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CATARINA GENTIL
FILIPA BOSSUET
20/11/2025
“A minha casa é assim, tem montes de caracóis”
Talvez a maturidade artística comece a surgir quando o que se pensa e cria não se desprende nunca da experiência de se estar vivo.
Catarina Gentil convida-nos a conhecer a sua casa com teto, sem teto, com caracóis, tinta de cal, cabelo humano, cascas de ovos, pétalas de flores, tijoleira portuguesa, uma casa no campo.
Por Filipa Bossuet
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FB: Antes de mais, perguntar-te como estás.
CG: Estou bem porque acabei de vir de férias. O que é ótimo porque já não tinha férias há algum tempo. Vim agora dos Açores, voltei ontem, portanto, estou ótima. Estive duas semanas inteiras a viajar pelos Açores - pela Ilha de São Miguel, Ilha das Flores, Ilha do Corvo. Foi maravilhoso, foi mesmo bonito.
FB: Vives apenas da criação artística ou tens outro meio de subsistência?
CG: Eu não vivo da minha arte, quando há dinheiro envolvido é melhor obviamente.
Há dois ou três anos tomei uma decisão muito assertiva de não querer ter que vender ou ter que me preocupar com vender para poder fazer arte e para poder ter uma vida normal, como qualquer outra pessoa quer. Poder ir de férias, poder arrendar uma casa e tudo mais.
Faço part-time de design gráfico à distância para a Alemanha, para uma empresa que faz design de comunicação sobre projetos relacionados com o espaço.
FB: É interessante pensar que é uma área que te pode alimentar muito artisticamente. A escolha de um trabalho que tivesse relação com a tua criação artística independente, foi uma escolha consciente ou não?
CG: Quando acabei a faculdade, voltei para a casa dos meus pais.
Estudei no Porto, mas a casa dos meus pais é em Mafra. Estive na casa deles durante dois anos depois da faculdade e a certa altura comecei a sentir uma necessidade de poder sair, ir viver para Lisboa e ter um atelier em Lisboa, mas obviamente não tinha poder de compra para estas coisas.
Houve uma certa altura em que eu comecei a perceber que andava muito ansiosa sobre o que eu teria que fazer para conseguir viver da arte. De fazer isto e ser o meu principal meio de ganhar dinheiro e sobreviver. Foi uma altura um bocadinho difícil porque eu andava realmente muito preocupada e a tentar perceber como dá para fazer estas duas coisas. Percebi que isso também afetava a minha prática artística, porque quando começa a existir essa pressão exterior de que tenho que fazer algo que seja possível ser vendido, há já obviamente uma certa alteração daquilo que são os nossos impulsos mais naturais.
Agora, naturalmente tenho começado a fazer coisas que são mais portáteis mas, só de há um ano para cá. Antes eram obras muito difíceis de se vender e comecei a aperceber-me que não queria alterar a maneira como estava a fazer as coisas para poder sobreviver. Queria eu própria fazer as minhas decisões.
Sempre gostei muito de ilustração, de histórias, portanto fez sentido investir numa área que era do design. Conheci alguém que trabalhava nesta empresa, a Alemanha é um pormenor importante porque eu recebo bem. Eu não conseguiria estar a trabalhar em part-time aqui em Portugal, em design. Eu investi, fui seis meses para a Alemanha, para a cidade de Colónia. Estive lá a fazer o meu estágio, foi um bocadinho difícil tomar essa decisão porque seriam seis meses em que eu não iria ter atelier, não iria estar a fazer arte, ia estar a ganhar o suficiente para estar lá.
Depois desses seis meses, eles quiseram ficar comigo. Agora trabalho remoto para eles, trabalho em part-time. Na primeira parte do dia trabalho para eles e na segunda parte do dia trabalho para as artes, claro que isto mistura-se melhor, outras alturas em que trabalho mais tempo para a Alemanha, outras alturas não há trabalho.
Como sou freelancer, há alturas em que eu tenho que aproveitar. Quando há tempo vou para o atelier, quando não há tempo, pronto, tenho que fazer dinheiro. Para mim é um bom equilíbrio porque tirou-me a pressão de ter que vender.
É interessante porque agora que não tenho essa pressão, comecei a vender coisas. É a cereja no topo do bolo, esperemos que continue assim.
FB: É muito bom ouvir-te, porque talvez isso nunca tenha deixado de acontecer: o artista ir criando, expondo e tendo contacto com o mercado artístico, tendo experiências de constatar, muitas vezes, que talvez nos primeiros anos de carreira não irá conseguir só viver da sua criação artística. É muito interessante ver artistas que possam comunicar isso com uma leveza que seja possível. Expressa num equilíbrio emocional de compreender os seus processos e, ao mesmo tempo, elaborar essa constatação que, muitas vezes, não é fácil de se ter, principalmente, quando inicialmente temos contacto com a potência que a nossa criação artística tem sobre nós, antes de qualquer contacto com o mercado da arte.
CG: Eu acho que há muita pressão ou quase uma certa culpa, um certo medo, urgência de quererem entrar para o mercado da arte, porque isso significa que está a funcionar, que está a correr bem. Somos um pouco empurrados para isso. Eu comecei a perceber que eu achava que havia uma maneira de ser artista, que é: trabalhar, vender, entrar no mercado da arte, mesmo que não se goste ou não se concorde.
A certa altura percebi que não é isso, que há tantas outras maneiras de ser artista e que basta eu encontrar a minha maneira, porque a arte está realmente em muitos lados, em muitas outras coisas e eu fazer design acrescenta ao meu progresso e sinto que colegas meus que até possam trabalhar na restauração, num café ou a dar aulas, tudo isso alimenta também o artista.
Acho que é bom viver fora do mundo da arte de vez em quando, senão estamos numa bolha e alimentamo-nos só do que está ali dentro, é ver que isso traz coisas muito boas. Tira o peso, tira a pressão.
Eu consigo sobreviver, consigo sustentar-me, sou responsável por mim mesma e não tenho que estar a responder a certos ideais que o mercado está à procura neste momento. Se acontecer eu entrar, acontece, e boa, mas se não acontecer também não faz mal porque eu tenho outra coisa que me sustenta.
FB: Estudaste na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, fizeste uma especialização em escultura e depois foste para Itália?
CG: Sim, para o museu Peggy Guggenheim de arte moderna.
No Porto, funciona desta forma, escolhes artes plásticas, o primeiro ano é comum a todos.
Aprendemos pintura, escultura e multimédia e depois no segundo ano escolhe-se uma especialidade para os próximos três anos.
