|
|
RUI MACEDOIn situ: carta de intençõesMUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA DE NITERÓI Mirante da Boa Viagem, s/nº - Boa Viagem, Niterói 24210-390 Rio de Janeiro 13 DEZ - 08 MAR 2015 Nos encontramos num caso verdadeiramente glorioso e singular na série de pinturas de Rui Macedo – pintor com admirável inteligência artística – que compõem a mostra In situ: carta de intenções, atualmente na varanda do MAC-Niterói. No centro da primeira parede da mostra há a “instalação pictórica” de uma “moldura” sem oferecer “pintura” aos olhos e como se aberta ao meio, horizontalmente, com uma metade tocando o teto e a outra o chão. No interior da moldura de baixo há dois “anexos”: o plano feito pelo artista para a exposição, e o esboço da paisagem em frente à parede, o qual, se supõe, seria a pintura envolvida pela moldura. Porém, as metades de moldura estão dispostas como se estivessem trocadas, indicando nossa confusão: são duas pinturas. A confusão não está no fato de serem molduras pintadas, pois não há realmente esse propósito de um truque visual, senão no limite de nos atrair a visão. A confusão está em serem duas obras, não duas metades. É a partir daí que começa o seu dar a ver. Assim dispostas, são as pinturas que emolduram a parede realizando-a como paisagem museográfica da mesma forma como o chão e o teto da varanda emolduram o exterior (a baía, as montanhas, o céu). Metaforicamente tomando o espaço do museu como natureza e mundo as pinturas passam a circular livremente por ele. Portanto, o que se instala pictoricamente é a parede como campo artístico integrado, como a distância e atmosfera propícias entre duas obras a ponto de nos fazer capaz de elucubrarmos uma pintura como ocorrência e recorrência ou concorrência de outra. Indicativo do espaço curatorial como campo existencial da arte enquanto em obra, não como disposição de objetos. E como não há “quadro” propriamente a ser olhado, a exposição tem a felicidade de descartar insuportáveis legendas. Apressadamente, poder-se-ia justificar o título da exposição no caráter site-specific das obras, isto é, como “instalações pictóricas” no espaço do museu, como aquela, exemplar, que se dobra como adesivo aderindo à esquina de uma parede. Contudo, a poética de Macedo nos recorda que site-specific, mais do que o elaborar de obras para determinado espaço, é o encontrar um laborar a partir de determinado espaço, tornando-o um lugar. Logo, para além do fato material de serem feitas especificamente para as paredes do museu, o fato artístico de sua glória particular é exercício do contrário: o permitir aos espaços do museu se manifestarem no espaço do museu. Pois é somente nessas pinturas que a arquitetura interna e também os vazios do museu se realizam, se instalam, isto é, se dão a ver. Este in situ, assim em língua latina, não é referência ao ambiente museográfico, mas antes o demarcar do lugar da arte que é dado nas pinturas, o seu instalar-se. Contrariando o entendimento promovido pelo processo histórico de que as obras são feitas para serem expostas em museus, o que se revela aqui é que os museus são feitos para serem ex-postos em arte. O poeta português Fernando Pessoa nos deu a saber da “glória das obras que se perderam e nunca se acharão”, mas o caso das obras de Macedo evidencia que há mais glórias insuspeitas no seu misterioso universo da história da arte, como a glória das obras “que nunca foram encontradas”, ou melhor, “que nunca se perderam, mas que nunca foram vistas”. Não me refiro àquelas célebres e decisivas pintadas na literatura, como o retrato de Basil Hallward do jovem Dorian (O. Wilde), ou aquele amaldiçoado que tanto perturbou Tchartkov (N. Gogol), ou ainda outro, razão da loucura de mestre Frenhofer (H. Balzac). Como também não me refiro ao caso das obras ditas conceptuais – que me parecem afeitas a um tipo de glória diferente como “obras que nunca se podem fazer obras”. Por fim, é preciso dizer, também não é este o caso das pinturas antigas perdidas desde sempre sem nenhum registo visual. Por glória das “obras que nunca se perderam, mas que nunca foram vistas” entendo aquelas que residem em pintura, que se apresentam como obras, que se deixaram registar, e que são parte decisiva da história da arte sem que nunca tenhamos propriamente posto os olhos sobre elas. Pois não são dadas ao olhar, são dadas ao ver. São aquelas que nos fazem constatar que o caráter expositivo da arte nada tem de “entrega aos olhos”, depende sim do sujeito pôr-se diante da própria obra e desta se fazer presença. Entre a primeira e a segunda parede, surge outra obra dividida, porém, dessa vez, verticalmente. Nela se traça mais diretamente uma genealogia histórica do caso glorioso visitado. Repletas de anotações internas sobre a própria execução de sua existência pictórica, as duas telas recorrerem à pintura de C. N. Gysbrechts intitulada Trompe l’oeil; que por sua vez tem recorrência àquela de Parrásio (segundo a narração de Plínio, o Velho), onde estava pintada uma cortina cobrindo o próprio quadro. Mas a comparação favorece Macedo. Pois, na pintura de Gysbrechts há propriamente o engano do olho que se confronta com a cortina ligeiramente aberta para desencobrir “as cartas de intenções” sob o pano, mas não por baixo da tela. Já a obra de Macedo, ao substituir, no corpo da tela, a cortina pela moldura pintada, propõem-se relmente o engano da visão; no limite do realismo, sua pintura quer menos nos fazer crer que o pintado é real do que nos fazer ver o real, também, como pictórico – tarefa muito mais louvável. Ao reverso do trompe l’oeil, a pintura quer que vejamos o que realmente está lá, in situ, a passagem que nos oferece e que evitamos ingressar. E nesse sentido, a pintura de Parrásio pode ter vantagem agonística sobre a de Macedo, mas se deve apenas a duas circunstâncias meramente fortuitas: seu percurso histórico de milhares de anos e o seu desaparecimento são suficientes para garantir à cortina de Parrásio o privilégio de poder ter-se tornado o suporte de qualquer pintura em tela. As demais obras da mostra continuam a estabelecer relações desse parentesco. Em outra parede, a linha metafísica do mar da baía penetra o espaço do museu “cortanto” a parede e “dividindo” os quadros. Estes, por sua vez, com deslocamentos de moldura, régua no espaço interno, imagem-photo-pintada da paisagem externa e disposta de lado, bem como molduras dentro de molduras, chamam ao intercurso de Chirico – algumas de suas obras mais parecem o espaço deixado por uma pintura ausente. Já as pinturas que representam os chassis dos quadro concorrem com Masterpiece, mas principalmente com outras criações menos conhecidas de Roy Litchenstein. Por fim, entrevisto em “obras que nunca se perderam, mas que nunca foram vistas” há o aceno da tela-velada-vista de As Meninas, de Velasquéz. Aliás, essa é a única comparação que constrange a força poética das pinturas de Rui Macedo – nada a se reprovar, pois imaginar que é possível superar As Meninas seria pretender uma peça mais forte que Hamlet. Seria ainda interessante um pensar concentrado nas citações literárias postas em jogo como desenho num entra e sai das pinturas e do museu; contudo, aqui não caberiam todos os pensares sobre a exposição de Rui Macedo. Cabe, portanto, a vista das obras.
Antônio Barros
|























