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ARTES PERFORMATIVAS


KARRIEM RIGGINS: EXPERIÊNCIAS E IDEIAS SOBRE RITMO E HARMONIAS

RICARDO ESCARDUÇA

2017-05-17



 

 

É ao que não se nos instala hirto e estático na memória que regressamos não raras vezes, não para enrijecer a volatilidade dessa impressão, mas para experimentarmos uma versatilidade de outras, diferentes a cada regresso, esta diferente da outra. Essa fluidez orgânica não é, aliás, sintoma e sinónimo automático de ausência de individualidade. Pelo contrário, é o caso.

É o caso de “Headnod Suite”, o segundo trabalho original do norte-americano Karriem Riggins que a âncora californiana do hip-hop independente Stones Throw Records colocou no mercado em 24 de Fevereiro. A maior parte das faixas esfuma-se e desvanece-se na memória pouco depois de terminar, oferecendo-nos poucas hipóteses de um trauteio retrospectivo. Ainda assim, é ao ambiente que o álbum inspira que queremos regressar – e querer voltar ao início depois de atingir o fim é sempre bom sinal. “Headnod Suite” está longe, contudo, da música ambient, aquela originalmente cunhada para dar ambiente de fundo a um local onde existe algo mais. Enquanto um verdadeiro estudioso e ávido consumidor de vários géneros musicais, tudo a que deita a mão, Riggins encontra na música que cria o canal de comunicação das suas ideias e em “Headnod Suite” o momento certo para contribuir para a elevação da experiência musical. O álbum distingue-se pela personalidade de um ecletismo instrumental elegantemente atingido.

Antes sequer do primeiro acorde, o arrojado experimentalismo de Riggins salta de imediato à vista devido à estrutura do próprio álbum. Se muitos trabalhos de hip-hop – e não só – abrem com uma faixa instrumental de curta duração, ou podem ser entrecortados a meia-duração como forma de criar momentos diferenciadores de tensão, Riggins “atreve-se” a construir um álbum inteiro com faixas que podem ser Intro’s. Não é de admirar que a tracklist apresente 29 entradas, e tão-pouco que grande parte delas ronde os 2 minutos de duração, pendendo algumas, poucas, para ambos os extremos – alguns casos que não ultrapassam sequer 1 minuto e outros que atingem a “proeza” dos 3 minutos.

 

 

As companhias de Riggins não são motivo para espanto. Criado entre as prateleiras imensas de discos do pai, ele-próprio pianista, teclista e compositor de jazz, e as jam-sessions do pai e amigos na garagem de casa, não lhe faltam camadas musicais para escavar. Rapidamente se agarra às baguettes e à sua paixão: o ritmo. Ainda adolescente, nos anos ’90, é no território do jazz que se vai explorando, sentando-se no banco da bateria ao lado de vários nomes de peso, tais como o pianista Hank Jones ou a vocalista Betty Carter. Abandonando a Detroit natal para estudar música em NY, as aventuras no jazz prosseguem ao lado do baixista Ray Brown (que, entretanto, conta no seu cinto com outros nomes tão ou mais pesados como Ella Fitzgerald e Dizzy Gillespie), e é então que as referências musicais expandem mais ainda, e em direcções que dizemos não opostas, mas complementares, como confirma aliás a história da música. Durante os estudos, funda com DJ House Shoes o colectivo 31 Flavours. Está aberta a porta do hip-hop. A fluidez da vida, essa com que a sua música sai impregnada, leva-o a sentar-se à mesa de mistura em produções colaborativas com Common e J Dilla no virar do milénio. Não está mal para começar. Já em LA, integrado na família Stone Throw, seguem-se outras colaborações com Madlib, Erykah Badu, The Roots, Talib Kweli, Kanye West, Kaytranada ou Esperanza Spalding, enquanto dá uns toques na bateria ao lado de Diana Krall ou Paul McCartney. Common, entretanto, não o larga, e o álbum deste ano, no qual Riggins figura como main producer, é prova disso. Ainda que o seu nome não conste dos tops de vendas, estes mesmos tops de vendas têm a sua marca, mesmo quando não sabemos disso. Por entre tais companhias do jazz e hip-hop do melhor que se foi fazendo, a juntar à inspiração natural, o destino do brilhantismo musical é inevitável em Riggins, aliás como dita o ditado popular. 

“Headnod Suite” é o espelho de Riggins enquanto músico pluri-instrumentista e produtor. À imagem do que afirma e pretende para si mesmo – não se intitular como artista, nem como nada, em rejeição a classificações castradoras – “Headnod Suite” é criado enquanto experiência laboratorial onde não há lugar para regras de fusão dos mundos distintos mas intimamente ligados do hip-hop, rap, jazz, soul e funk. “Headnod Suite” encorpa a vontade em juntar várias linguagens rítmicas e melódicas num único trabalho que possa chamar de seu, e ver no que dá. Algo como a transdisciplinaridade ou antidisciplinaridade, algo novo que resulta da multidisciplinaridade. Algo que não conseguimos agarrar e fixar numa impressão, e a que regressamos para mais uma. Dá boa coisa, é caso para dizer.