O meu estágio no museu não teve nada particularmente direto com a escultura, trabalhei num museu e vi como o museu funciona.
Primeiro foi para sair de Portugal, porque senti que precisava de estar fora um bocadinho, tenho uma prima a viver em Veneza que estudou belas artes, já estive em Veneza há um tempo e pareceu-me uma boa altura porque a minha prima tinha acabado de ter espaço na casa dela. Aproveitei essa oportunidade e foi muito bom.
Percebi que não quero trabalhar num museu, mas foi muito bom. Tive contacto com estas pessoas todas que também gostam muito de história da arte. Veneza é um centro gigantesco de arte, tanto histórica como contemporânea.
Acabei por voltar dois anos mais tarde porque gostei muito de Veneza e o museu Peggy Guggenheim era o responsável pelo pavilhão dos Estados Unidos na Bienal de Veneza, porque a Peggy Guggenheim era norte-americana. O museu convida estagiários que tenham gostado, para serem vigilantes de sala no pavilhão e fiquei lá quatro meses.
FB: Os quatro anos em Belas Artes equivalem a mestrado também?
CG: Não, depois tem de se fazer o mestrado.
Eu fui para Belas Artes no Porto porque não sabia ainda para que área eu queria ir e também queria ir para longe.
Eu tenho uma família muito grande, só do lado do meu pai eu tenho 21 primos e vivemos todos nesta quinta, cada um com uma casa. Temos um terreno grande e cada um tem a sua casa, mas somos todos vizinhos. É uma vida muito particular, ou seja, onde quer que eu fosse toda a gente me conhecia como prima de alguém, irmã de alguém ou filha de alguém. A certa altura só queria ser eu, sem ninguém me conhecer. Já tinha tido duas primas a fazerem Belas Artes em Lisboa, então pensei mesmo que queria ir para longe.
O mais longe possível dentro de Portugal, era o Porto, neste caso.
Acabou por correr muito bem porque eu amo o Porto, gosto muito do Porto. Acho que um dia irei voltar, mas agora, fico em Lisboa.
FB: Formaste-te na pandemia.
CG: Sim, o último ano foi durante a pandemia.
FB: Foi um tempo que nos ensinou muito, da pior e da melhor forma. Queria perceber como foi para ti formares-te nesse momento e depois perceberes o que irias fazer?
CG: É engraçado. A pandemia para mim obviamente teve coisas más, por exemplo, deixei de ter o contacto direto com os meus colegas no atelier – que é muito importante – e não tive exposição de finalistas, que também é muito importante porque vão pessoas do mundo da arte local do Porto ver – isso não aconteceu e nem aconteceu nos anos seguintes. Mas foi bom para mim de certa maneira porque eu voltei para Mafra e eu vivo numa quinta, portanto, eu vim da cidade para o campo outra vez.
O 4ºano em escultura no Porto foi realmente um ano muito importante no meu percurso porque foi aí que eu descobri qual é que era, pelo menos, o princípio da minha linguagem. Estar em casa foi muito importante porque muito do meu trabalho tem que ver com o doméstico, tem que ver com a casa e com o abrigo.
Houve uma obra específica, que era um retrato da minha mãe que eu fiz em casa e sinto que essa foi a obra que deu o click para eu começar a sentir que aquilo que eu fazia era verdadeiramente meu. Se não tivesse estado em casa, eu não sei o que poderia ter acontecido, se calhar teria descoberto outra coisa, mas não sei bem o que teria acontecido se a pandemia não tivesse acontecido. Nesse sentido foi bom.
Depois, o processo de sair da faculdade e ter estes anos seguintes a tentar perceber o que era ser artista, na verdade, foram muito difíceis para mim.
Eu sinto que a faculdade pode nos preparar para muita coisa, mas algo muito importante que pelo menos no Porto não ensinam é o que é ser artista profissionalmente e não só, a parte abstrata e a parte mais bonita do que é ser artista. A parte prática, quase nada. De repente entrei na toca dos lobos e não sabia bem o que teria que fazer: se tinha que candidatar-me a open calls, fazer isto ou aquilo, perceber que é muito mais difícil viver da arte do que eu achava. Foram dois anos um bocadinho difíceis, devo dizer. Fiquei muito isolada porque os meus amigos todos estavam no Porto. A minha quinta é no meio do nada, portanto, bom para umas coisas, mas má para outras.
FB: Disseste que não gostarias de voltar a trabalhar num museu. Como foi o teu estágio?
CG: O estágio em si foi mais particular porque tínhamos acabado de sair da pandemia. Ainda usávamos máscara, não fiz visitas guiadas, mas em teoria os estagiários fazem.
Estava organizado de uma maneira em que, às vezes, estava-se na bilheteria, outras éramos vigilantes de sala, outras estávamos na biblioteca a preparar uma apresentação sobre a Peggy ou um artista que gostávamos, e que depois apresentávamos uns aos outros.
Talvez num outro museu mais particular, mas os museus são espaços muito institucionais, têm muita burocracia. De certa maneira, fazem muito dinheiro e não percebo para onde o dinheiro vai todo porque depois parece sempre que não há dinheiro, então tudo isso me deixava um pouco desconfortável.
Não pagavam assim tão bem, a viver em Veneza, haviam pessoas que estavam a pagar para estar no estágio praticamente, porque encontrar uma casa lá é difícil. Haviam pessoas que recebiam, pagavam a casa e depois ainda tinham que gastar do seu dinheiro. Eu ficava muito incomodada com o facto de ser um estágio. Era bom, mas ao mesmo tempo, parecia um bocadinho free labor.
É muito burocrático, há muita hierarquia e isso não me agrada muito, porque eu gosto de coisas mais pessoais e mais próximas em que toda a gente se conhece. Apesar de que aquele museu era muito pequenino. É mais pela burocracia do que por outra coisa.
FB: Quanto tempo ficaste em Veneza?
CG: Na primeira vez foram dois meses e na segunda vez foram quatro, portanto foram 6 meses.
FB: Como foi a experiência de ser vigilante e quem foste enquanto vigilante?
CG: Isso é muito interessante porque, realmente, já fiz alguns trabalhos e em lugares diferentes, mas o trabalho de vigilante é um dos mais difíceis.
Nós já não estamos habituados a estar quietos e aborrecidos, porque ser vigilante é muito aborrecido. E é engraçado também porque depende do sítio onde se está a fazer vigilância, no museu da Peggy era mais restrito, portanto, não se podia sentar. Tinha que se estar sempre a ver. Eram quatro horas, rodava-se hora a hora por cada sala, mas essa é a única mudança que existe, portanto, estamos quatro horas a observar.
