Todd Haynes: e se fizéssemos um filme sobre rock ‘n’ roll que fosse também sobre arte? Sim, um filme sobre arte, e não um filme artístico. Em 1998, Haynes mostrava-se optimista quanto à possibilidade de prestar ao rock o mais perfeito tributo cinematográfico. É injusto acusar-se Haynes de optimismo desmedido. Apesar de projectos semelhantes terem produzido generosos tributos como The Rocky Horror Picture Show e Phantom of the Paradise, estes não foram propriamente filmes sobre arte, mas filmes artísticos.
Como os seus predecessores, Velvet Goldmine é dedicado à instância mais excêntrica da história do rock: a era do glam-rock. David Bowie, Roxy Music, Lou Reed, Iggy Pop, Slade, T-Rex. Revolucionários que se dedicaram à missão de casar a pop com o avant-garde. No fundo, consequências óbvias dos anos 60.
Enquanto efeito dos 60, o glam foi uma emancipação. Uma emancipação das limitações estéticas e morais da cultura hippie. Crosby, Stills, Nash & Young eram músicos indiscutivelmente talentosos, mas pareciam agricultores. E em 1969, o free-love não era ainda livre o suficiente – a não ser que se estivesse num certo bairro de São Francisco, onde homossexuais não precisavam de declarar que estavam só a experimentar.
Cinematograficamente, um dos primeiros pedidos de divórcio à cultura hippie dá pelo nome de Phantom of the Paradise. O musical de 74 propôs-se a divulgar os princípios estéticos do glam justapondo-os com O Fantasma da Ópera, Fausto e O Retrato de Dorian Gray. As purpurinas, o eyeliner e o latex declaram guerra à geração anterior numa saturnália musical de nostalgia, ficção científica e bissexualidade. Apesar de bem-sucedido, Phantom of the Paradise foi ofuscado pelo seu sucessor de 75, The Rocky Horror Picture Show, baseado num musical da Broadway com mesmo nome. Um filme que levou a melhor pela simplicidade formal.
Apesar do começo glorioso, o glam morreu cedo. Mas deixou herdeiros. A partir de 76, os primeiros punk-rockers diluíram a excentricidade do glam numa jovialidade furiosa que redefiniu a atitude do rock. E, nos anos 80, quando o eyeliner e o blush se consagraram como propriedades essenciais da estrela de synth-pop, tornou-se óbvio que o glam tinha acrescentado um tronco à árvore genealógica da música popular.
Problemática é, contudo, a busca pelas origens do glam. Enquanto alguns afirmarão que o seu berço foi indubitavelmente o Reino Unido, o país que exportou Bowie, Roxy Music, Slade e T-Rex, outros replicarão que sem as influências de Lou Reed e Iggy Pop, entre outros marginais do underground estadunidense, o glam nunca teria existido. Poder-se-ia ir mais longe e afirmar que caso Little Richard não se tivesse dado à ousadia de usar eyeliner enquanto cantava sobre fruta, David Bowie teria sido um engenheiro... Tal não só seria ridículo como ilustraria o quão desesperadas são as respostas de quem procura uma só origem para as coisas.
Mas, sem grandes preocupações cépticas, Todd Haynes apresenta-nos a sua resposta: tudo começou com Oscar Wilde. Ao contrário de The Phantom of the Paradise, Velvet Goldmine é um filme cujas referências literárias não servem de mero adereço estético. O que une Wilde e Bowie não é uma excêntrica arbitrariedade do realizador, mas uma verdadeira filosofia da arte. Os epigramas wildeanos que as personagens de Velvet Goldmine proferem como se fossem seus, pretendem justificar intelectualmente a «artificialidade» do glam. O romantismo que Wilde subscreve em The Critic as Artist ecoa nas vozes do staff do músico Brian Slade, epicentro da narrativa. A missão de Slade é a de ser o mais artificial possível, e de apresentar a realidade como ela não é. Para tal, o músico protagoniza uma revolução cultural através do alter-ego Maxwell Demon, uma estrela de rock alienígena que visita a Terra, acabando por ser assassinada pelo próprio sucesso – ecoando o icónico Ziggy Stardust de David Bowie.