 

 

Com exactidão, perícia e polidez dedicadas aos detalhes que fazem a diferença, Riggins oferece-nos uma colagem de atmosferas carregada de camadas e nuances. Partidário declarado da bateria e do baixo que o permitem vaguear na exploração e invenção rítmica de géneros variados, cada faixa abre e estrutura-se na espinha dorsal que o seu beat samplado fornece e coloca em posição central. Contudo, sobre estes, surgem elementos que não fazem mais que revelar a palette de ideias variadas que coloram a cabeça de Riggins desde o jazz ao hip-hop, e que reforçam a identidade própria que cada faixa já colhe na variedade rítmica inventiva de Riggins. Em “Other Side of the Track” ou “Crystal Stairs”, deparamos com uns vislumbres de guitarra eléctrica, em “Chop Chop”, com o scratch do prato de vinil, em “Keep It On e “Yes Yes Y’all” com o piano, em “Dirty Drum Warm Up” com um coral que se atira para os lados do gospel, em “Trombone Love” com um teclado sintetizado em modo de mantra ritual, em “Suite Poetry” com um trompete e uma flauta transversal, tudo enquadrado em samples de beats, vocais rap e pequenas progressões harmónicas de teclados sintetizados. Nunca demasiado contido nem demasiado expandido, “Headnod Suite” salta de faixa em faixa quase como uma mixtape em rotação constante, apesar da sua heterogeneidade. Não deve andar longe de uma radiografia à cabeça criativa de Riggins. Destacam-se, ainda, duas singularidades. Evocando a comunidade negra de Detroit, “Suite Poetry” é a única faixa em que a componente lírica ganha lugar sob a voz da reconhecida e premiada poetisa, dramaturga e performer Jessica Care Moore, andando a par, ou até mesmo sobrepondo-se à componente instrumental que Riggins, neste caso, faz diminuir, porventura intencionalmente. Um conjunto de faixas surge a meio-álbum como um bloco coeso, as faixas “Cheap Suite”. Desviando-se do que lhes antecede e procede, destacam-se como mais experimentais e espaciais, agregando interesse à unidade das 29 faixas. Merecedora de atenção ainda as colaborações instrumentais do baixista Derrick Hodge e do teclista James Poyser na faixa que encerra o álbum – será fácil imaginar o estúdio de gravação como “o recreio onde as crianças se divertem”.

 

 

 

“Headnod Suite” segue as pisadas das 34 faixas de “Alone Together”, primeiro trabalho de Riggins datado de 2012, acolhido de braços abertos. O debate sobre a coesão identitária face ao experimentalismo aventureiro entre ambos dá para várias linhas e palavras. É um facto que “Alone Together” nos parece mais experimental em sonoridades e tonalidades exploratórias e dispersas; é um facto que “Headnod Suite” nos parece mais coerente musicalmente sem com tal identidade beliscar a sua versatilidade. O que ambos revelam é tão-somente a resposta para as companhias de Riggins e o seu valor enquanto produtor e polifacetado instrumentista.

A amplidão melódica, a que também se pode chamar ausência, dá lugar a este laboratório experimental de ideias, mais que músicas ou menos que músicas, dedicado ao ritmo e segmentação harmónica do qual não nos parece nada improvável assistir à colha por outros em trabalhos próprios em reinvenções, samplagens e remisturas futuras. A tracklist está disponível na íntegra em plataformas como o Spotify. Tal como o nome indica, mais do que gravar-se-nos na memória como uma melodia para cantar para nós mesmos, “Headnod Suite” faz-nos abanar a cabeça acompanhando as experiências do seu ambiente rítmico personalizado que se desmultiplica a cada vez que chegamos ao fim e voltamos ao início.

 

 

Tracklist “Headnod Suite”

 

1.    Suite Intro

2.    Other Side of the Track

3.    Yes Yes Y’all –

4.    Invasion –

5.    Trombone Love

6.    Crystal Stairs

7.    Sista Misses

8.    Detroit Funk

9.    Oddness

10.   Tandoor Heat

11.   Chop Chop

12.   My Reflection

13.   Dirty Drum Warm Up

14.   Pay.gio

15.   Suite Poetry feat. Jessica Care Moore

16.   4Es’J

17.   Joy and Peace

18.   Cheap Suite 1

19.   Cheap Suite 2

20.   Cheap Suite 3

21.   Cheap Suite 4

22.   Never Come Close

23.   Re-doze

24.   Bahia Dreamin’

25.   Cheap Suite 5

26.   Cia

27.   Keep It On

28.   Fluture

29.   Suite Outro – Hodge, Poyser, Riggins 




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