Por acaso, era das coisas que eu mais pensava, a parte que me interessava era este trabalho de não fazer nada ou aparentar não estar a fazer nada.
O do museu era mais difícil porque na altura tínhamos que dizer às pessoas para meterem a máscara, porque muitas vezes tiravam a máscara. De vez em quando há pessoas meio loucas a quererem tocar nas esculturas. No geral é OK, corre tudo bem, mas é isso, a luta contra o aborrecimento. A luta com o não me poder distrair nem com os meus próprios pensamentos, porque senão, eu posso estar distraída e a pessoa fazer o que lhe apetece ao quadro e/ou à escultura.
Outra coisa que ainda hoje em dia as pessoas fazem muito é não quererem pensar, então ocupam-se. Nós estamos sempre a fazer alguma coisa, há sempre alguma coisa para fazer. Quando não se tem nada para fazer, o que se faz é pensar e controlar o pensamento também é difícil.
Na Bienal era mais fácil. Podíamo-nos sentar se tivéssemos uma cadeira e podíamos levar um livro. Eu levava um livro e lia quando não tinha pessoas na sala, porque de vez em quando isso acontecia. No museu não acontecia, mas na Bienal acontecia porque é muito grande. Haviam dias da semana em que não vinha ninguém durante uma hora e líamos porque realmente ajudava a passar o tempo. No fim, já no último mês, já tínhamos esgotado tudo o que havia para fazer. No último mês já dava por mim muito mais vezes no telemóvel, que é uma coisa que odeio, mas o tempo passa mais rápido quando se está no telemóvel. Pensei que três meses era o meu limite [risos].
FB: Recordas-te de algum livro que tenhas lido durante a Bienal de Veneza?
CG: Por acaso acabei um livro que foi muito importante para mim e para o meu trabalho. A Poética do Espaço do Gaston Bachelard. Acabei esse livro que já estava a ler há algum tempo, é um livro que para mim é incrível.
Tentei começar a ler em italiano. Li o Veneza é um Peixe, do Tiziano Scarpa. Demora mais tempo porque tenho que estar a sublinhar todas as palavras que não conheço em italiano, ainda por cima o autor é veneziano e tem dialeto. Veneza tem dialeto. Foram estes os livros que li.
FB: Como é criar artisticamente e profissionalmente sendo uma pessoa do campo e ao mesmo tempo ter relação com o que é descrito como centro?
CG: Estou num processo de explorar essa parte de mim mesma. Ainda não é uma coisa que eu conheça a 100%, porque eu fui do campo para a cidade do Porto, depois do Porto voltei para o campo e agora, desde abril estou em Lisboa, que não é muito longe de onde vivo, 40 minutos de carro e estou em Mafra. É uma realidade bastante diferente.
Uma coisa que estou curiosa para ver é quais vão ser as alterações que isso terá no meu trabalho, se vou utilizar menos materiais naturais.
Antes vivia na casa dos meus pais e o meu atelier era na cave da minha avó – uma cave muito grande que ela tinha para os netos todos brincarem, mas depois cresceram e foram-se embora e passou a ser o meu sítio para brincar.
Era um atelier muito grande e estava no campo. Ainda estou a tentar perceber qual é o equilíbrio entre as duas coisas, porque quando estava no atelier na cave da minha avó estava muito isolada, sentia falta dos meus amigos, falta da troca de ir tomar um café e trocar ideias.
Convidar pessoas para virem ao meu atelier. Ir até Mafra, onde eu vivia, era um compromisso.
Estou aqui em Lisboa, consegui há pouco tempo um atelier, graças à P’LA ARTE.
É um atelier que eu não pago, felizmente, e é mesmo muito perto da minha casa porque eu moro no Beato e o atelier é no Braço de Prata.
Finalmente comprei as coisas todas e comecei a montar o atelier, mas ainda não tive um momento de ir para lá trabalhar. No fim das férias já estava muito entusiasmada para voltar porque agora vou ter tempo para realmente ir para o atelier e começar a trabalhar.
Não consigo prever quais é que vão ser as alterações que isso terá no meu trabalho ou se eu vou querer continuar a viver aqui daqui a um ano, ainda estou a tentar perceber. Daqui a um ano posso pensar que isto é demasiado cidade e que eu posso ficar apenas perto o suficiente para ser fácil vir para aqui, e preferir estar no campo.
Eu sou uma pessoa que precisa muito da natureza, sempre fui assim e tive aquele tipo de infância em que ia para a rua a seguir ao almoço e voltava às sete da tarde porque a minha mãe ia à janela chamar e eu vinha toda coberta de terra e coisas assim.
Estou curiosa.
FB: Nasceste em Mafra?
CG: Eu nasci em Oeiras, mas vivi quase toda a minha vida em Mafra, desde que sou pequenina.
FB: Uma vez que estiveste em espaços citadinos, tiveste algum momento em que constataste que o teu corpo estava melhor no campo?
CG: Sim.
FB: Foi um processo natural ou tiveste que te permitir aceitar, uma vez que estamos num mundo muito globalizado?
CG: Sim, Veneza foi um pouco mais difícil porque é uma cidade que tem os jardini que são os únicos parques a sério, de resto, é uma cidade feita de pedra e com poucas coisas para fazer para além do ir tomar o aperitivo.
Sou uma pessoa muito ativa em termos de desporto, gosto muito de fazer desporto e ali não havia. Era difícil fazer caminhadas na natureza, tinha que sair de Veneza para fazer essas caminhadas. Veneza tem muitas particularidades, o jardini é suposto ser um jardim público, mas depois é fechado para a bienal – é uma questão que se mete e que não é justo.
Existem outros jardins, mas são só relva e algumas árvores, o que é ótimo, mas Veneza tem poucas árvores etc., portanto isso foi definitivamente mais difícil.
Quando estive em Colónia, estava com medo de não gostar, também por causa do tempo alemão: estava a chover, etc. Estava com medo de não me adaptar, mas gostei muito de Colónia e acho que tive sorte porque é uma cidade alemã, mas mesmo na Alemanha já é considerada uma cidade um pouco diferente.
Só depois percebi que haviam muitos artistas, muitos consagrados e com mais idade, que trabalharam e viveram em Colónia. É uma cidade com muitas árvores, muitos parques, é muito verde em certas partes.
