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Os canadianos Suuns lançaram Felt em 2 de Março passado, o seu quarto álbum original, sucedâneo de Hold / Still, de 2016, Images du Futur, de 2013, e Zeroes QC, de 2010. Antes, e pelo meio, contam-se também o EP de estreia homónimo de 2010 e o projecto colaborativo de 2015 Suuns and Jerusalem In My Heart com o produtor libanês estabelecido em Montreal Radwan Ghazi Moumneh.
Este percurso artístico e musical, notável diga-se por dívida à verdade, leva a banda a pisar sustentavelmente as tábuas de pequenos e médios palcos em ambos os lados do Atlântico, Portugal incluído por diversas vezes. Um tanto esquizofrénicos, estes palcos, tal como a sua música. Um tanto de abrangentes, um tanto de marginais. À frente dos palcos, e atrás da banda, em perseguição, como uns e a outra, um pequeno ou médio séquito.
Curioso, ou melhor ainda, paradoxal, é que os mesmos tempos que endeusam a irrequietude da criatividade – estará ainda por definir, ou corrigir, o termo no contexto actual, dito contemporâneo, pós-moderno, etc. etc., e à luz de algumas (muitas?) bacoradas, “moderninho”? – os empurrem para – dir-se-á não justificações, era o que faltava – explicações sobre as opções artísticas que sustentam Felt. A verdade é que o álbum foi acolhido com aplausos contidos por alguns narizes algo torcidos – mas, também, e que alívio pela clarividência demonstrada de quem não cede ao impulso, muitos aplausos, e só; já lá se vai.
Se a negatividade da obediência à disciplina – o dever fazer – foi substituída pela positividade da liberdade em produzir – o poder fazer –, este modelo organizacional sucessor, que à luz de uma regulamentação mais explícita ou mais implícita (enquanto sociedade do controlo, quase sempre dissimuladamente implícita, dir-se-ia), e cujos braços se estendem às dimensões sociais, económicas, culturais, políticas da comunidade, que anuncia e incentiva a iniciativa mas, na verdade, almeja uma massificação ilimitada da produção que, quando confrontada com o excedente que a mesma cria, antes planeia a obsolescência da descartabilidade com recurso às técnicas do marketing e outras malícias que tais e, nesse ciclo viciante e viciado do “mastiga deita fora”, castra a consciência verdadeiramente crítica e a criatividade subjugadas à necessidade de continuar a produzir, e entrincheira a anunciada libertação da individualidade como farsa para a propagação da homogeneização subserviente do modelo da produção que difunde um, e apenas um certo, excesso de estímulos e informação – veja-se Byung-Chul Han, em A Sociedade do Cansaço, e outros escritos do pensador germano/sul-coreano –, então está criado o contexto para a dispersão e fragmentação da atenção e para a primazia do imediato que é imposto continuar a produzir.
Aos tais narizes torcidos não apetece, porque dá demasiado trabalho ou, vítimas afinal, já sequer é oferecida, a cultura da contemplação. Essa enquadraria Felt no percurso global de Suuns. Ainda que este percurso seja apenas de um punhado de anos, e extrapolando a questão contemplativa para um contexto macro-histórico muito mais vasto mas ainda assim, porque ilustrativo, tão relevante face à cultura do “mastiga deita fora”, basta lembrar o prefácio de Nicola Abbagnano à sua Storia Della Filosofia – já lá vai imenso tempo, quase meio-século… - e as suas observações de que a consideração histórica é uma fonte de ensinamento e não um erro morto às mãos da descartabilidade.
Em várias instâncias, e logo condenado por moderníssimos peritos do ruído das playlists e tal (…), da máquina de mastigar e deitar fora, a quem a híper-aceleração de pretensas inovação e criatividade anunciadas que obedecem, na verdade, a uma máquina de produção de excessos obsoletos que rasteja na descoloração homogeneizada da areia atirada para os seus olhos e que neles ricocheta para os dos outros, ou tenta, e que lhes impede a contextualização mais abrangente que – sacana – requer o tempo e a profundidade da historicidade contemplativa, Felt tem sido acusado, entre outros crimes, e classificado como enfadonho, repugnante, desinspirado, previsível, calculado, acomodado, insignificante, repetitivo e desarticulado. E ainda só lá vai um mês e tal desde que viu a luz do dia. Crime maior sentenciado em tais varas, Felt consubstancia o progressivo desvanecimento criativo de Suuns de álbum em álbum, como se desde o momento em que se criaram e formalizaram no primeiro trabalho, a génese, não houvesse outro destino que não o lento e inescapável esmorecer da chama em direcção ao ocaso – novamente Han, que referencia o animal laborans desta contemporaneidade conceptualizado por Arendt, cuja acção maior é nascer, e cujo anónimo, passivo e fatal destino, desprovido de consciência e criatividade, se reduz a produzir até que se apague, metafórica e literalmente.
É um facto. Os dois primeiros álbuns de Suuns sólida e inequivocamente denunciam a sua mestria em trabalhar contrastes que ziguezagueiam, ainda que em total controlo, por entre os arranjos musicais das frenéticas guitarras, dos sintetizadores espessos, do baixo impulsionante, dos ritmos enérgicos e, sobrepostos e realçando-se, dos vocais suaves e hipnóticos. Hábil na criação de paisagens melódicas profunda e densamente texturadas que se depositam em camadas várias que roçam em equilíbrio meticuloso o limiar entre a turbulência, opacidade e dissonância e a serenidade, vividez e harmonia mas, virtuosos no seu enigmatismo, nunca o ultrapassando, e por esse motivo tão mais estimulantes, o quarteto de Montreal demarcou com Images du Futur e Zeroes QC um território seu, personalizado na intangibilidade do experimentalismo que minuciosamente combina, retorce e confunde o Industrial, o Punk-Rock, o Post-Punk e o Electro-Rock numa excitante atmosfera musical que é tão sombria e austera quão psicadélica e alucinada e quão macia e envolvente.
Quando confrontados com a adjectivação de Felt como acessível ou convencional face aos registos iniciais cuja lâmina afiada é acusada de estar amolecida, argumentam, e muito acertadamente, que é um exagero de desvirtuação precipitada que não considera o lugar de Felt como parte de um todo que o torna mais significativo do que já merecidamente é na sua singularidade.
É um facto. Felt não cai na armadilha da banalidade massificada e indistinta. Da acessibilidade e convencionalidade onde não cabe o traço da personalidade e individualidade. Ainda mais que Hold / Still, traduz um percurso da banda. Valioso, porque se desafia para lá da familiaridade. Louvável, porque se mantém fiel à sua essência. Distingue-se, porque mais contido, polido e sofisticado, face à aspereza, à agudez e brutalidade que anima os antecessores. Felt é uma evolução sem trajectória ou destino pré-determinados numa constante postura experimental onde a inércia do processo criativo não tem lugar.
Bastaria um novo álbum de Suuns, mesmo que no prolongamento da esteira da banda, para justificar o merecido destaque. Tão mais relevante e estimulante, seja no plano artístico e musical, seja em conexões com outras dimensões do mundo, é um novo trabalho que denuncia a verdadeira irrequietude criativa dos que recusam a apatia e procuram o desafio da sua inovação e reinvenção.
Felt tracklist
1. Look No Further
2. X-ALT
3. Watch You, Watch Me
4. Baseline
5. After the Fall
6. Control
7. Make It Real
8. Daydream
9. Peace and Love
10. Moonbeams
11. Materials