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Para conhecer realmente um objecto, é preciso captar e investigar todos os seus aspectos, todas as relações e “mediações”. Lenine
Anteriormente falei do núcleo da teoria dos quanta: as propriedades das coisas são [apenas] relativas a outras coisas e realizam-se nas interações. Neste momento descrevo o fenómeno que mais manifesta essa interdependência das coisas - o entrelaçamento quântico.
Um entrelaçamento é a situação em que duas coisas ou duas pessoas permanecem de alguma forma interligadas, em sentido literal ou figurado. Emaranhamento, envolvimento, entrelaçamento, relacionamento sentimental… Na física dos quanta, denomina-se “entrelaçamento quântico”, a ideia de que, quando dois objectos são coerentes entre si (vibrando da mesma maneira), permanecem coerentes, mesmo que separados por vastas distâncias - por exemplo dois electrões que se encontraram no passado e conseguem uma espécie de estranheza de ligação, como capazes de instantaneamente continuar a conversar/ a trocar informações muito à semelhança de duas pessoas apaixonadas e distantes que advinham os pensamentos uma da outra, independentemente da distância entre elas, duplicando assim o número de interações possíveis.
Trata-se de um fenómeno bem comprovado em laboratório. Recentemente, cientistas chineses conseguiram manter num estado de entrelaçamento dois fotões a milhares de quilómetros um do outro. A teoria do entrelaçamento revela que duas partículas mantêm comportamentos similares, podendo estar simultaneamente em locais ou estados diferentes, porque de alguma forma interagiram no passado ou têm uma origem em comum, que leva ao entrelaçamento.
Para que, no entanto, nos possamos familiarizar com o que está aqui em questão, é necessário tornar visível o acontecimento do entrelaçamento quântico: para esta tentativa escolhemos a obra de Pollock, que procura tornar visível este acontecimento. Se algo caracteriza o dripping é o entrelaçamento.
Jackson Pollock (1912-1956)
Simone Weil chamava aos nossos corpos "uma fonte de mistério que não podemos eliminar". Em cadernos que manteve durante a II Guerra Mundial, Weil escreveu sobre a gravidade e a graça. Não é próprio de Pollock o estar numa rede de entrelaçamentos sujeito às leis da física quântica, da qual na altura nada sabia? Só que o agora visível continua ainda sem nos dizer como é que dois eletrões que se encontraram no passado e conseguem uma espécie de estranheza de ligação, mantêm comportamentos similares.
Por isso, o “entrelaçamento” constitui o fenómeno quântico que mais fez sonhar. O verdadeiro traço característico da mecânica quântica como Schrödinger ressaltou. Trata-se de um fenómeno subtil, que encanta. É o fenómeno mais estranho, o que mais nos distancia do nosso velho mundo.
Para compreender como o futuro está a evoluir, é importante recordar que:
Essencialmente, todos os computadores modernos se baseiam em informação digital, que pode ser codificada numa série de 0s e 1s. A unidade + pequena de informação, um único dígito, chama-se bit. Esta sequência de 0s e 1s é introduzida num processador digital, que efectua o cálculo e produz então um resultado. Por exemplo, a sua ligação à internet pode medir-se em termos de bits por segundo, ou bps, o que significa que mil milhões de bits são enviados para o seu computador a cada segundo, dando-lhe + acesso instantâneo a filmes, emails, documentos, etc. A potência de um computador digital está relacionada com o número de estados (os 0s ou 1s) que há no computador.
Contudo, Em 1959, Richard Feynman (Nova York, 11 de maio de 1918 - Los Angeles, 15 de fevereiro de 1988), o físico galardoado com um Nobel, viu uma abordagem diferente à informação digital. Num ensaio profético e revolucionário intitulado “There’s Plenty of Room at the Bottom” perguntou: porque não substituir esta sequência de 0s e 1s por estados de átomos, criando assim um computador atómico? Porque não substituir os transístores pelo objecto + pequeno possível, o átomo? Feynman anteviu a nanociencia quando propôs: Porque não podemos escrever todos os 24 volumes da Enciclopédia Britânica na cabeça de um alfinete? A resposta sustentada por argumentos matemáticos também era simples: Basta reduzir em 25 mil vezes o tamanho de tudo o que está escrito na enciclopédia.