Gostei bastante de Colónia e o tempo não me incomodou assim tanto. Ali conseguia ver-me a viver durante uns tempos. Agora, quando eu penso na forever home, nunca penso na cidade, penso sempre no campo. Há uma parte de mim que sempre teve um pouco de revolta do que dizem que para ser artista é preciso ir para uma das grandes cidades. Para mim, sempre fez um pouco de comichão, talvez até gostaria de ir para Nova Iorque, Londres, Berlim, Paris. Já fui para Berlim e Paris. Claro que são bonitas, mas para viver nunca me disseram nada. Nunca tive a sensação de querer viver nessas cidades porque há imensos artistas.
Sempre tive uma revolta cá dentro porque pensava que isso iria ditar o meu futuro nas artes, isso vai ditar que eu consiga ou não. Talvez exista uma parte de mim que gostaria de ir para Londres, mas já estou com um pé atrás que me diz que eu vou viver no campo.
Talvez esteja a ser orgulhosa, mas também sei que a realidade é que ir para essas cidades ajuda muito, porque há muito mais oportunidades. Nunca digo nunca, mas não me vejo a ir para nenhuma dessas cidades viver, pelo menos durante muito tempo.
FB: A tua revolta move-te?
CG: Eu acho que sim, há alturas que me paralisa um pouco porque fico com receio de não estar a tomar as melhores decisões para o meu futuro. Depois também há a parte do mover interior, de perceber quem eu sou e a minha arte vai ser cada vez melhor se eu aceitar o que eu sou, em vez de estar a tentar me moldar de outra maneira para de novo seguir aquela única maneira, que nós achamos que é ser artista. Ir para estas cidades, entrar para o mercado da arte e ser assim e assado.
Há uma parte de mim que luta contra isso. Eu não encaixo aí, ainda bem para outros artistas se encaixarem, mas o meu caso felizmente ou infelizmente, não é isso.
FB: Que desportos é que fazes?
CG: Sou cinturão preto em Taekwondo, comecei com oito anos e parei com 18 anos. Quando fui para a faculdade parei. Gosto muito de experimentar coisas diferentes, que é bom e mau ao mesmo tempo.
Fiz voleibol durante muito tempo, fui federada um ou dois anos em voleibol. Numa outra vida seria jogadora de voleibol.
Fiz dança, que também gosto muito, fiz hip-hop durante dois anos enquanto estive no Porto. Fiz atletismo quando estava na escola.
Agora faço escalada e gosto imenso de badminton, mas tenho tentado encontrar algum sítio para jogar badminton em Lisboa – o que não é fácil. Jogava muito na Alemanha, que é um desporto que lá se faz muito.
FB: Como é que achas que o desporto te ajudou a ser quem és?
CG: Eu já pensei muito nisso, porque apesar de hoje em dia existirem mais artistas que fazem desporto, a arte e o desporto, muitas vezes, são vistas como quase opostos. Eu sinto que os artistas não fazem desporto. Durante muito tempo – na faculdade – era a sensação que tinha. Hoje em dia já conheço mais amigos artistas que o fazem e vão fazer comigo, mas durante muito tempo questionei-me porque é que me sinto tão diferente, nesse sentido, de ser muito ativa em termos corporais e porque é que os outros artistas não são. Isto está a mudar, agora não sinto isso, mas durante muito tempo questionei.
A certa altura, até era uma coisa que às vezes me preocupava porque, por mais estúpido que seja, tudo o que é diferente dos outros no grupo, nós questionamos o porquê de ser diferente e se isso tem algum significado ou não.
Obviamente agora é uma coisa que percebo que realmente é muito necessária minha e que o movimento está na minha prática porque tem a ver com muitas das coisas que eu coleciono. Se a minha prática tem muito que ver com a observação, com a contemplação e com a recolha, há muito caminhar nisso, por exemplo. Caminhar durante muito tempo e caminhar com atenção. Eu acho que me especializei em escultura por causa disso, porque é uma área onde parece haver mais movimento, que ocupa mais espaço. Eu sempre fui bastante consciente do meu corpo, onde o meu corpo acaba, onde não acaba, onde começa. Sinto que esta preocupação que eu tenho com o corpo, como um ser vivo que vive neste mundo, tem muito que ver com essa capacidade do movimento e sentir-me cá dentro, num corpo que existe aqui.
Definitivamente influencia e agora ainda percebo mais isso, porque realmente faz diferença, essa confiança que se tem. Eu não penso nela, mas já me perguntaram muitas vezes se eu fiz teatro por ter um andar mais específico e acho que isso é do desporto. Do tempo a ter contacto com o corpo.
FB: Pode ser preocupante também se pensarmos na importância do desporto para a saúde física e mental, principalmente quando se constata que criar artisticamente é algo que neste mundo, como o conhecemos, pode ser extremamente violento.
CG: Definitivamente.
Pode ser muito stressante, é uma coisa muito cerebral. Nós passamos muito tempo dentro das nossas mentes e o movimento do desporto ajuda-nos a centrar. Deixamos de pairar no ar e de repente, temos um momento em que a única coisa que temos que pensar, por exemplo, é em chutar uma bola. As coisas tornam-se relativamente simples e há uma certa meditação no movimento, no descanso. Por isso, é que todos os médicos dizem que toda a gente deve fazer desporto.
Realmente fazer desporto deixa-me mais feliz, quando eu não faço desporto eu noto completamente a diferença que isso faz.
FB: A forma como se sente e lida com a respiração na prática de desporto poderá permitir também que nos possamos sentir apenas mais uma pessoa no mundo. Eu acho que é algo interessante enquanto artistas, porque em alguns processos, dentro dos próprios pensamentos, centra-se muito em como se está a sentir a atmosfera que impulsiona a criar e parece que não existe mais nada. Esse respirar poderá relembrar que se é um corpo, que está em comunhão com vários outros corpos.
Sentir que somos só mais uma gota no meio do oceano também é importante.
CG: Completamente, e eu acho que essa é a razão de gostar muito de desportos coletivos e com outras pessoas, porque a prática artística quer queiramos quer não, muitas vezes, é solitária. É essa coisa de estar cá fora. Eu sinto que o desporto dá-me um certo poder de controlo, de uma certa alegria no saber que controlo o meu corpo e de que tenho esse poder sobre ele: se eu quiser correr, consigo correr. Enquanto que, em muitas outras áreas da minha vida, ter o controlo é difícil e há coisas que simplesmente tenho que aceitar e logo se vê. No desporto, o meu corpo é o meu corpo, só meu. Há essa leveza nessa coisa boa de poder controlar o nosso próprio corpo e os movimentos serem decisivos.
O movimento decisivo na minha prática é muito específico, é o confiar nesta intuição do meu próprio corpo que se mexe antes da minha cabeça se mexer.
