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BINELDE HYRCAN

CARLA HENRIQUES


 

Anota os sonhos em pequenos blocos. Primeiro em ideias, depois em desenho. Por estar constantemente a desenhar, sempre com um Moleskine à mão, Binelde Hyrcan aceitou o desafio de um vinho português: ilustrar o rótulo de uma edição especial de Esporão. Quer esteja em Angola ou na costa francesa, desloca-se de skate e quase como amuleto, usa ao peito um lego do Super Mario, a personagem dos jogos de vídeo, com a qual se identifica, por estar permanentemente a viajar. Para o artista, que se desmotiva com a arrogância, ouvir Miles Davis, Nástio Mosquito ou Steve Reich, são inspirações que o fazem criar imagens. É com vista, privilegiada, sobre a praia, que prepara no atelier de Luanda, entre vários projectos, uma nova instalação com galinhas, a expor em Novembro, no Mónaco. Até lá, os trabalhos em vídeo são projetados em Nova Iorque e na Califórnia.


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CH: Vives entre várias cidades ao longo do ano, há uma que seja a tua principal base de trabalho?

BH: Sou natural da Ilha de Luanda, a minha base. Sempre que estou em Angola, é na Ilha que me sinto em casa, junto dos meus pais, mas não passo mais de dois meses aqui, porque viajo constantemente. Fiquei muito ligado às cidades onde estudei. Quando saí de Angola, fui primeiro para Nice para uma Escola de Artes, e depois para o Mónaco, onde fiz o curso no Le Pavillon Bosio, a Escola Superior de Artes Plásticas. Considero o Mónaco e Nice, onde também tenho um atelier, como cidades satélite, e passo lá o resto do ano. Acabo por me dividir por cidades costeiras, por ter uma necessidade de ver o mar, e o sul de França, com palmeiras, remete-me para a Ilha. Já não consigo ficar apenas num sítio… é incrível, mas se estou a pintar na Ilha penso que tenho de ir buscar um pincel a Nice. Por vezes, é com se não houvesse distâncias, sinto que há cada vez menos barreiras e fronteiras num mundo global, em que tudo se torna mais acessível e em que estamos todos ligados.


CH: A relação familiar é muito importante para ti, pelo facto de viveres com os teus pais sempre que estás em Luanda?

BH: Sim, é. Nasci na parte de baixo desta casa, e quando comecei a trabalhar decidi reconstruir a parte de cima. Agora estou a fazer obras no terceiro piso, onde vai ser o meu futuro atelier, mais amplo do que o estúdio onde trabalho agora, aqui em casa. É quase como o Andy Warhol que vivia com a mãe, e o irmão (risos). Sei que quando acordo, as primeiras pessoas que vejo são os meus pais. Isso é importante, porque eles dão-me uma força enorme para trabalhar e sempre acreditaram em mim. E há também o lado de partilha. Por exemplo, estou agora a ler um livro antigo, que comprei em Portugal, sobre a história de Angola. Num dos capítulos fala sobre a açucareira do Caxito, onde o meu pai trabalhou. Estamos sempre a conversar, ele explica-me o que aconteceu, conta-me histórias, rimos juntos.


CH: E foi por influência da tua mãe que seguiste a aérea das artes.

BH: A minha mãe era costureira. Na minha infância via-a transformar tecidos em batas escolares, o que achava espantoso. O país passou muito tempo em guerra, havia dificuldades na alimentação e em casa éramos 10 filhos. A minha mãe procurava formas de nos dar a melhor alimentação possível, mas eu sabia que estávamos com dificuldades, o meu pai trabalhava dia e noite. Uma vez, ela calçou-me umas meias com cores diferentes, julgo que uma vermelha e uma verde. Lembro-me de lhe dizer que estavam ao contrário, mas na realidade não tínhamos meias, e ela respondeu-me: “é para afugentar os monstros”. No meio dessas dificuldades, ela estava sempre a tentar fazer-me rir. Julgo que essa criatividade da minha mãe me influenciou, quer para se desdobrar para nos sustentar, quer para nos fazer esquecer as contrariedades. Os meus pais apoiaram-me de forma natural quando decidi ir para França estudar artes, o que foi algo extraordinário. Nos anos 90, com Angola em conflito armado, um filho dizer aos pais que iria seguir essa área, seria de imediato dissuadido para fazer antes Direito ou Engenharia. O meu pai, pelo contrário, disse-me: “não me interessa o que queres fazer, desde que sejas o melhor. Se tu decidires fazer fósforos, eu quero que faças o melhor do mundo. Vai e tenta ser o melhor artista”. Acabei sendo o segundo melhor aluno do curso na Escola Superior do Mónaco, e recebi prémios.


