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O ATELIER VERMELHO DE MARK ROTHKOCLÁUDIA HANDEM2025-12-09
Cedo se percebe que Vermelho não será apenas vermelho. Aliás, ele parece nem querer existir pois é quase um insulto nomeá-lo assim. “Escarlate - carmesim - ameixa - amora - magenta - bordô - salmão - carmim - cornalina - coral” [2]. O tom inominável do matiz irá coincidir com o tom logo insuportável da voz de Rothko quando profere a primeira fala: um “O que é que vês?” surpreendentemente brusco e ríspido, depois de o vermos sentado de costas e em silêncio a contemplar uma das suas pinturas. A pergunta, contrariamente ao que se espera, não é retórica. Rothko exige uma resposta precisa ao futuro assistente que acaba de entrar no estúdio para a entrevista de emprego. Para um pintor que evocou que o silêncio era a derradeira resposta à fruição emocional da sua pintura, a avalanche argumentativa a que se assistirá nos próximos 90 minutos de peça é paradoxal, logo, intrigante. O texto de Logan reúne declarações do artista a partir de várias fontes, construindo uma versão de Rothko como um “homem furioso”, se quisermos citar John Fisher no artigo que escreveu para a Harper’s Magazine em 1970, ano da morte do artista. “Falar, como descobri mais tarde, era uma necessidade para ele, como respirar” [3]. A peça é a transcrição dessa necessidade vital: um jorro de fúria que se faz ouvir demasiado alto para a atmosfera “sagrada” e reverente do atelier. Esta sensação de discordância paira em todas as cenas: dada a conhecida dificuldade em descrever por palavras a sua pintura - escassa, senão nula, em elementos descritivos diretos -, a verborragia de um raciocínio irrepreensivelmente articulado e rápido que brota de ambas as personagens não parece condizer com a experiência muda da sua obra (seja ela emocionalmente arrebatadora ou vazia). Tal sensação imbui a peça de uma agilidade e densidade, por si só, notáveis. Esta exasperação que flutua está na própria génese das pinturas do Seagram, que constitui uma das histórias morais do modernismo norte-americano da década de 60. Rothko aceitou a encomenda de 35.000 dólares (uma quantia sem igual na época) “com intenções francamente malévolas” de arruinar o apetite das pessoas que, acima de tudo, desprezava (nunca suficientemente dignas de verem sequer (!) a sua pintura). O seu intuito era que se sentissem “presos numa sala onde todas as portas e janelas estivessem tapadas, de modo a que tudo o que pudessem fazer fosse bater com a cabeça contra a parede, para sempre” [4]. Este desejo de enclausuramento que roça a tortura (influenciado, segundo o próprio, pelo vestíbulo da Biblioteca Mediceia Laurenziana, de Miguel Ângelo, em Florença) teria o propósito de ser votado à introspeção, o que fazia do restaurante um lugar desadequado e desmerecido para a experiência meditativa e espiritual que Rothko queria induzir no observador. Rothko. A sua ambição intelectual, influenciado pelo niilismo de Nietzsche, via a arte em termos absolutos e queria “elevá-la ao nível da pungência da música e da poesia”, uma experiência de um ato apenas (como o é a peça de Logan), capaz de expressar emoções humanas básicas: tragédia, êxtase, desespero, morte. A este desígnio hercúleo e profundamente ancorado na realidade (e não em premissas religiosas, míticas ou místicas), não se esperava uma personalidade menos forte: Logan fá-lo altamente tenaz na recusa obstinada em abandonar os seus ideais e opiniões mordazes sobre o meio artístico da época, atacando a falta de cultura a par com a ignomínia frívola e especulativa do mercado da arte. Por isso, é tão reativo aos comentários do assistente sobre o simulacro que achava ser a arte dos seus contemporâneos, composta por “latas de sopa e banda desenhada”. Não é surpreendente esta posição dado que um quadro seu “é estranho a esta noção