Portanto, na matéria a nível atómico e molecular a situação parece bem diferente.
Os átomos são como piões
Origem (2010), Christopher Nolan.
Num campo magnético, podem alinhar-se quer para cima, quer para baixo relativamente ao campo magnético, o que corresponde a um 0 ou a um 1. No entanto, devido às estranhas leis do mundo subatómico, os átomos podem também girar em qualquer combinação dos dois. Na verdade, há um número infinito de formas como um átomo pode girar. Podem existir simultaneamente em múltiplos estados como sabemos. Isso aumenta vastamente o número de estados possíveis.Assim, o átomo pode transportar muito + informação, não apenas um bit, mas um qubit, ou seja, uma mistura simultânea dos estados para cima e para baixo. Os bits digitais só conseguem transportar um bit de informação de cada vez, o que limita a sua potência, mas os qubits, ou bits quânticos, têm uma potência quase ilimitada. (A essa escala, os eletrões podem estar em dois lugares ao mesmo tempo, o que não é verdade para objectos maiores.) Um sistema em escala atómica constituído por átomos, eletrões, etc, pode estar num estado 0 ou 1 ou pode estar num estado como sendo 0 e 1 ao mesmo tempo, o que é muito surpreendente. Recordo que estamos a uma escala diferente não clássica, multiverso [muitos mundos].
Este avanço representa um marco significativo na física da matéria condensada e expande a nossa compreensão sobre as fronteiras entre o comportamento clássico e quântico da matéria. Diz-se que a fase condensada aparece sempre que o número de constituintes de um sistema é extremamente grande e as interações entre os constituintes (átomos, eletrões, etc) são fortes.
Adicionalmente, estes qubits podem entrelaçar-se / estar em mútua relação / interagir uns com os outros, o que não é possível com os bits comuns. Basicamente, qualquer sistema quântico capaz de sobrepor estados de 0s e1s e entrelaçá-los de modo que possam processar essa informação pode tornar-se um computador quântico. Enquanto os ‘bits’ digitais têm estados independentes, de cada vez que adicionamos outro qubit (ou bit quântico) ele interage com todos os qubits anteriores, duplicando assim o número de interações possíveis. Significa que mesmo que os qubits num computador quântico se separem, podem ainda assim interagir uns com os outros, o que é responsável pela fantástica capacidade computacional dos computadores quânticos. Portanto os computadores quânticos são de modo inerente exponencialmente + potentes do que os computadores digitais, porque duplicamos o número de interações de cada vez que adicionamos mais um qubit. Por exemplo, os computadores quânticos atuais podem ter + de cem qubits. Isto significa que são 2 elevado a 100 vezes + potentes do que um supercomputador com apenas um qubit. Assim um computador quântico deixa muito para trás um computador convencional.
Chegamos assim à essência do porquê de os computadores quânticos serem tão únicos e úteis. Um computador digital comum, de certa forma, é como vários contabilistas a trabalharem independentemente num escritório, cada um a fazer os seus cálculos de forma separada, passando as respostas entre si. Um computador quântico, no entanto, é como uma sala cheia de contabilistas em interação, cada um a computar e, + importante ainda, a comunicar simultaneamente com os outros por via do entreleçamento. Dizemos assim que estão a resolver o problema juntos coerentemente. Por outras palavras, tanto um computador clássico como um computador quântico fatorizam essencialmente da mesma forma, excepto que o computador quântico computa sobre muitos estados em simultâneo, o que acelera grandemente o processo.
A fusão entre Inteligência Artificial e computadores quânticos
Uma limitação da I.A. é que as vastas quantidades de dados que temos de processar podem facilmente ultrapassar os limites de um computador digital convencional. Todavia, a capacidade de analisar montanhas de dados é um dos pontos fortes dos computadores quânticos. Assim, a sinergia entre I.A. e computadores quânticos pode aumentar de forma significativa a sua potencia para resolver todo o tipo de problemas.