FB: As obras Labuta (2024) constituída por pétalas de cravos cosidos à mão, Parti (2025) constituída por osso, cera e cabelo humano e A Esperança de um Flutuo (2025) que incorpora uma rede de algodão e dentes de leão, são obras que exigem uma grande noção corporal.
Como tens entendido o movimento corporal nas tuas criações artísticas?
CG: Sinto que a minha prática está cada vez mais a melhorar felizmente, porque eu tenho estado a tentar encontrar este equilíbrio entre o corpo e a mente e isso ser um pouco a intuição. Enquanto funcionam em conjunto, existe uma intuição e a confiança na mesma.
Foi no início deste ano quando fiz a minha primeira exposição individual no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, que tive um momento em que pensei: vim da FLAD [Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento] no curso de artes plásticas em Arraiolos, foram dois ou três meses super intensos de aprendizagem. Meteram-me a pensar muito, passei momentos que me destruíram e construíram outra vez.
Então fui para a construção desta exposição a pensar que seria a melhor altura para eu experimentar a 100%, seguir a minha intuição e não tentar controlar nada. Eu nunca tive tão feliz no atelier, apercebi-me que no meu atelier está tudo espalhado, há uma organização dos objetos todos que fui colecionando e que me foram dizendo, porque há esta materialidade que - de novo- também tem que ver com o corpo, com todo o resto que o corpo dá, com a textura das coisas.
Se eu não pudesse fazer as minhas obras, eu nunca faria arte.
Mando fazer alguma coisa, se for algo que eu realmente não sei de todo fazer, tenho muita dificuldade ou impossibilidade, mas custa-me.
Para mim é muito fazer tudo aquilo que eu crio, porque está aí o corpo, está aí a materialidade.
Apercebi-me o quão complexo pode ser ver-me a trabalhar no atelier, porque eu estou a fazer uma coisa e depois, de repente, aquela já me diz outra coisa e passo para essa, acabo por fazer seis ou sete obras ao mesmo tempo. Quando me apetecia fazer uma coisa, eu ia fazê-la, quando tinha uma ideia era igual.
O corpo é que decide, ele vai e eu em vez de dizer: “ah não, acaba isto primeiro, depois vais para o outro”, não, não vou tentar por regras, vou só seguir aquilo que eu quero fazer e o que a intuição quer dizer. Pela primeira vez saíram coisas que nem eu estava à espera e pensava: “UAU é isso que acontece quando se acredita”.
Há artistas que são mais de planear e isso está certo, se funcionar para eles. Para mim não funciona, portanto, está aí a coisa do corpo, do ir e de não colocar nenhum entrave só porque deveria ser de outra maneira. É avançar, por isso, agora vejo como o movimento é importante. É uma dança no atelier, porque é saltar de um material para o outro, é tudo corporal agora que penso nisso.
FB: Não saber se irás terminar as obras enquanto estás a fazer. Foi difícil para ti permitires-te a isso?
CG: Eu achei que seria mais difícil, mas a certa altura as coisas parece que só se encaixam e houve uma intuição que me disse que ia correr bem. Organizei-me na mesma, tinha um calendário na mesma, tive dois meses para fazer. Foram dois meses muito felizes na verdade, porque ia o dia todo para o atelier. Tinha tudo organizadinho, tudo contado, mas é uma organização no meio do caos e acho que isso também foram muitos anos de tentativa e erro, experimentar coisas que funcionavam outras não.
Ainda estou a aprender. Aprendi agora que há coisas que não se deve controlar, não se deve colocar regras, outras sim, porque senão estou só perdida no éter e tenho trinta obras a serem feitas e só daqui a 3 anos é que vem alguma coisa.
FB: Tens uma imaginação muito focada na cultura portuguesa, por exemplo, a cerâmica e materiais utilizados, por exemplo, nas construções das casas do interior de Portugal.
CG: É a primeira vez que me dizem que veem a minha herança portuguesa na minha arte, mas fico muito feliz por ouvir isso. Não é uma coisa que eu pense diretamente que tem que ser, mas fico feliz porque eu acho que Portugal é um país muito bonito e com uma herança cultural muito interessante.
Também sou jovem do meu tempo e realmente há muitas coisas que eu não gosto no meu país e há uma certa vontade de o recusar, mas dou sempre por mim a voltar.
Eu gosto muito de viajar e experimentar outros países, exatamente porque me interessa a parte cultural, etnográfica e a parte vernacular de cada sítio. Interessa-me muito as partes domésticas e muito específicas de cada sítio, de cada país e de cada aldeia especificamente, porque eu sinto muito que é uma coisa muito humana e muitas vezes, uma harmonia mais saudável com a natureza.
Interessa-me muito a maneira como os seres humanos vivem o mundo e essas coisas que são repetidas tantas vezes que se tornam vernaculares e naturais.
Eu vou para fora, mas eu gosto muito de voltar. Sinto que há um certo momento em que me sinto tão confortável, que já é desconfortável. Eu estou confortável, mas não estou bem, percebo que é o momento de ir para fora, para ver outras coisas e depois voltar outra vez. Dou sempre por mim a voltar.
Isto também é muito engraçado porque eu não tenho ar português, de todo. Eu estou em Portugal, mas as pessoas falam comigo em inglês, então é quase como sentir-me uma turista dentro do meu próprio país, apesar de que vivo e sinto as minhas culturas e a minha herança, mas ao mesmo tempo é com um olhar visto de fora.
Talvez esse olhar visto de fora, me permite observar coisas que uma pessoa que esteja muito dentro já não nota. Não sei bem, estou a pensar isso agora.
Por exemplo, os caracóis para mim são uma coisa muito portuguesa. No campo os caracóis estão sempre por todo o lado, a minha casa é assim tem montes de caracóis.
Eu amo casas pintadas com cal, acho uma coisa maravilhosa, portanto, comecei a usar a cal como material, porque é quase como usar a luz como se fosse um material. São coisas muito particulares que me interessam e que eu pego e as uso porque as sinto próximas. Nunca tive um atelier fora de Portugal, não sei como isso mudaria se eu tivesse em Colônia com um atelier, por exemplo. Se conseguiria ter esse olhar exterior. Talvez não, porque o olhar português para mim é ser portuguesa, mas, ao mesmo tempo, olhar de fora.
FB: Tens uma obra que se constrói num muro de pedras brancas. Podes contar um pouco da experiência de criação da obra Perhaps something?