CH: E quando é que surge a tua primeira exposição?

BH: Foi ainda durante a faculdade. Fui convidado para realizar um trabalho de cenografia, com a cenógrafa Macha Makeieff, na exposição Jacques Tati, na Cinemateca Francesa em Paris. A mostra foi um sucesso, e foi aí que conheci os fabricantes e editores de mobiliário de design Domeau & Pérès, que representam nomes como Philippe Starck ou Pharrell Williams. Nessa altura construi uma série de cadeiras com teclados de computador, sob o título Moye. O Bruno Domeau e o Philippe Pérès começaram a editar as minhas cadeiras. Ter feito isso com estes editores foi fantástico! Não me considero designer, eu experimento novas situações e estou sempre a questionar sobre um projecto, ou sobre o que é a arte, tal como o Marcel Duchamp com o urinol, ou a Joana Vasconcelos que faz sapatos com tampas de panelas. Até onde é que podemos chegar? Nessa mesma altura também fui convidado para fazer um videoclip para o M, um cantor francês… foi assim que tudo começou, e agora já ando a pensar no que vou produzir para 2017, perante tantos convites.


CH: Em todo o teu trabalho, independentemente do formato em que é apresentado, fazes sempre essas questões? É fácil obteres respostas?

BH: Uma teoria concreta na área da medicina parece-me imprescindível, mas para a arte uma solução é o fim, eu não gosto disso. Estou sempre a questionar e a tentar descobrir, estou sempre a testar coisas. Por exemplo, a performance White Rain com a cadeira preta gigante, que fiz recentemente em frente à Administração da Ilha de Luanda, a receber com “cocó” de pássaros durante 9 horas, é uma pergunta: qual o estatuto da pessoa que está sentada numa cadeira construída em grande escala?


CH: E qual foi o ponto de partida?

BH: Fiz uma pesquisa em toda a Ilha, e descobri que a árvore onde os pássaros fazem mais “cocó”, era a que estava mesmo em frente ao edifício da Administração. Achei fantástico porque é um local de poder, e é ao mesmo tempo o sítio para onde as pessoas vão às 4 da madrugada, porque têm de fazer longas filas para ficarem à espera, às vezes um dia inteiro, para tratar do bilhete de identidade. Então, construí uma cadeira com 2,20 metros de altura, e levei-a para a frente da Administração local, onde estive sentado debaixo da árvore, desde as 4h30 da manha. Foram 9 horas sem sair da cadeira, a levar com o “cocó” branco dos pássaros. Claro que tive de pedir uma autorização para fazer a intervenção artística, mas ninguém das autoridades me incomodou, principalmente porque já me conhecem, vêm-me constantemente a andar de skate. No Mónaco, no entanto, fui preso pela performance que fiz numa jaula.

 

 


CH: E como surgiu a ideia de te colocares sentado, a ler um livro, dentro de uma pequena jaula com rodas, no meio da cidade?

BH: Eu queria falar do micro espaço e do espaço geográfico. Queria posicionar-me como alguém com muito poder, num espaço limitado. Para mim, esse espaço era a jaula. Quando se está num país estrangeiro, é necessário um passaporte para sair, para circular. Sem o passaporte, torna-se uma prisão, que se torna uma grande escala porque se está num território fechado. Eu comecei num lugar, e o poder de me mover estava na mão das pessoas à minha volta, porque eu dizia a quem passava por mim nas ruas, sem pedir por favor, para me empurrarem dois metros. E as pessoas, automaticamente, empurravam a jaula comigo lá dentro. Fiz cinco quilómetros só a ser empurrado. Estava a ser sustentado pelas pessoas que compõem a sociedade, tal como o poder político. Claro que era de uma forma paradoxal, porque estava num espaço reduzido. Apesar de preso, tinha todas as condições dentro da minha jaula: dinheiro, educação, estava vestido, mas havia contradições no meu espaço geográfico.


CH: Conseguiste fazer uma vida quase “normal” dentro da jaula.