Nestas circunstâncias, regresso ao entrelaçamento quântico
Entrelaçamento quântico em objectos macroscópicos. Imagem Macro Edition
Eis o que nos deixa perplexos no entrelaçamento quântico: como é que, por exemplo, duas pessoas decidem em moldes iguais, podendo estar simultaneamente em locais diferentes, sem terem combinado antes e sem terem enviado mensagens uma à outra? O que os liga? Parece um quebra-cabeças sem solução!
— Antes de tudo, duas pessoas emaranhadas têm características em mútua relação/ correlatas, ou seja, se uma é feliz, a outra também é feliz; se uma é infeliz a outra também é infeliz. Até aqui nada de estranho. Se as separar e enviar uma para Atenas e outra para Roma, a pessoa que chega a Atenas terá o mesmo sentimento que a que chega a Roma: são ‘correlatas’. A estranheza surge se o par de pessoas, uma delas enviada para Atenas e outra para Roma, estiver numa sobreposição [quântica]. Por exemplo, podem estar numa sobreposição de uma configuração em que ambos são felizes e numa em que ambos são infelizes. Cada pessoa pode revelar-se quer feliz quer infeliz no momento da observação, mas, se uma se revelar feliz, a outra - distante - também fará o mesmo.
Se ambas podem mostra-se tanto felizes quanto infelizes, como surgem sempre com o mesmo sentimento? A teoria diz-nos que, até ao momento em que olhamos para elas, cada uma das duas pessoas não é nem definitivamente feliz nem definitivamente infeliz. O sentimento determina-se de maneira casual apenas no momento em que observamos. Significa que, as correlações ‘não’ são predeterminadas.
Mas, se assim for, como é que o sentimento que se determina de maneira casual em Atenas consegue ser igual ao sentimento que se determina de maneira casual em Roma? Se jogar cara ou coroa tanto em Roma quanto em Atenas, os dois resultados são independentes, não são correlatos: não sai cara em Atenas sempre que sai cara em Roma.
Vejamos do que se trata. No âmbito da perspectiva relacional, o quebra-cabeças tem solução, mas mostra até que ponto a perspectiva é radical! A solução reside em lembrar que as propriedades existem em relação a alguma coisa. A observação do sentimento realizado em Roma determina o sentimento em relação a Roma. Mas não em relação a Atenas. A observação de sentimento em Atenas determina o sentimento em relação a Atenas. Mas não em relação a Roma. Não existe nenhum objecto físico que veja ambos os sentimentos no momento em que são feitas as duas observações. Portanto,não faz sentido perguntarmo-nos se os resultados são iguais ou não. Isso nada significa, porque não corresponde a algo que possa ser verificado.
Não podemos assumir que os dois sentimentos existem, porque não há nada que os determine em relação a. Vimos anteriormente, só existem as propriedades em relação a alguma coisa: o conjunto dos dois sentimentos não existe em relação a nada.
Voltemos ao quebra-cabeças: em relação a Atenas, o que acontece no momento da observação em Roma? Precisamos de recordar que os cientistas que observam, os cadernos onde tomam notas, as mensagens nas quais escrevem os resultados da observação também são objectos quânticos. Enquanto não comunicam com Atenas, o seu estado em relação a Atenas não é determinado: em relação a Atenas, são todos como o gato em sobreposição acordado e a dormir, existem numa mistura de estados quânticos diferentes - ou seja, são a soma de duas ondas. Uma onda descreve uma pessoa feliz. A outra onda descreve uma pessoa infeliz. A pessoa não está feliz nem infeliz, e isso porque são simultaneamente felizes e infelizes, ao mesmo tempo.
