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ARQUITETURA E DESIGN




Habitar: um manifesto secreto, ou, ver através da janela fenomenológica © Madalena Folgado


Not my kind of paradise, 2021 (fotograma) © Rafael dos Santos


Not my kind of paradise, 2021 (fotograma) © Rafael dos Santos


Not my kind of paradise, 2021 (fotograma) © Rafael dos Santos


Not my kind of paradise, 2021 (fotograma) © Rafael dos Santos


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Not my kind of paradise, 2021 (fotograma) © Rafael dos Santos


Not my kind of paradise, 2021 (fotograma) © Rafael dos Santos


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HABITAR: UM MANIFESTO SECRETO

MADALENA FOLGADO


 

[1]

 

No hay alivio más grande que comenzar a ser lo que es.

 

Alejandro Jodorowsky

 

 

Num curto espaço de tempo, dois amigos não-arquitetos, e que não se conhecem, compram A arquitectura é um gesto. Variações sobre um motivo wittgensteiniano [2], um texto escrito por Maria Filomena Molder. Como o próprio título indica, em torno do “trabalho” do filósofo Ludwig Wittgenstein, o mesmo que o implicou em tornar-se tarefa de si próprio, labor que descobriu em comum com o do arquiteto, e que fora documentado nas suas Investigações Filosóficas — Em ambos os casos, tanto na filosofia como na arquitetura, segundo Wittgenstein, a atenção deve incidir “Sobre o seu próprio modo de ver. Sobre o modo como vemos as coisas. (E o que esperamos delas).” [3] 

A propósito de tal tarefa, logo no início do texto, a autora refere a advertência por parte do filósofo no sentido de não sucumbir ao perigo da introspecção enquanto fábrica de imagens ilusórias do interior, e segundo palavras do mesmo, um bom arquiteto “não sucumbe a qualquer tentação”. Com o rigor com que nos habituou, Maria Filomena Molder esclarece-nos do sentido da palavra tentação, parte de uma tradição religiosa e ética específicas, assim como salvaguarda a intimidade desenvolvida pelo filósofo com a palavra. “Por consequência, podemos admitir que as tentações serão atracções que impedem ‘um trabalho sobre si próprio’, decisões que não deixam ver claramente as nossas expectativas de vida, que obscurecem os caminhos do nosso percurso compreensivo”. [4]

A autora fala-nos também da “coragem [temperada por cordis, i.e., autentativo de cor, coração em latim] para não se enganar a si próprio”, quando empreendida enquanto possibilidade de cura; i.e., “clarificação, o esforço de limpeza que ele toma como o alvo filosófico por excelência, sob a forma de uma tensão terapêutica”; sem coragem, como se pode ler numa nota de rodapé, “a clarificação […] torna-se um simples jogo de inteligência” [5] Retenho a palavra alvo, e penso em pecado harmartia em grego, que significa falhar o alvo. E, então, o arquiteto torna-se arqueiro com o dom da precisão que precisamos; talvez as suas setas sejam tão velozes que resistam ao desvio gerado pela velocidade das leis abstratas do mercado imobiliário e atinjam a indiferença dos que as aprovam, eleitos por todos nós, ainda que tantas vezes sob efeito de ricochete. Em Lisboa — como em outras grandes cidades — queremos ser atingidos, sem por vezes saber, mas seguramente não pelas trajetórias cegas dos ricochetes das setas perdidas lançadas pela pressão imobiliária. 

A arquitectura é um gesto. Variações sobre um motivo wittgensteiniano, é-me oferecido por um dos dois amigos que referi inicialmente. Ambos vivem em Lisboa, e o texto chega-me num momento de particular exílio. São amigos não-arquitetos, mas arqueiros, pelo que lhes concederia o título de ‘arq.’ antes do nome, à revelia da Ordem dos Arquitetos, que por instauração de processo — e certo que haveria quem se apressasse a fazê-lo — logo os acusaria de usurpação de título. Discorro no plano simbólico, porque o ataque é feito primeiramente ao tecido simbólico da cidade; entretecido por relações vitais, miríades de pequenos gestos encantatórios, que habitam agora nas casas de penhores que tomaram a cidade — porque o turismo e os turistas, vieram, literalmente, para ficar…Quase tudo se entaipou com o véu da superficialidade, que como se sabe, favorece o deslizamento, e por conseguinte, a rapidez das ações obscuras em pleno dia.  