BH: Sim, foram 6 horas na jaula, sempre de um lado para o outro, empurrado pelas pessoas. Fui ao banco levantar dinheiro, fui a um restaurante almoçar - mas o prato da comida não passou nas grades -, andei de elevador. Depois, os últimos que me empurraram foram os polícias, que me prenderam numa verdadeira jaula. O Mónaco é muito pequeno e eles já me conheciam, porque fui o primeiro negro a entrar na Escola Superior de Artes Plásticas. O problema foi quando a performance criou um movimento nas pessoas que começaram a tirar fotografias. Os turistas japoneses começaram a dizer que no Mónaco estavam a meter um negro numa jaula… Isso criou uma espécie de pânico, numa cidade-estado onde essa palavra não consta do dicionário.


CH: A ideia que tenho é que te dá gozo levar as performances para rua e confrontares as pessoas.

BH: O mundo das galerias, das vernissage, é muito pequeno. No caso de Angola, os meus vizinhos e amigos na Ilha, que são filhos de pescadores, nunca viram arte, nem sabem o que faço. Sair para a rua e mostrar é a forma de chegar a eles, que vão ver e comentar. Será um processo longo, em Luanda, porque a cultura da arte contemporânea ainda é residual, e por isso ainda é um pouco complexo.


CH: As tuas performances apesar de serem críticas sociais têm sempre muito humor, como quase toda a tua obra.

BH: Sim, o Peter Brook, que é o diretor do teatro Bouffes du Nord em Paris, viveu vários dramas na vida… Li a biografia dele, onde há um momento em que diz que na arte tem de se tentar mostrar fantasia, humor e tragédia. A minha história, o contexto geográfico do país de onde saí através da guerra, em que tive uma irmã que foi presa, em que vi imagens muito duras, não foi nada fácil, mas tento encarar diferentes situações numa boa perspectiva. As pessoas têm de rir, chorar, pensar.


CH: Ou seja, a tua arte tem a ver com a forma como estás na vida.

BH: Acho que é graças à arte que damos conta que a vida é mais importante. No Mónaco, por exemplo, um pouco por causa das peças que criei, hoje têm uma outra visão do que é Angola, porque levei algo que era novo para eles. Por outro lado, estabeleci boas relações com a Escola Superior de Artes do Mónaco, com a qual colaboro regularmente. A exposição que fiz agora em Milão foi uma parceria com uma empresa angolana, a Jahmek, e a MPA (Monaco Project for the Arts). Consegui juntar duas entidades para organizar o evento. Esse é o meu objectivo, levar um pouco da minha história para o Mónaco e vice-versa, trazendo pessoas do Mónaco para Angola também.


CH: Na exposição de Milão – E.G.O – apresentaste uma nova série com galinhas.

BH: A exposição teve lugar em dois espaços diferentes, no Museu do Ressurgimento e no Palácio Morando. É a história do ego, quando falo do absurdo da vaidade humana e transformo as galinhas em figuras da realeza. Muitos reis europeus, e também africanos, tiveram uma forma muito exagerada de estar e de usufruir do poder que tinham. No Museu do Ressurgimento estava a verdadeira capa de Napoleão Bonaparte. O Napoleão foi uma grande referência para o meu trabalho das galinhas, porque falo do poder. Considero que ele teve um poder absurdo e exagerado, tinha domínio sobre toda a Europa, mas terminou a sua vida na pequena ilha de Santa Helena. O facto de colocar a galinha do Napoleão ao lado da verdadeira capa foi, para mim, muito simbólico. No outro espaço, no Palácio Morando, tinha a imperatriz, a figura da rainha que se olhava no espelho. No fundo todos temos um ego, e tento perceber porque queremos sempre mais, se podemos viver com menos, de uma forma simples.


CH: As galinhas é um trabalho inacabado que continuas a desenvolver?

BH: Agora estou a trabalhar uma nova série - a orgia das galinhas. São várias galinhas nas posições do Kama Sutra, mas todas vestidas com roupas políticas, que vão estar numa Assembleia. A última série, será o projecto espacial - uma galinha no espaço. É um processo moroso. Estou à espera de uma resposta do centro de pesquisa da Airbus, em Toulouse, para ver se consigo um fato de carbono para a galinha, porque corre o risco de explodir quando sair do espaço terrestre. É um trabalho que estou a fazer com a EADS (European Aeronautic Defence and Space Company), que vai tentar fabricar um pequeno cockpit para a galinha e larga-la no espaço, como acontece com os satélites.