Em relação a Roma, ocorre o contrário: os cientistas de Atenas e a mensagem que chega de Atenas estão em sobreposição quântica, até ao momento em que a mensagem com o resultado da medida chega a Roma. Uma coisa é certa: a única maneira de saber se a pessoa está feliz ou infeliz é fazer uma observação; nesse momento, a função de onda colapsa numa pessoa feliz ou infeliz. Por outras palavras, a observação (que requer consciência) determina a existência.
Para ambas, as correlações só se tornam reais quando se trocam mensagens. Assim, podemos compreender as correlações sem transmissão mágica de mensagens nem determinação prévia do resultado.
Trata-se da solução do quebra-cabeças, mas o preço é alto: não existe um relato unívoco de factos; existe um relato de factos relativos a Roma e um de factos relativos a Atenas, e os dois não coincidem.
A aparente incongruência advém do esquecimento de que tudo o que se manifesta o faz a alguma coisa. A aparente incongruência suscitada pelo que parecia ser a comunicação à distância entre dois objectos emaranhados deve-se ao esquecimento desse facto: é necessária a existência de um terceiro objecto que interaja com ambos os sistemas para revelar as correlações e lhes dar realidade. Uma correlação entre dois objectos é uma propriedade dos dois objectos: como todas as propriedades, só existe em relação a um terceiro objecto. Essa interconexão entre todos os componentes do universo é desconcertante. Aqui a relatividade da realidade brilha em todo o seu esplendor.
Em suma: o entrelaçamento quântico não é uma dança a dois: é uma dança a três
O entrelaçamento constitui apenas a perspectiva externa sobre a própria relação que tece a realidade: a manifestação de um objecto a outro, no decurso de uma interação, em que as propriedades dos objectos se tornam actuais.
Toda a informação que se pode ter sobre o estado do mundo, considerada de fora, encontra-se nessas correlações. E como todas as propriedades são apenas relativas, todas as coisas do mundo só existem nessa rede de emanharamentos.
O entrelaçamento não é, portanto, um fenómeno raro que tem lugar em situações especiais: é o que acontece regularmente numa interação, se esta for considerada em relação a sistemas físicos que lhe são alheios.
Sem dúvida há algo de desconcertante na visão do mundo que surge desta interconexão entre todos os componentes do universo. É aqui que surgem os aspectos + vertiginosos da realidade desvelados pela teoria dos quanta. Aparentemente, quando estados quânticos estão emanharados, testes que classicamente funcionam para estabelecer relações de causa e efeito deixam de funcionar — É ainda + complicado extrair relações causais num contexto quântico.
O fenómeno do entrelaçamento quântico é um dos elementos da física quântica que não pode ser representado em qualquer outra visão clássica da física; outros elementos não clássicos são a complementaridade e o colapso da função de onda.
Vejamos para que é que tudo isto serve.
Temos de abandonar algo que nos parecia muito, muito natural: a ideia de um mundo feito de coisas. Temos de reconhece-lo como um velho preconceito, uma carroça velha que já não nos serve. As certezas da física clássica não passam de probabilidades. A solidez da visão clássica do mundo constitui apenas a nossa miopia.
Seja como for, o emaranhamento mostra que a realidade é anti-intuitiva e exótica diferente do que pensávamos.
A dança a três que tece as relações da Arte
Agora, penso em Comedian, 2019, de Maurizio Catellan (Pádua, Itália, 1960). A questão de saber se um fenómeno como a banana é uma espécie de especificação provocadora, criada a partir do nada, ou uma declaração da arte pela arte.
Nada de complicado: vimos anteriormente que o núcleo da interpretação relacional da teoria quântica, consiste na ideia de que a teoria não descreve a maneira como os objectos quânticos se manifestam a “nós”. Ela descreve como qualquer objecto físico actua sobre qualquer outro objecto físico. As propriedades de um objecto fisico realizam-se em relação a um segundo objecto e, como vimos, podemos pensá-las como o estabelecimento de uma correlação entre os dois ou entao como informação que o segundo objecto tem sobre o primeiro. É para a interação entre o artista e a obra que produz que temos de olhar se quisermos compreender Comedian, não para a obra e Cattelan isolados.