CG: Não é uma obra acabada. Estas pedras todas estão no meu atelier dentro de baldes. Sempre que eu tenho que me mudar, carrego quilos e quilos de pedra de um lado para o outro [risos]. Isto começou tudo porque eu gosto muito de arquitetura, mas é literalmente só uma relação emocional e visual com a arquitetura. Não tenho interesse em ser arquiteta, mas gosto muito de pensar o conceito da habitação, destas construções humanas no mundo. Isto começou também por uma residência que fiz em Mértola - em 2021 ou 2022 - e nessa residência aprendi a fazer cal, com um senhor da aldeia que me ensinou, arranjou as pedras, explicou-me que aquilo vai ao forno.
A cal é uma pedra que tem que ir a um forno, é aquecida em altas temperaturas e depois fica muito branca, parece giz. Essas pedras brancas depois metem-se em água, ficam a ferver e fazem literalmente uma sopa. A reação da cal com a água, ferve, faz bolhas e faz a tinta. Depois tem que se deixar a tinta arrefecer e depois é que se pinta com essa tinta de cal. A cal não só tem esta coisa de ser branca, mas também queima as coisas, as pessoas também caiavam as casas porque matava os micróbios e era uma maneira de manter as coisas limpas. O que me interessa na cal, é quando a luz bate e o que fica é aquele branco maravilhoso que se vê à distância, isso interessa-me muito.
Nessa residência, peguei numa casa abandonada, limpei a casa toda - não tinha teto a casa, e caiei-a, mas por dentro.
À distância dava para ver a luz de uma casa, mas pela parte de dentro e deste cuidado, porque as casas caiadas, têm que ser caiadas de ano a ano porque não é uma tinta que segura tão bem.
A casa caiada é uma casa pintada com tinta de cal. Antes de haverem tintas acrílicas e tudo mais, era com isto que se pintava nas aldeias. Na maioria, era um trabalho feito por mulheres, que se ajudavam umas às outras. Às vezes era um dia inteiro em que a aldeia fazia o mesmo. A mim interessa-me muito esta luz e obviamente a simbologia da cal.
Este muro tem que ver com o meu fascínio por muros, esta capacidade do ser humano de pegar em pedras, construir o seu território. Obviamente tem várias dimensões no mesmo assunto.
Por exemplo, eu estive agora nos Açores e os muros são maravilhosos, há imensos e estão lá só para dar a ideia, porque aqueles muros em teoria não servem para nada, porque qualquer ser humano consegue passar aquele muro e os animais com muita vontade também conseguem. Os muros nos Açores, como a pedra é vulcânica, não têm argamassa, não têm nada, as pedras estão apenas pousadas umas em cima das outras. Elas encaixam-se bem porque são rochosas e não caem, mas estão ali num equilíbrio, parece que vão cair a qualquer momento, mas depois passam-se anos e não caem. Isso para mim é super fascinante. Peguei nestas pedras que tinha na casa da minha avó e passo por um processo de pintar pedra a pedra com um pincel.
Têm que ser pintadas duas vezes porque inicialmente a tinta é quase transparente, depois ao ir secando ela fica branca. Sempre que as quero usar de novo, tenho que as pintar de novo porque elas batem umas nas outras e vão perdendo a tinta. É uma obra que requer cuidado. Isso acontece muito nas minhas obras. São obras que requerem atenção mais do que uma vez na sua vida. Sempre que a apresento tenho que refazer ou há um processo enorme de onde e como vão ser expostas.
Este muro é uma coisa que ainda estou a pensar - o que acontece muito, de ter uma coisa e muitas vezes vem para aqui para a parte de trás do cérebro e fica a conviver comigo durante anos, depois há uma altura que decidem aparecer. Foi o que aconteceu, por exemplo, com os dentes de leão que estiveram no meu atelier durante dois ou três anos e só depois é que fez sentido utilizá-los. As pedras estão no meu atelier a ocupar espaço, mas estão ali a viver comigo. Um dia hão de ser alguma coisa, por isso, a forma como descrevi as pedras no post que fiz no meu perfil do instagram.
FB: Essa efemeridade, revigoração e continuidade das tuas obras são como que uma performance que a própria obra vai criando, enquanto está exposta?
CG: Eu tive um colega, um grande amigo meu, que escreveu à pouco tempo sobre a minha exposição “Nestas Formas de Existência” no Museu Nacional de História Natural e da Ciência e há uma parte em que ele diz que existe quase que uma teimosia da minha parte ou uma crença, esperança muito teimosa de acreditar. Muitas vezes sair com o coração partido mas, na mesma, voltar a tentar e acreditar que algum dia as pessoas vão olhar e vão tratar as minhas obras com cuidado. Uma crença no cuidado e na esperança desse cuidado.
Muitas pessoas me dizem que eu não deveria usar materiais tão perenes ou não devia colocar as minhas obras em situações em que se podem partir a qualquer momento. Para mim, está exatamente aí o interesse da minha obra, se eu não tiver a coragem de entender que pode haver a possibilidade da minha obra se destruir, sinto que perco muito.
Nessa exposição do museu, tive uma obra que foi completamente destruída porque as pessoas pisaram-na. Era uma obra de chão e desapareceu.
FB: Houve também outra obra tua que foi destruída. Uma vez que existem vários tipos de interação com as obras e como vigilante também foste conhecendo algumas que não correspondiam à vontade da artista. Como foi lidar com tudo isso e do que se tratavam as obras?
CG: Foram duas.
Eu sei a importância do vigilante que é quase como um cuidador, um guardião de uma coisa frágil. No Museu Nacional de História Natural e da Ciência aconteceram estas coisas por falta de cuidado das pessoas, por ser uma coisa que não compreendiam tão bem e por não existirem vigilantes. Sabendo disso, eu fiz o que tinha a fazer na mesma e já ia a saber que havia uma grande possibilidade de coisas se destruírem.
O museu também é muito educativo, vão lá muitas escolas, muitos miúdos e às vezes é mais didático. As pessoas também não sabem muito bem, também não é culpa delas, é só uma circunstância, mas depois o museu não tem a capacidade de ter lá alguém a observar o tempo todo.
Por isso, houve duas obras específicas que se destruíram que eu vou ter que refazer eventualmente, o título de uma delas é Azedas constituída por uma bacia antiga cheia de água. Estava equilibrada no sítio onde normalmente o tubo entra na bacia, um círculo muito fininho, tinha uma concha de latão que boiava na água, com um pó feito com pétalas de umas flores amarelas que crescem na minha zona e crescem em muitos outros sítios de Portugal, na altura de janeiro, fevereiro. Quando há uma, há muitas. Na minha zona chamam-se azedas porque se podem comer. Comia quando era pequenina, apanhava e mordia o caule. O caule é azedo. Para mim é muito bonito ver esse amarelo todo no verde, nos campos porque quase parece sol líquido, luz líquida.