CH: A insalação Thirteen Hours foi a primeira série?

BH: Sim, onde atribuo diferentes posturas humanas às galinhas empalhadas, ao fazer a introdução da família real, com o rei, a rainha e os soldados atrás.


CH: É uma série muito forte, porque remete para a guerra.

BH: Sim. Pensei no Saddam Hussein e no Muammar Kadafi, e em alguns países do Médio Oriente, como a Síria. Os mesmos que apoiaram alguns estados são os mesmos que aniquilaram esses homens do poder. É um jogo que tento demonstrar através dessa série das galinhas. Há algo que não está certo…


CH: E como surgem as galinhas no teu trabalho?

BH: Na minha infância. Os meus pais eram também agricultores e tinham uma quinta no Caxito, onde criavam animais, e de vez em quando a minha mãe trazia galinhas para Luanda. Eu brincava com as galinhas, fazia paraquedas e lançava-as do segundo andar de casa. Com o tempo, aprofundei a relação e fui compreendendo a sua morfologia. Quando decidi usá-las como meio de trabalho, descobri que existem 200 espécies no Mundo. As galinhas saíram primeiro da Índia para a Grécia, quando começaram a sofrer mutações. Li vários livros, vi documentários e filmei criadores. Descobri um novo universo, sobretudo de pessoas que são fanáticas por galinhas. Nunca tinha imaginado tal coisa, mas há quem trate das galinhas como um filho, que fala com elas… Na pesquisa que fiz, aprendi que, as anãs, são as mais inteligentes, cuidam dos ovos de outras galinhas, por isso escolhi essa espécie para as minhas instalações. Tive de aprender a empalhar com um taxidermista francês, com quem trabalho.


CH: Cambeck, é o teu primeiro vídeo, em que filmas com crianças.

BH: Quando cheguei a Luanda tinha o script todo pronto e dei a adultos para lerem, mas estava a procura de algo mais autêntico. Conheci umas crianças aqui da Ilha, entre as quais o Samuel, que leu o texto de uma forma incrível! Com as crianças era mais verdadeiro, elas ensinaram-me coisas, e acabaram por também escrever uma parte do argumento. Julgo que a autenticidade do vídeo foi o que o levou a ganhar prémios, e contínua a ser mostrado em museus. Na altura em que filmei, as obras em Luanda ainda estavam em curso, continuam aliás, mas antes o trânsito estava muito pior, caótico, pelo que tentei captar esse processo. O segundo filme que realizei e rodei em Nice, foi sobre um coleccionador de dentes humanos, a história de um fanático. Agora estou a escrever um argumento sobre a personagem - o “bisno” (de business), porque em Luanda todos fazem negócio. Imagino o “bisno” como uma pessoa que segue outra, que está sempre presente. Ao mesmo tempo, estou na fase de montagem de um vídeo sobre uma performance que fiz em Luanda, onde questiono o absurdo, porque ando pela cidade de skate, vestido com um fato de mergulhador, à procura de uma lagoa.

 

 

 


CH: E és organizado no trabalho?

BH: Por vezes sou muito confuso, mas tenho uma estrutura com pessoas que me ajudam a produzir, o que me deixa mais tempo para criar. Normalmente somos três no atelier, e ainda tenho os técnicos com quem trabalho: soldadores, carpinteiros… Quando estou na Ilha, há sempre amigos a sair e entrar no atelier, nem que seja para me chamarem para ver o pôr-do-sol. Acabo por trabalhar entre as 10 da noite e as 6 da manhã. As madrugadas são o momento em que estou mais descansado, mas por vezes até de noite aparecem amigos. O atelier é um espaço que está sempre em movimento, um ponto de encontro. Quando tenho mesmo de me isolar, saio de Luanda e vou para Nice, que é mais calmo.


CH: Nesta conversa falaste várias vezes dos teus pais, eles também são teus conselheiros e críticos a nível artístico?

BH: Sim, quando estou em Luanda eles seguem diariamente todo o processo de criação, são o meu público antes das obras saírem do atelier. Perdi um irmão há 3 meses, que morreu. Fiquei dois meses sem forças para desenhar, trabalhar… olhava para as telas, mas não conseguia pintar. A minha mãe sentia isso, e ia insistindo para eu tentar, dizia que eu ia conseguir… foi a minha motivação. Mais do que a arte, o cinema, ou a literatura, os meus pais são as minhas grandes referências.