Vimos anteriormente como toda a informação que se pode ter sobre o estado do mundo, considerada de fora, encontra-se nessas correlações.
E, assim, deve continuar a ser para sempre: toda a informação que se pode ter sobre o estado de uma obra de arte, considerada de fora, em relação ao observador, encontra-se nas correlações entre o artista e a obra. E como todas as propriedades são apenas relativas, todas as coisas da arte só existem numa rede de entrelaçamentos.
A principal lição da perspectiva da história da arte é que precisamos de envolvimento com o passado, e uns com os outros, para que a arte atinja o seu pleno potencial, nao obstante os erros e as indeterminações que tantas vezes acompanham esse envolvimento. Se divorciássemos os artistas do passado uns dos outros, privá-los-íamos do oxigénio que os mantém vivos.
O que é passado ao largo fica, afinal, preservado para sempre como matéria-forma, o que por sua vez é o esquema conceptual por excelência para toda a estética e teoria da arte - superado num triplo sentido, conforme descrito em Hegel: “superado”, primeiro, no sentido de “terminado”, em segundo lugar, algo como “preservado numa outra forma” e, em terceiro lugar, “elevado a um nível outro, superior”.
Cattelan vai atrás de Duchamp, e pensa: ready-made. Vai atrás dele, e pensa no ready-made, em Comedian! Como uma banana e a sua casca, é assim estreita a sua ligação com Duchamp, a sua admiração. De uma maneira que nada poderia imiscuir-se entre eles. Casca e núcleo, um a moldagem do outro, um o original do outro. Coerentes entre si, vibrando da mesma maneira - mesmo que separados por vastas distâncias.
Em relação ao observador o que aconteceu foi o estabelecimento de uma correlação entre Duchamp e Catelan: Duchamp e Cattelan estão agora num estado entrelaçado - um ligado ao outro e conseguem uma espécie de estranheza de ligação, como capazes de instantaneamente continuar a conversar/ a trocar informações. Estão numa relação mútua, pensa Cattelan, mas não diz. (Diz-se que estão em ‘correlação’ ou em mútua relação, partículas que se encontram entrelaçadas.) E, depois, aconteceu [Comedian], apesar de tudo, até se compreende que Cattelan só quer atingir os seus objectivos e contribuir para a sua prosperidade.
Comedian como um cavalo de Tróia? Apenas como disfarce? Apenas como entreternimento? Seria demasiado pouco. E, além disso errado.
Como é inteligente a forma escolhida por Catelan para mostrar que a arte, neste caso, a banana, é ela mesma uma obra de arte. A banana nao segue as leis da tradição ou hábitos estéticos e, em vez de simplesmente interromper esses sistemas, expõe a arte contra-intuitiva e exótica, inerente à sobreposição quântica. Para Cattelan, Comedian segue as leis do ready-made. Numa relação mútua com Duchamp: grandes rebeldes contra o passado. Antes de observarmos a banana, ela existe em diferentes estados possíveis. Que é teoria quântica, mas, ao mesmo tempo, consiste em questionamento/ rebeldia. O prazer de escavar abaixo da superfície. Isto tem importantes implicações... Comedian, não foi arrancado do nada! Estas são a maneira como a arte faz experiências, progride através da transmissão, levando a criações novas e originais. "Entretenimento” não tem nada a ver com arte! É só defensável enquanto ignorância.
A história da cultura é feita desde o início de interrupções e recuperações.
Toda a gente é influenciada por alguém. O importante não é o que pedimos emprestado mas a maneira como o pedimos, e o que fazemos com o que encontramos. Permanece o interessante facto de dois artistas interligados terem desenvolvido versões daquilo a que chamamos ready-made, ainda que em épocas diferentes. Seja como for, temos uma consciência + clara dos nossos processos de pensamento quando pensamos em conjunto com outros.
Também para a física clássica podemos limitar-nos a pensar na informação que os sistemas físicos podem ter um sobre o outro.