Note-se que o nome de Brian Slade não coincide acidentalmente com o primeiro nome de Brian Eno, membro fundador dos Roxy Music, e com o da banda Slade. Em Velvet Golmine não existem acidentes. Os nomes e as histórias das personagens coincidem com os nomes e as histórias de entidades reais. O próprio fio condutor da narrativa emula parte dos primeiros anos da carreira de Bowie. E com a vida de Bowie cruzam-se as vidas de Iggy Pop e Lou Reed; dois músicos diluídos na mescla identitária de Curt Wilde, inspiração musical e sexual de Brian Slade.
O trágico romance entre Brian Slade e Curt Wilde é uma recordação de Artur Stuart, o jornalista britânico interpretado por um jovem e inexpressivo Christian Bale. No cinzento ano de 1984, o jornalista vê-se profissionalmente comprometido a investigar o desaparecimento de Slade – que, após forjar o assassinato da persona Maxwell Demon, condena o glam-rock à extinção. As investigações de Stuart conduzem-no a uma viagem instrospectiva pela adolescência, recordando a importância do glam na descoberta da sua própria identidade sexual. A inexpressividade com a qual Bale interpreta Stuart parece justificada pelo desgosto que a personagem sente ao comparar o passado com o presente: a azáfama multicolorida dos anos do glam com a quietude monocromática de 1984.
Haynes faz uso de Stuart para nos dizer o seguinte: a filosofia estética do glam assentava na máxima de que o artista tem o dever de criar algo que seja imitado. Esta mensagem é repetida vezes e vezes ao longo do filme. É-nos ilustrada pela alternância entre performances musicais maiores do que a vida e demonstrações dos efeitos que as mesmas surtem na imaginação adolescente. É-nos proferida pelas personagens do filme, quando estas declaram aforisticamente os princípios estéticos que justificam Maxwell Demon. A figura da estrela de rock é, de certa forma, responsável por estimular a imaginação do público e de lhe oferecer um outro mundo, um mundo artificial com o qual se poderá adornar o mundo real. A desilusão de Stuart incide sobre o aparente facto do mundo real se ter tornado demasiado realista. As figuras da pop perderam o seu fulgor aristocrático e tornaram-se imitações do homem-comum. Por outras palavras, em 1984, a vida deixou de imitar a arte e arte passou a imitar a vida. Velvet Goldmine é também uma distopia realista.
Mas claro, a filosofia da arte que o filme tenta e consegue transmitir poderia muito bem passar despercebida – ou ser meramente desinteressante – caso Haynes não se tivesse dado ao esforço de produzir uma magnífica banda sonora. É interessante notar que o filme não conta com uma única música de David Bowie, e que uma selecção curiosa de músicos como Thom Yorke, Brian Molko e a banda Pulp interpretam brilhantemente versões de temas dos Roxy Music, Slade, New York Dolls e Steve Harley & Cockney Rebel. Jonathan Rhys Meyers, que interpreta Brian Slade, oferece-nos curiosas prestações vocais que não ficam atrás das dos músicos que tenta invocar. Talvez o mais ilustre exemplo de uma surpreendente performance por parte de um actor, seja a cena em que Ewan McGregor, sob a figura de Curt Wilde, protagoniza uma incendiária versão da canção “Gimme Danger”, de Iggy Pop. Seria lamentável se a comercialização do filme não se tivesse feito acompanhar de um álbum com a banda-sonora. Felizmente, o álbum foi lançado, mas nele não constam as vozes de Meyers e McGregor – e é uma pena.
Velvet Golmine é um multiverso. Uma pluralidade estética, narrativa e intelectual que Haynes tentou homogeneizar num magnífico tributo ao rock e a Oscar Wilde. É possível, e talvez justo, que se acuse Haynes de ter tentado construir uma realidade com demasiadas camadas. Claramente, uma infeliz consequência dessa tentativa é a de que algumas dessas camadas passem despercebidas. Para este problema, a solução que eu apresento é a de rever o filme. Tal como uma obra de Wilde, Velvet Goldmine pretende dizer muito de uma vez. Mas com uma eventual revisita à obra encontraremos, garantidamente, algo de novo e precioso.
André Fontes
Licenciado em Filosofia, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e pós-graduado em Artes da Escrita, pela Universidade Nova de Lisboa. André publicou, em 2019, o seu primeiro romance, Saturnália, editado pela Guerra e Paz Editores.