de progresso (...) não avança nem recua (...) está aí, fora destes movimentos. É pura imanência” [5]. A volatilidade de Rothko esconde assim uma vulnerabilidade - o medo de se tornar redundante e ultrapassado por questões que assumia como menores e datadas. Ken. Ken não é, de todo, diminuído na presença do pintor (tudo se suspende quando disputam fogosamente as várias associações da palavra vermelho). Ao contrário de Rothko que se mantém para sempre na sua luta interior dogmática, Ken cresce com as suas invasivas partindo de uma timidez ingénua para uma admirável auto-afirmação. Pouco lhe conhecemos além da memória da neve branca que cobria a manhã do dia do assassinato dos seus pais - um indício de um passado marcado pela tragédia. Descobre-se assim que a raiva também a ele pertence, servindo de guia para o percurso autónomo do jovem pintor. Ele não se subjuga às convicções de Rothko mas aprende com elas, acabando por tecer as suas próprias opiniões e se tornar num fervoroso porta-voz do futuro. Ken é a personificação de uma nova geração de artistas, aquela que suplanta a anterior - a da Pop Art contra o Expressionismo Abstrato -, apesar de nunca chegarmos a ver a pintura que traz embrulhada para mostrar a Rothko. O duelo em que se torna a sua relação - um confronto ambivalente entre pai e filho, mentor e aluno, mestre e discípulo - culmina num pacto silencioso e justíssimo de reconhecimento mútuo. Rothko e Ken. Ambos aterrorizados, um pelo preto, outro pelo branco. No fim, anulam-se porque são semelhantes. Resta o vermelho, esse “pedaço minúsculo de esperança que faz com que tudo o resto seja suportável” [6]. Está-se perante essa vitalidade numa versão contemporânea d’O Atelier Vermelho (1911) de Henri Matisse (que Rothko viu, vezes sem conta, no MoMA). Carlos Pimenta, ao recusar a mimesis do atelier do pintor, cria um espaço cénico depurado composto por um retábulo gigante de 3 ecrãs de meditação (cujo formato remonta às estruturas-cavalete que existiram efetivamente no estúdio) e onde se vão projetar digitalmente uma selecção de pinturas da série. A disposição alude subtilmente à arquitetura octogonal da Capela Rothko (Houston, Texas), e os ecrãs, suspensos, não ousam tocar o chão, o que enaltece o caráter espiritual da sua pintura. Ocorre-me pensar que, aqui, a pintura aparenta ser um exercício demasiado imaculado e, por isso, aterrador. A pintura, situada no alto... Ainda vemos de que matéria é feita? Fala-se, discute-se, grita-se sobre pintura, o que não deixa de ser impactante e comovente (é sempre útil e ainda mais inútil fazê-lo). Porém, não se pinta. Optou-se por utilizar a animação das pinturas projetadas para simular o processo da sua aparição e construção, na sobreposição de camadas de tinta a vários ritmos. O corpo que pinta e o seu contacto com a matéria não existe, sendo substituído por uma solução que decerto optimiza adereços e recursos associados à dinâmica da cena, que seria bem diferente se se tivesse optado pela manipulação física do objeto da pintura e tornado a relação entre teoria e prática mais real. Os únicos indícios do labor são baldes com soluções avermelhadas, um trolley imóvel com alguns utensílios (serve mais de mini-bar do que de mesa de trabalho - o que não deixa de ser um carrinho com soluções), e uma lona de plástico manchada que Ken dobra e desdobra com rigoroso método, sinalizando o início e o fim de um dia de trabalho. Quero acreditar que a opção digital não foi inocente pois não deixa de referenciar as problemáticas da autoria, da reprodução, da imitação e da falsificação da obra de arte das quais Rothko foi alvo, na medida em que o gesto e a escala das suas pinturas escapam a qualquer tentativa de cópia. Retratar as artes plásticas em palco a partir do interior do estúdio do artista pode ser arriscado: os lugares-comuns não são poucos, e muitos são