Esta obra estava presente no resto da exposição. A base da obra era a concha, que era uma casa, uma arquitetura animal que é um abrigo como as outras obras que tinham outras formas. Colecionei as pétalas, desidratava e com o almofariz transformava em pó. Para fazer a quantidade de pós que fiz, precisei de muitas flores. De novo, é quase um trabalho invisível. A mim interessa-me também o esforço que não se vê.
É quase como uma revolta contra o que é considerado um trabalho, hoje em dia, na nossa sociedade, o trabalho só conta quando é útil e quando é remunerado. No meu caso não, eu passei horas a colecionar pétalas, passei horas a desidratá-las, a triturá-las apenas para fazer um pouquinho de luz. Decidi colocá-lo numa situação em que basta alguém tocar sem cuidado e aquilo vai para baixo e foi isso que aconteceu, alguém se encostou na borda, a bacia verteu e o pó misturou-se com o resto da água.
A obra era sobre essa delicadeza da memória, da luz e do trabalho e de que em qualquer momento o meu trabalho poderia ir literalmente por água abaixo.
Claro que não é a coisa mais positiva, mas fazia parte. Eu nem me sinto assim tão mal quando as coisas acontecem, porque eu vou com a ideia de que isso pode acontecer.
Aconteceu com a minha outra obra também, na verdade, foram as duas obras que mais me demoraram a fazer.
FB: Estavam na mesma exposição?
CG: Sim, a outra obra chama-se Peculiares violências. São uns retângulos de barro que depois são organizados da maneira que é organizada a tijoleira portuguesa, ela estava no chão organizada dessa maneira.
Enquanto o barro ainda estava húmido, espetei espinhos de silvas. De novo, demorei horas a apanhar silvas e destruí os meus dedos todos.
Quando o barro secava, eu virava ao contrário, então as obras ficavam suspensas apenas com uma distância do chão através dos espinhos.
As pessoas distraiam-se, não olhavam e pisavam dois retângulos na inauguração e depois durante a exposição. Infelizmente acho que os miúdos deviam fazer de propósito porque o estado em que ficou aquela obra, não sobrou nada. Eu tinha 30 desses retângulos, não sobrou absolutamente nenhum.
Não tenho fotografias porque não tive a oportunidade de tirar.
FB: Como o teu corpo escolheu a utilização de elementos como espinhos, pétalas, dentes de leão, fios de cabelo humano dentro das suas peculiaridades?
CG: Todos estes materiais, eu tenho uma grande afinidade sem saber muito bem a origem dessa afinidade ou desse amor. Sinto que muitos deles por tempo passado com eles. Na natureza no geral, uma coisa que me interessa imenso é realmente estas coisas todas tão frágeis que têm os seus ciclos, mas que continuam cá. As pétalas, os espinhos têm uma herança, memória também. Não são só os seres humanos que criam memória.
Interessa-me especificamente como é que os seres humanos se relacionam com esses objetos ou com esses materiais e como os materiais se relacionam com os seres humanos. Não é só uma coisa ou outra.
As silvas sempre fizeram parte da minha infância, era onde eu ia buscar amoras.
Dão-nos alimento mas também se protegem de uma certa maneira, ao mesmo tempo, são utilizadas como muros para dividir territórios, portanto, há uma simbiose, muitas vezes, eu sinto entre o ser humano e a natureza.
A maior parte das vezes o ser humano abusa, mas eu gosto de encontrar estes exemplos onde as coisas funcionam e como podemos aprender sobre nós mesmos através destes objetos. Não sei se eles já têm ou somos nós que colocamos essa simbologia, mas também não sei se me interessa saber se somos nós ou não.
O que me interessa é que eu sinto essa afinidade e que através de metáforas e simbologias, compreendo-me e ao resto dos seres humanos.
O cabelo por exemplo, é esta noção de que o nosso corpo produz coisas como a natureza produz. É um fio, eu posso coser com esse fio, em qualquer altura eu posso cortar o meu cabelo e ter fio e posso fazer corda, posso fazer bordados. Ele está a produzir qualquer coisa como a silva produz as amoras. Gosto de me pensar parte assim.
As silvas têm esses espinhos e as pessoas pensam que são picos de rosa, mas a mim interessa-me que sejam picos de silva porque para mim é uma planta muito portuguesa do campo. Eu tenho este processo que me aleijo, eu não vou lá e corto as silvas, eu vou e apanho espinho a espinho, mas deixo lá a silva para continuar a viver. Ela está a dar-me qualquer coisa e eu sinto-me melhor - talvez um pouco masoquista - porque deu-me trabalho e magoou-me, mas foi porque eu queria mesmo estes espinhos que me doeram a apanhar e como me doeram a apanhar simbolizam a minha dor também quando os uso na minha arte.
Simbolizam a dor, mas é através da dor que o barro se suspende. Eu vejo sempre as coisas como havendo sempre uma dualidade. É dor, mas é essa que me permitiu fazer outras coisas.
Há uma coisa meio repetitiva na natureza e eu gosto do repetitivo no meu trabalho, no tempo que é dedicado a recolher tal como a natureza dedicou tempo a produzi-los.
FB: O que tens compreendido sobre ti mesma nesse processo de entendermos a presença de todas as sensações na concretização de algo, que no final é viver?
CG: Uma das maiores coisas é eu realmente começar a aceitar que esta minha sensibilidade também significa uma dor específica, talvez em mais quantidade do que outras pessoas - que era uma coisa que me revoltava muito.
Obviamente consigo ver esta beleza toda, mas facilmente me sinto triste, desmotivada e foi muito importante através desta convivência, destes processos todos demorados, que é ok eu demorar. É ok o meu trabalho demorar tempo a fazer e eu demorar a aprender coisas. Aprender que as coisas não são preto no branco, são uma mistura.
Foi muito importante no meu trabalho, em que eu romantizava muito a minha nostalgia e romantizava muito o passado e o conforto do passado, o conforto da casa, quando na verdade me apercebi que há muitas coisas que me doem na casa e muitas coisas que me doem no passado. Isso ajudou-me a perceber que isso também acontece agora e há valor nisso.
É muito mais complexo do que a sociedade quer que nós achemos.
FB: Tu refazes muitos dos teus trabalhos e porquê?