O encontro de Wittgenstein com a arquitetura, enquanto uma prática, dá-se através da concepção e acompanhamento da casa da sua irmã Gretl, em Viena, em parceria com o seu amigo e arquiteto Paul Engelmann, em 1926. [6] É, tantas vezes, através do amador que vemos ser criadas as mais belas leis do coração. Muito naturalmente, não se pensa aqui o trabalho do arquiteto de modo redutor; a do arquitecto que espera o cliente bater-lhe à porta para lhe encomendar uma casa; ou, o arquiteto que só faz desenhos de casas; ou, ainda, o da ‘arquitectura’ de excepção. Como também, em caso algum, se incompatibiliza o amador com o profissional da arquitetura por estatuto legal. Antes, procura-se não perder de vista — e do coração — o silencioso entretecer do tecido simbólico da cidade, pela rememoração do primeiro habitar. Escute-se: re-me-morar

A casa projetada por Wittgenstein é famosa entre arquitetos e artistas contemporâneos. É incontornável nos currícula do ensino da arquitetura nas universidades, porém, não é nela que Maria Filomena Molder se de-mora. O pequeno livro azul-escuro, termina, generosamente, com “A [sua] primeira casa”. Há na formulação discursiva da autora algo que a transcende, e porque profundamente acolhedor, fixa-nos no plano simbólico da nossa primeira casa. Como se as suas palavras escritas — contudo não o que significam — dilatassem o tempo e emitissem o som do crepitar encantatório da lareira da minha primeira casa, a imagem do fogo original; e, nesse retorno do exílio, a “Deflagração do Ser” [7] — Eis o manifesto secreto. Em quem mais se manifesta? E, o que pode ser percebido como manifestação exterior? Recordo um aforismo que me tem vindo a guiar já há alguns anos: “Quanto mais formos, mais se É”. [8] Maria Filomena Molder, por sua vez, escolheu este outro aforismo para epígrafe do seu texto: “Não há nada de essencial no interior que não seja apercebido ao mesmo tempo no exterior”. [9] — Entretanto, apercebo-me da chegada do Rafael, autor do vídeo Not my kind of paradise, ao meu (com)texto. Mas já lá vamos; de-more-mo-nos, de tal modo, que a velocidade da luz que nos atravessa, aparente a nossa total imobilidade. Talvez assim, possamos vencer a pressão do mercado imobiliário.

Já aqui mencionamos a palavra cura. Rafael (dos Santos) é esse arauto da cura — no plano simbólico, Arcanjo do essencial no interior apercebido ao mesmo tempo no exterior. Partilhamos um certo fascínio pelo Alejandro Jodorowsky, que em tempos disse: “só é arte o que cura”. [10] Conheci-o, precisamente, na exposição Syncronicity, que teve lugar na Plataforma Revólver, onde (se) expôs, com curadoria de Pedro Cabral Santo. Uma conversa inacabada em Março de 2022, foi retomada agora em Dezembro do mesmo ano. Generosamente, partilha o vídeo Not my kind of paradise — e as suas inquietações. Preciso das suas imagens para o meu processo de montagem e edição do tempo, peço-lhe autorização para publicar, junto com este texto, alguns stillsÉ, que re-conheci neles essa outra velocidade, percebem-na?

Maria Filomena Molder refere a proximidade de Wittgenstein a Santo Agostinho, que tanto nos elucidou quanto ao tempo. Lembrar-nos-emos, e citando-o de modo livre, as seguintes palavras do Santo e doutor da Igreja: ‘O que é o tempo? Se não mo perguntarem eu sei, assim que quero explicar a quem mo pergunta deixo de saber’. Numa ardósia, como Santo Agostinho, erraticamente, o Rafael responde —Tudo isto ocorre, apenas, na minha montagem e edição do tempo, claro está. Do seu texto, fixo para o presente (com)texto, as palavras exílio, e arma secreta — penso numa arma secreta para habitar, e que não falha o alvo. O anjo escreve de modo não-linear, o que o leva à total rasura; à mancha, i.e., à mácula. Mas é de um Atlas Maculado, para cairmos em Si Mesmo(s), que precisamos:

 

Por um lado, pode-se saber uma coisa e não ser capaz de a dizer, como é o caso, por exemplo, o modo de soar do clarinete […] Wittgenstein aprendeu a tocar clarinete já adulto. Por outro lado, há um tesouro inesgotável em tudo o que sabemos se ninguém nos perguntar (o que Santo Agostinho pôs em evidência pela primeira vez na história do pensamento ocidental, no que respeita ao tempo […]. [11]

 

Do mesmo modo, simultaneamente, abro o livro da Maria Filomena Molder como um atlas e como um oráculo, no sentido de um 'conhece-te a ti mesmo’, a máxima do portal do Oráculo de Delfos. Na capa, uma fotografia de Jorge Molder: Uma escada contida por uma parede, desdobrada por um claro-escuro, capturada de baixo para cima, da maior luz para a total escuridão. O leitor esclarecido, e portanto silencioso subscritor do que aqui se manifesta, há muito que percebeu que esta não é uma recensão crítica do texto. É

O “É” deflagrado pelo Rafael é — para mim — um E com acento agudo celestial. Pela homofonia, é também assento na interceção de planos da cobertura da casa, lugar de Poder. E que melhor lugar, se não o da interceção de planos para o cineasta do Real?