No entanto, há uma diferença, que distingue radicalmente a física quântica da física clássica: as propriedades de um objecto [obra de arte] são apenas relativas. Não podemos limitar-nos a pensar na informação que o artista tem da obra. Mesmo que saibamos tudo o que há para saber numa situação particular sobre um objecto isolado, não sabemos tudo dele, se esse objecto interagiu com outros. A relação entre o artista e a obra não se encontra contida no artista e na obra: é + que isso — Só existe em relação a um terceiro objecto [observador], numa dança a três. De certa forma nem o artista, nem a obra é a pessoa no poder, mas é o observador / o sujeito que conhece e detém a informação que molda a experiência — o que é produzido [a realidade] vem de algum poder independente da relação obra / artista. É uma dança a três.
Equivale a dizer que é necessário pensar que Comedian é apenas a maneira como ele actua sobre qualquer observador - não evolui de forma independente. É possível que Comedian seja obra de arte em relação a si e não seja obra de arte em relação a mim, quando a observamos! Perspectivas diferentes não podem ser justapostas sem parecer contraditórias. Isto esclarece o que acontece em todos os comentários contraditórios - cada um tende instintivamente a referir aquilo que quer e ninguém se entende. E uma única pessoa não pode compreender Comedian. É como se se pensasse que a arte, contra toda a ciência tem de ser determinada.
Significa [apenas] pensar-se uma obra de arte não como uma entidade permanente, mas como um evento instantâneo, que depende da existência de um outro que “observa”. Não podemos descrever Comedian a não ser no contexto daquilo com que ele está em interação. A arte não brilha como entidade independente: as propriedades de uma obra de arte que são reais em relação a um observador não o são necessariamente em relação a um segundo — Todavia, há método / ordem nessa loucura. Essa ordem corresponde ao Observador, ao terceiro interlocutor.
A conversa entre o artista, a obra e o observador, tem, finalmente lugar
O artista olha para uma obra e vê as cores da pintura. Em relação ao observador o que aconteceu foi o estabelecimento de uma correlação entre o artista e a obra: o artista e a obra estão agora num estado emanharado.
Se eu sei que o artista viu as cores da pintura e me disse que elas eram azuis, também sei que, se eu as olhar/ descobrir/ experienciar, as verei azuis: isso está previsto pela teoria, “apesar do facto de as propriedades serem relativas”.
A fragmentação dos pontos de vista e a multiplicidade de perspectivas abertas pelo facto de as propriedades serem apenas relativas são reparadas por essa coerência, intrínseca à gramática da teoria e que está na base da intersubjetividade que fundamenta a objectividade da nossa visão comum do mundo. Para todos nós, que nos comunicamos uns com os outros, a pintura tem sempre as mesmas cores.
O que acontece é que o cérebro espera ver alguma coisa, com base no que aconteceu antes e no que sabe. Elabora uma imagem do que prevê que os olhos vejam. Essa informação é enviada do cérebro para os olhos, através de fases intermédias. Se caso se detete uma discrepância entre o que o cérebro espera e a luz que chega aos olhos, os circuitos neurais enviam sinais para o cérebro. Ou seja, a imagem do ambiente observado não viaja dos olhos para o cérebro, apenas a notícia de eventuais discrepâncias em relação ao que o cérebro espera.
O poder da teoria é ainda especulativo. Mas existe
A palavra informação é ambígua. Por favor, lembre-se que aqui "informação" é usada em sentido físico, não no sentido mental ou semântico.