CG: Sim. Se eu achar que existe algo para mudar, eu mudo. Há uns que eu sinto que não é preciso mudar coisas. Nunca tive problema absolutamente nenhum em mudar as coisas. Se eu mudo, o meu trabalho também vai mudar.
Não acho que a arte seja eterna, não acredito muito nisso.
Se eu estou aqui, se eu não vendi a obra [risos], se a obra está comigo ao menos que exista alguma coisa boa da obra ainda estar comigo, que é poder transformar-me constantemente.
É engraçado porque é este processo todo de aceitar quem eu sou, mas também, deixar de acreditar numa identidade muito específica. Isso faz-me acreditar que a minha arte também muda e se há alguma coisa que eu possa mudar numa obra que eu fiz há dois anos atrás e eu acho que vai ficar melhor, eu mudo.
FB: É possível constatar que o teu trabalho artístico tem sido nos últimos anos muito centrado sobre a ideia de casa e como tens feito essa pesquisa de variadas formas, com materiais com muita memória. Gostaria que falasses como esse processo de trabalhar sobre o tema casa surgiu e como foram as transformações que foram existindo dentro da tua pesquisa. Da série de pinturas Entre nós as duas [2022], até às várias pesquisas sobre ninhos como é possível observar em Esta Existência de formas [2025], O Impossível Retorno [2025], Abandonada [2025], A forma dos meus segredos [2023]. Pensar nas casas abandonadas, nas ruínas.
CG: Como eu tenho esta coisa de querer ir para longe, tenho muito esta dualidade entre o gostar muito de cá estar, gostar muito de ser portuguesa, gostar muito do campo, mas também, ter uma grande vontade de ir para fora, de ver o que está lá fora e não me fechar numa bolha do que é confortável. Tenho muito pânico de estar longe, há mesmo um pânico em mim de quando eu começo a sentir-me muito confortável e começo a não colocar-me em situações desconfortáveis, eu obrigo-me porque eu não quero ficar presa no que é confortável apesar de estar sempre à procura de um conforto. É muito paradoxal, sempre foi.
Sempre tive uma obsessão pela casa como um símbolo do que é confortável, porque eu na verdade sempre tive uma infância muito feliz, muito particular, uma casa muito bonita, com muito espaço. Sinto que talvez, como qualquer pessoa faz, romantizo a minha infância, romantizo a nostalgia pelo tempo que já passou ou que nunca existiu.
Eu faço arte porque realmente procuro um conforto no que eu crio, mas sempre um conforto que consiga representar também essa complexidade do que é estar confortável. Não é só confortável, há alguma coisa mais escondida lá e a casa sempre foi esta coisa de onde o meu corpo vive mais confortável - é no meu quarto, na minha casa.
Essa casa se desdobra, esse símbolo se desdobra em muitos outros símbolos.
Houve esse momento no atelier, que estava a mostrar a um amigo todas as coisas que andava a colecionar e ele disse-me: “olha já reparaste que tudo o que tu colecionas são casas?”.
Eu estava a colecionar cascas de ovos, conchas, caracóis, ninhos e apercebi-me que são tudo casas, são tudo refúgios.
Há quase um fascínio que eu tenho pelo animal que consegue criar a casa à sua volta, quase como uma segunda pele.
Estas pinturas das casas também são um pouco isso, esse estado mental ou emocional de um sonho ou de um local muito tranquilo, mas que na verdade não existem, estas casas não existem, não são reais e são muito esbatidas exatamente porque têm sempre uma camada do que é irreal. Têm fumo à frente, não são atingíveis, mas quando eu estou a pintar, estou sempre à procura dessa casa no campo onde ninguém incomoda porque está completamente isolada, mas também, não é necessariamente positiva porque é uma ilusão.
Eu já estive sozinha no campo e senti falta das pessoas. Acho que é esta compreensão de que nunca se vai estar 100% bem e aprender com os outros animais a compreender isso em mim, ver estes desdobramentos. Em vez de casa, ser do abrigo, refúgio. O caracol tem isso, que assim que se assusta entra para uma espiral e está protegido.
Interessa-me partilhar com os outros uma das coisas mais bonitas: o ser humano para sobreviver precisa de poucas coisas. Precisa de outros seres humanos, comida, água e de um abrigo.
Uma vez li uma passagem muito bonita de um biólogo, que dizia que a primeira casa alguma vez feita foi quando os nossos primatas colocaram as mãos em cima da cabeça para se proteger da chuva.
A casa é isso, é o refúgio, mas rapidamente se pode tornar prisão se não tivermos cuidado, é essa parte intermédia que me interessa.
FB: Qual é que achas que tem sido o teu maior desafio artisticamente?
CG: É perceber que eu também mereço estar aqui, apesar de parecer que não encaixo tão bem. Acho que isso é provavelmente uma sensação que toda a gente tem. Eu mereço acreditar na minha maneira de existir e não tentar impor outra ideia.
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Catarina Gentil (1998, Portugal) estudou Artes Plásticas, com especialização em escultura, na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e estágio no museu de arte moderna, Peggy Guggenheim, em Veneza (2021).
Apesar de o seu trabalho ser maioritariamente desenvolvido em escultura, Catarina mostra uma prática artística variada, passando pela pintura, pela fotografia e pelos têxteis. As suas temáticas envolvem questões como a memória (colectiva e individual), o território, o doméstico e o tradicional, centrando-se num tratamento poético da realidade e numa abordagem sensível e emocional aos temas. A sua estética parte de uma linguagem delicada que envolve o uso de matérias naturais e objetos domésticos.
Filipa Bossuet é o culminar do interesse pelas artes, jornalismo e tudo o que me faz sentir viva. Nasci em 1998, sou uma mulher do norte com memórias do tempo em Lisboa. Guiada pela sede de informação e pesquisa autónoma licenciei-me em Ciências da Comunicação e penso também sobre as influências dos estudos de mestrado em Migrações, Inter-Etnicidades e Transnacionalismo, criando um diálogo e questionamento entre os campos do saber. Colaborei como jornalista estagiária no Gerador, uma plataforma independente de jornalismo, cultura e educação, e no Afrolink, uma rede online que junta profissionais africanos e afrodescendentes residentes em Portugal. Utilizo performance, pintura, fotografia e vídeo experimental para retratar processos identitários, negritude, memória e cura. O meu trabalho transdisciplinar tem sido apresentado em espaços como a Bienal de Cerveira, Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), Teatro do Bairro Alto, Festival Iminente e o Festival Alkantara.





































