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“NÃO TOCAR”: O NOVO MUSEU DO DESIGN EM LONDRES
DUARTE LOBO ANTUNES
A 6 de Novembro de 1962 os residentes do abastado bairro de Kensigton puderam finalmente inspeccionar a tenda em cobre vagamente parabolóide, forrada por uma fachada-cortina num vidro azul-leitoso - que hoje alberga o novo Design Museum - quando ainda flutuavam 17 bandeiras de diferentes países na praceta de entrada e um letreiro anunciava o “Commonwealth Institute”.
Dez anos antes o Festival of Britain - um evento internacional de enorme escala que transformara por completo a margem sul do Tamisa - havia estreado um programa expositivo que aproximava forma, conteúdo e projecto político, ambicionando mostrar os territórios ingleses não como lugares exóticos e subjugados à coroa mas como uma comunidade de iguais. Este princípio aplicou-se no museu do Commonwealth Institute através da arquitectura de Robert Matthew Johnson-Marshall & Partners, mas principalmente de James Gardner que concebeu a exposição não como uma sequencia hierárquica de salas, mas como um grande átrio onde se poderia aceder directa e individualmente aos espaços dedicados a cada país.
Infelizmente nem a exuberância da forma, nem o voluntarismo do conteúdo, nem as vinte e cinco toneladas de cobre oferecidas pela Zâmbia resistiram à maldição de todas as obras-primas: o tecto pingava.
Em 1982 estimava-se que fossem precisas £312,000 para reparações. Em 1988 já eram £700,000 só para manter a estrutura intacta, com a conta para modernizações básicas a subir aos £5M.
Com os custos para obras a duplicar a cada poucos anos - mas agora com o constrangimento extra de estatuto protegido a dificultar qualquer proposta ou alteração de uso – e com a popularidade a decair, em 2003 o museu foi desmantelado, as peças recambiadas para os seus países de origem e os dioramas poeirentos guardados numa qualquer cave institucional. Em 2007 é vendido a um investidor privado para ser rentabilizado, transformado em lojas e apartamentos de luxo. Acontece que as autoridades locais tinham outros planos e como contrapartida pela autorização para construir três novos blocos residenciais exigiram que fosse dado ao antigo museu um uso cívico.
É aqui que entra Deyan Sudjic em busca de uma nova casa para o seu Design Museum desde que fora despejado do pequeno edifício em Shad Thames (destinado agora a ser o arquivo da arquitecta Zaha Hadid) e a dupla OMA e John Pawson autores do projecto que abriu ao público em Novembro passado.
Quem segue a obra destes dois arquitectos estranhará que Pawson tenha ficado com o museu e Koolhas com os apartamentos e não o contrário. De facto o antigo Commonwealth Institute – uma collage de elementos contrastantes – passava bem por um dos primeiros projectos do escritório holandês ao lado do Kunstahal Rotterdam ou da Casa em Bordéus, enquanto o inglês fez carreira como um ultra-esteta e último resistente do minimalismo em exclusivo (o seu diário online tem entradas com títulos como “em busca do branco”) mais adequado a villas nas ilhas gregas e mosteiros na República Checa.
Os três edifícios residenciais, que variam entre os sete e os nove pisos, rodados 45 graus e ocupando uma primeira faixa entre a rua e o Holland Park não seguem o alinhamento da frente construída na Kensigton High Street o que os transforma numa espécie de back-up singers do museu. Na medida do possível para edifícios com conteúdos tão diferentes, Koolhas, que também foi responsável pela recuperação do exterior do edifício original, parece querer por os dois programas a falar um com o outro (a fachada reticulada dos apartamentos segue a verticalidade e a proporção da fachada do museu, a entrada para o museu faz-se atravessando um dos blocos residenciais onde no rés-do-chão está uma das suas lojas) alavancando ao máximo as circunstâncias algo exóticas do negócio de aquisição do terreno, mas também tornando-as omnipresentes. A estratégia é interessante mas inevitavelmente oprime o pequeno museu: não se consegue evitar a sensação de que se vai encontrar ao virar da esquina um letreiro a dizer “propriedade privada” e suponho que os residentes não apreciem especialmente as hordas de visitantes a tirar-lhes as medidas à sala de jantar. Em relação ao exterior do museu pouco mais há dizer, apenas acrescentar que a actualização do envidraçado, ainda que parecido com o original, lhe retirou alguma subtileza: as caixilharias são mais pesadas e a nova cor é um azul mais primário.
