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OPINIÃO


Imagem parcial do flyer da exposição “Maison Tropicale” de Ângela Ferreira distribuído na 52ª Bienal de Veneza, 2007.


Fotografia do interior da escultura “Maison Tropicale”, 2007 de Ângela Ferreira na Fondaco Marcello em Veneza. Fotografia: Haupt & Binder


Imagem da capa do catálogo editado por Jürgen Bock com textos de Manthia Diawara, Andrew Renton e Gertrud Sandqvist, por ocasião da exposição “Maison Tropicale” de Ângela Ferreira.


Cartazes da exposição “Maison Tropicale” de Ângela Ferreira na 52ª Bienal de Veneza, em Veneza, Junho 2007. Fotografia: Sofia Ponte


Fotografia do exterior da Fondaco Marcello, Pavilhão de Portugal na 52ª Bienal de Veneza, Junho 2007. Fotografia: Sofia Ponte

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SOBRE UM ESTADO DE TRANSIÇÃO



SOFIA PONTE

2007-08-02




Depois de ter visitado o pavilhão de Portugal na 52ª Bienal de Veneza (1), inaugurado a 8 de Junho de 2007, que este ano se apresenta com a exposição “Maison Tropicale” de Ângela Ferreira, juntamente com o interesse que me despertou o artigo “Portugal em Veneza e a Maison Tropicale em Trânsito” publicado na artecapital.net, interessou-me escrever algumas reflexões que sugerissem um olhar complementar sobre esta obra.

Um dos valores do projecto de Ângela Ferreira está em incorporar a casa de Jean Prouvé, arquitecto francês (1901-1984), que concebeu um protótipo de habitação em 1949 para a África colonial francesa, para se centrar no que está a acontecer hoje em algumas “Áfricas”. Como a própria artista refere na entrevista “Ângela Ferreira – Uma Lança em África”, conduzida por Vanessa Rato no suplemento Ípsilon do jornal Público de 8 de Junho de 2007, “[m]uitas [propostas de trabalho], ironicamente, passam por voltar a olhar para o colonialismo. É o meu ponto de vista, por isso muito dos meus trabalhos passam por matérias que vêm do momento colonial e depois seguem um percurso até à contemporaneidade”.

A exposição consiste numa peça escultórica de grandes dimensões em alumínio, madeira e ferro acompanhada por um conjunto de fotografias instaladas no interior da Fondaco Marcello. As dimensões da escultura definem um espaço transitável que remete naturalmente para um (demorado) estado de transição. Ângela Ferreira completa em conversa com Luciana Leiderfarb no artigo “Ângela Ferreira - Uma Memória Africana”, publicado no suplemento Actual do semanário Expresso de 9 de Junho de 2007 “esse objecto, a que eu prefiro chamar uma rendição escultórica da casa [de Prouvé], refere-se à casa dentro de um contentor, e a forma que ela assumiu quando estava em trânsito”. Por isso, a sua forma parece evocar uma espécie de contentor que não entregou o que devia ter entregue, deixando em aberto os caminhos por onde se transita do colonialismo para uma obra de arte, de casa para artefacto, de África para o mundo ocidental.

A artista avança com outro elemento interpretativo da contemporaneidade, da qual fazem parte as fotografias actuais dos terrenos onde os três protótipos de Prouvé estiveram instalados, nas cidades de Niamey em Níger e em Brazzaville na República do Congo. As fotografias mostram o que está e o que não está lá, e isto faz-me pensar... mais. Acede-se às fotografias, depois de se passar pela escultura alongada e cravada estrategicamente na parede que diferencia o espaço de acolhimento do espaço expositivo, ao ritmo de uma ideia de ausência que gradualmente reconhecemos no pavilhão. Esta concretização da artista, é aquilo que o espectador pode complementar mas não substituir ou sequer mudar-lhe a natureza.