As implicações conceptuais sobre a relação entre o que vemos e o mundo são notáveis. Mais do que isso. Quando olhamos em redor, não estamos realmente “a observar”: em vez disso, estamos a sonhar uma imagem do mundo com base no que sabíamos (incluindo preconceitos equivocados) e inconscientemente perscrutamos para detetar eventuais discrepâncias e, quando necessário, tentar corrigi-las. Por outras palavras, o que vemos não é uma reprodução do exterior. É o que esperamos ver, corrigido pelo que conseguimos captar. O mundo visual efectivamente ocorre — no córtex visual, por oposição a lá fora, no mundo, sem por isso perdermos contacto com a realidade do mundo. Os dados recebidos relevantes não são os que confirmam o que já sabíamos. Sao os que contradizem as nossas expectativas. Por vezes, num pormenor, aprendemos algum facto novo: o gato mexeu uma orelha. Às vezes, trata-se de uma cena inteiramente nova, à qual tentamos dar de algum modo um sentido, imaginando uma versão que tenha sentido para nós.
É em termos do que já sabemos que procuramos dar sentido ao que chega às nossas pupilas.
O mundo visual é a criação dos seres que possuem olhos para esse fim.
Um dos + fascinantes progressos recentes das neuro-ciências diz respeito ao funcionamento do nosso sistema visual: como fazemos para ver? Como fazemos para saber, com um olhar, que temos diante de nós um livro ou um gato? Parecia natural pensar que recetores detetam a luz que nos chega à retina dos olhos e a transformam em sinais que correm para o interior do nosso cérebro, onde grupos de neurónios elaboram a informação de maneira cada vez + complexa, até a interpretar e identificar os objectos. Uns neurónios reconhecem linhas que separam cores, outros neurónios reconhecem formas desenhadas por essas linhas, outros ainda comparam essas formas com dados da nossa memória… outros há que chegam a reconhecer alguma coisa: é um gato. Mas não é o que acontece. O cérebro não funciona assim. Funciona ao contrário. A maior parte dos sinais não viaja dos olhos para o cérebro: viaja em sentido oposto, do cérebro para os olhos — só podes ter uma imagem se tiveres um sistema nervoso que possa fabricar imagens, capaz de mapear um objecto e apanhar a sua configuração, e uma certa cultura. E memória.
O mundo visual está dentro da nossa cabeça. O mundo inteiro, na verdade. E não é verdade que possamos certificar-nos da realidade do mundo visual estendendo a mão e tocando-lhe. Os objectos não existem independentemente do pensamento humano.
Se fôssemos dotados de sentidos contraditórios, não estaríamos sequer aqui.
A nossa experiência quotidiana, portanto, é compatível com as [duas] leis gerais, ou “postulados”, da física quântica e apreende-lhe a novidade:
i. A quantidade de informação relevante que podemos ter sobre um objecto físico [obra de arte] é finita.
ii. Interagindo com um objecto [obra de arte], podemos adquirir sempre nova informação relevante.
À primeira vista, os dois postulados parecem contradizer-se. Se a informação é finita, como posso obter nova informação? — A contradição é apenas aparente, porque as leis falam de informação “relevante”. A informação relevante é aquela que permite determinar o comportamento futuro do objecto. Quando adquirimos nova informação sobre uma obra de arte, parte da velha informação torna-se “irrelevante”, ou seja, podemos ainda assim, aprender algo de inesperado (perdendo contudo informação precedente). Esta contradição resume a teoria dos quanta: ela diz-nos [lembra-se?] que o futuro não é determinado pelo presente! A visão teórica da arte constitui apenas a nossa miopia. As certezas da arte não passam de probabilidades. A imagem da arte nítida e sólida da teoria é uma ilusão. Mais uma vez repensar a Arte.
Continua na PARTE IV/5: Imaginar uma maneira diferente de nos relacionarmos com a Arte
Devo referir que A Teoria Quântica, Deus e os Dados, e a Natureza da Arte é uma sequela de Fragmentos do Paraíso à procura do tipo de verdade que os cientistas procuram. Se o texto de 2020 determinava ‘a forma’ elementar da arte como beleza pura - que estabelece a beleza intencionalmente inútil, no que descreve o absoluto reconhecimento do inatingível, aqui impõe-se revelar a natureza da arte com a reorganização pós-relacional do conhecimento universal - interessar-me não pela matéria e forma, mas pela origem, ou seja, a sua essência. Podemos compreender então a interação com o meio e as suas propriedades e carácter.