capazes de generalizar o que é ser pintor, principalmente quando se lida com uma personagem tão eloquente e estudada quanto Rothko. Pensar a pintura num lugar deslocado àquele que lhe está habitualmente subentendido - a escola, o atelier, a galeria ou o museu - e vê-la migrar para um campo como o teatro, mesmo que não lhe seja estranho, apresenta um potencial cultural imenso que permite não só alargar um público ainda restrito. Para isso, é imprescindível que o texto e os actores sejam bons. E são. O drama de Logan pode parecer exagerado em alguns momentos mas coloca o dedo na ferida em assuntos que continuam sensíveis no mundo da arte: o tempo da arte e a sua “validade”, a questão geracional, a recepção da obra pelo público, a relação com o dinheiro e a bolha especulativa do mercado, sem referir aqueles que pertencem à natureza íntima do fazer artístico (por exemplo, o tempo de reflexão, escrutínio, silêncio, isolamento que a abertura de Vermelho evidencia). Red foi distinguido com vários prémios, entre os quais 6 Prémios Tony, e teve estreia em 2009 no Donmar Warehouse em Londres, sob a direção de Michael Grandage. É conhecida a interpretação de Alfred Molina no papel de Mark Rothko (basta visualizar alguns excertos disponíveis na web para ficarmos rendidos à sua performance voraz), mantendo-se nas reencenações que se seguiram na Broadway em Nova Iorque (2010), Los Angeles (2012), e novamente em Londres no Wyndham’s Theatre (2018). Já o papel de Ken alternou respetivamente entre Eddie Redmayne, Jonathan Groff e Alfred Enoch. Trazer Vermelho para o contexto português, por Carlos Pimenta, vem do seu interesse em abordar as relações entre as artes visuais e as artes performativas, reabrindo o caso “Rothko” já melodramático por natureza. No dia do seu suicídio, a 25 de Fevereiro de 1970, 9 das 30 pinturas do Seagram chegam, doadas pelo artista, à Tate Gallery de Londres para aí serem pública e permanentemente expostas em conjunto, num ambiente imersivo cujo tom acinzentado das paredes foi escolhido pelo próprio artista. Rothko via-se como um arquiteto que constrói “um lugar… Um espaço onde o observador pudesse viver em contemplação com o trabalho e dar-lhe alguma da mesma atenção e cuidado” que ele lhe dava [7]. Pimenta pensa assim o palco: compara-o à experiência contemplativa da arte num lugar sacralizado, “carregando-o com todas as convenções inerentes ao ato teatral: o silêncio, a concentração do olhar e a criação de um “dispositivo” que é, no fundo, do que a encenação se ocupa”, refere no texto do programa [8]. A pintura e o teatro questionam em uníssono: “deve a arte ser um mero objeto de divertimento e decoração, ou, pelo contrário, proporcionar o encontro do homem consigo próprio e com o mistério da existência?” [9]. Percebe-se a razão pela qual Rothko devolveu, por inteiro, o cheque dos milhares de dólares da encomenda e não chegou a expor a sua vingança estética na opulência do Four Seasons. Este ato representou um sacrifício necessário à sua reputação moral artística, injetando uma boa dose de carácter e genuinidade espiritual no mundo da arte moderna nova-iorquina. Devo dizer que, até hoje, nunca experienciei ao vivo uma pintura de Rothko. Obviamente que tal não invalida o juízo que aqui exponho. Mas utilizo este distanciamento como uma força mediadora entre a expectativa e a resolução. Não irei desmentir: o que senti, ao sair do teatro, foi uma sensação de tristeza sem capacidade de se justificar por acontecimento algum. Demorei a concluir que não foi o texto, os atores ou os meios. Foi o que mais tarde li num texto de João Barrento a propósito de se ver Rothko: “a felicidade só pode ser triste, no sentido de que, se não o for, é mero contentamento contentinho - o que é manifestamente pouco” [10].
[1] No original: Red, de 2009;
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