O projecto, que pode ser aprofundado através do catálogo, das entrevistas dadas pela artista e pelo curador Jürgen Bock em vários suportes de comunicação, leva-me também a questionar o que “é ser pós ou neo-colonial, na pós-modernidade africana?”, como vem referido no artigo da artecapital.net. Mas tendo tido apenas acesso à casa-objecto de Prouvé restaurada enquanto imagem fotográfica, tenho assim consciência de que me fica a escapar todo o leque de revelações sobre o fenómeno colonial que o skyline de Mid-Manhattan pode proporcionar, e que talvez ajudariam a explicar a “ilusão” que tem por nome ONU? O G8? Ou a ambígua criação de um pavilhão Africano pela primeira vez na Bienal de Veneza? Isto para mencionar apenas algumas das questões que estes conceitos parecem carregar e sobre os quais se pode reflectir.

Se substituirmos a palavra neo-colonial por contemporaneidade, como Ângela Ferreira o faz, podemos falar de coisas que ajudam a perceber... melhor o que se passa em África: Quem se não um francês, o coleccionador de antiguidades Éric Touchaleaume, poderia ter adquirido este “símbolo” da malaise pós-colonialista no continente Africano, tê-lo transportado para lugar incerto, recuperado-o, e finalmente colocado-o a leilão na prestigiada Christie’s de e em Nova Iorque?

A casa de Prouvé, elemento gerador da obra de Ferreira, nunca foi uma obra de arte. Embora seja hoje reclamada como uma antiguidade de design modernista e vendida em prestigiados leilões, a casa foi criada com uma função clara no âmbito de uma utopia económica e social de determinada época.

Dos três protótipos de Prouvé, um foi leiloado e adquirido no passado dia 5 Junho pelo hoteleiro norte-americano André Balazs, e supõe-se que o seu destino venha a ser uma ilha, outro foi doado por Robert Edward Rubin, um banqueiro democrata norte-americano ao Centro Georges Pompidou, e o terceiro tem ainda um destino itinerante incerto. É oportuno discutir a casualidade da reanimação da casa-objecto de Prouvé em paralelo com a apresentação do projecto na bienal, porque são inseparáveis, mas é importante que o insólito deslocamento da casa modernista não se sobreponha às intenções da obra de arte.

O modernismo parece-me assim merecer uma contextualização porque hoje pode querer dizer muitas coisas, como aliás a 12ª edição da Documenta - a decorrer na cidade de Kassel na Alemanha, e este ano em simultâneo com a Bienal de Veneza – também sugere. Quando experimento a obra de Ângela Ferreira, através de todos os elementos (visuais e não visuais), parece-me que esta reage mais do que referencia uma ideia de modernismo, como a própria o refere no artigo da Actual, “o modo como eu vivia [em Moçambique] era colonial (...).” Tal como Prouvé, quando concebeu o que agora se considera um exemplo da arquitectura modernista, estava essencialmente a viver a sua época. As questões que Ângela Ferreira tem vindo a colocar (sobretudo à arquitectura) ao longo do seu percurso definem hoje uma historia própria sobre a qual podemos reflectir e escrever exaustivamente.

É essa a nota que gostaria aqui de deixar: informar uma comunidade, que está à partida altamente motivada para conhecer mais sobre uma obra de arte, partilhar a experiência artística que se retirou dela, não é simples e não deve ser simplificado.

Para terminar, foi anunciado por Jean-François Chougnet, director do Museu Berardo, numa recente entrevista à artecapital.net, que iremos ter oportunidade de ver uma versão desta exposição em Lisboa: excelente motivo para continuar a pensar sobre a condição contemporânea, situando-a para além do fascínio que o ocidente tem pelas suas próprias utopias onde quer que elas se situem.


Sofia Ponte
Mestranda do Programa de Artes Visuais (SMVisS) do Massachusetts Institute of Technology



NOTA
(1) A participação portuguesa na Bienal de Veneza é da organização do extinto Instituto das Artes agora Direcção Geral das Artes/Ministério da Cultura. Para mais informações consultar www.iartes.pt/veneza2007/index.htm