A primeira reacção quando finalmente se entra no Design Museum é de que este é um edifício que se compreende imediatamente: não há antecâmaras, nem percursos, nem várias alas para percorrer. Está-se no centro do edifico, num vazio que como um zigurate invertido revela a geometria da cobertura e cria diversos patamares a partir de onde se acede a cada um dos espaços do museu e que, como um bom foyer, faz do movimento das pessoas um evento em si mesmo. Esta clareza é aliás herdade do museu original e fazia parte do caderno de encargos exigido pela autoridade para o património. Em geral Pawson usa poucos materiais e este projecto é dominado pelo chão e pelos painéis em carvalho claro que forram a maioria das paredes. Mas o uso deste material não é suficientemente obsessivo para que se possa dizer que se instalou uma estrutura de madeira em contraste com o betão original, e acaba por ter um efeito mais decorativo que conceptual. No resto Pawson é mestre; mesmo trabalhando com um orçamento abaixo do que está habituado consegue que para onde quer que se olhe os encontros estejam detalhados na perfeição. Há ângulos onde a cobertura parece que encaixa no átrio e que de alguma forma o completa, e quem olha do patamar superior consegue encontrar outros momentos fotogénicos, mas ainda assim fica a impressão que o edifício existente pedia um projecto menos manso, que desafiasse o original em vez de o domesticar. Pawson respondeu à letra em vez de interpretar o espírito que Gardner havia tentado dar ao interior como uma espécie de panopticon museológico.
A questão não era tanto a de responder de forma competente ao brief, mas a de pensar “o que é um museu do design?”, trabalho a que Koolhas provavelmente se atiraria com mais alegria. A exposição da colecção permanente - que ao contrário do antigo Design Museum é gratuita e que ocupa parte do último andar - insiste na vitrinização absurda de objectos que muitos dos visitantes têm nas suas casas (quem quer olhar para um MacBook Pro do ano passado com o ecrã apagado) e que os transforma em ingénuos objet trouvé.
Ainda que os curadores tenham a tentação de pensar que são capazes de transformar qualquer espaço, a arquitectura de um museu sugere a maneira como o seu conteúdo vai ser exposto (exemplo óbvio é a sala das turbinas do Tate Modern, exportada como modelo pelo mundo fora, raramente bem, ou o Palais de Tokyo em Paris, onde as superfícies são deixadas por acabar dando a impressão que tudo é possível) e um espaço tão higiénico não convida a que se repense a forma como se interage com coisas que pedem manipulação. Nada neste espaço convida a que nos comportemos de um modo diferente ao que seria esperado no lobby de um hotel de negócios, com a diferença de que aí nos poderiamos sentar nas cadeiras...
A receita não deve ser fácil, já que ao fim de mais de cem anos de museus dedicados a objectos industriais e artes decorativas ainda não foi completada com sucesso, mas certamente um bom primeiro passo será vermo-nos livres dos autocolantes a dizer “não tocar”.
Duarte Lobo Antunes
Duarte Lobo Antunes licenciou-se em arquitectura na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto e tem um mestrado em História da Arquitectura pela Bartlett School of Architecture, UCL. Entre 2007 e 2013 colaborou com o atelier suiço Herzog & de Meuron; actualmente trabalha entre Londres e Lisboa. Colabora ocasionalmente com publicações internacionais como a Architectural Review.