 

Para ele [Wittgenstein] a riqueza está aqui, na proximidade, à nossa mão, diante de nós, não é preciso descer à mina para encontrar gemas desconhecidas. E como captá-la? Através de um olhar atento, incansável, um olhar que se esforça por reconhecer nas coisas o seu gesto próprio, a fim de lhe fazer justiça. Eis o mais difícil: ver o que está diante dos nossos olhos. [12] 

 

As gemas não desconhecidas mas conhecidas, são a atenção multifacetada, que vive exilada nas tais casas de penhores. O trabalho de edição e montagem do tempo, pressupõe esse encontro com o tempo vertical; ontológico. O Rafael transforma, pela montagem de planos, o movimento helicoidal do enrolar de uma bobine, numa escada de tiro (ao alvo) de/para o arq.(tecto) — re-conhece-lhe o gesto. De repente, estou no terraço da minha primeira casa, a olhar para o fumo, que como música, é exalado misteriosamente pela chaminé, junta-se às nuvens e desaparece no vasto céu — refiro-me à chaminé da tal lareira e fogo que crepita palavras que já sei o que são se não me perguntarem. Recordo a escada fixa à parede desse terraço, uma faixa de filme para o derradeiro tecto da minha primeira casa, que apenas subi, não para me instalar, mas para espreitar. Acredito estar com o Rafael, também, num jogo. Os ‘jogos de linguagem’, são, segundo Maria Filomena Molder, caros ao filósofo-arquiteto: 

 

Por consequência a significação de uma palavra é inseparável dos jogos de linguagem, onde ela se inscreve e que ela exprime, quer dizer, o acto da linguagem é sempre uma cena dramática imprevisível. Imprevisível significa que “o jogo de linguagem não é razoável (nem irrazoável). Ele existe — como a nossa vida”. [13]

 

Mas se não é preciso descer à mina, como é que se desce, pelo menos, uma escada? E/ou quem nos ensina a cair? Recordo um pequeno texto do arquiteto Alberto Campo Baeza para crianças intitulado “subir e descer escadas”; e, um outro, de Yvette Centeno a propósito do mais antigo sonho do poeta António Ramos Rosa. 

No primeiro texto, o arquiteto diz-nos que “A arquitetura é como subir e descer escadas”, conta-nos que nunca deixou de subir escadas de dois em dois degraus. Mas adverte-nos para o perigo e baixa probabilidade de algum de nós as descer igualmente de dois em dois degraus. Para ele, pode-se “trabalhando e estudando muito fazer o curso de arquitetura nos 5 anos previstos” — como quem sobe avidamente escadas. Porém, salvaguarda que o tempo de projetar e construir deve ser lento, e deve acarretar muita cautela, como descer escadas, ou ainda, ser administrado à “velocidade, com que o mel derrama pela borda do frasco”, no dobro do tempo da subida. [15] Então e quem sobe as escadas em ralenti? — Ou quem, como no meu caso, precisou de fazer o curso no dobro do tempo, para contemplar outras velocidades e/ou sobre-viver?

Reprimimos a possibilidade de queda, e com ela o seu Milagre. Em Meritocracia, nunca queremos saber do anjo caído, se não para demonizá-lo. Num sonho de adolescência, António Ramos Rosa recorda-se de se querer suicidar, porém — e esta seria a mensagem do sonho — “Não há abismos”. Como tal, não há possibilidade de queda, morte…e renascimento. “É necessário o abismo, para que se atinja através dele o centro”. [16] Habitar implica-nos nessa centralidade, mas rodeados estamos de uma superficialidade rasa, deslizante, veloz…E, assim, se vai adiando a tomada do lugar central, essa forma de protagonismo indesejado. A voz do diabo, repete-se, de modo ressonante, pois o lugar central está vazio: “Não é hoje, é amanhã” — como ouvi Maria Filomena Molder referir em tempos, numa conferência, a propósito de certos adiamentos. A arquitectura é um gesto. Variações sobre um motivo wittgensteiniano abre com o seguinte subtítulo: “Tornar-se aquilo que se é” [17]. Este é o derradeiro alívio fulgurante — releia-se Jorodorowsky em epígrafe. E, o glorioso “É” sem predicação do arcanjo da cura Rafael. 

Maria Filomena Molder, termina o pequeno livro reconstituindo as ruínas da “única casa de Wittgenstein (e que nunca foi sua habitação permanente)”. Mostra-nos imagens — desenhos técnicos e uma fotografia — da sua casa sobre o fiorde de Sjkolden na Noruega —  [18] sobre um abismo, portanto, e nele a desejada profundidade, por-ventura, a olhá-lo de volta, no dizer Nietzsche. Aqui a autora tráz-nos a seguinte imagem-citação de Wittgenstein: “Cheguei ao fundo das minhas convicções. E destas fundações poderíamos quase dizer que elas são sustentadas pela casa inteira”. [19] A filósofa faz-nos reparar na ‘inversão’ ‘poderosa e modesta’ “da imagem das fundações, “uma das imagens mais poderosas da história da filosofia ocidental, que é também, como se percebe, cara ao arquiteto. 

E nós, que Paraíso é esse que teimamos em não desmoronar? 

  

 

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Notas:

[1] O título do presente texto surgiu de um equívoco; por-ventura, um ato falho. Ao ler pela primeira vez uma nota de Maria Filomena Molder, onde a autora nos faz saber de uma segunda versão do seu texto A arquitectura é um gesto. Variações sobre um motivo wittgensteiniano publicada com o título Habiter: un secret manifeste; equivocadamente, e no imediato, traduzi por Habitar: um manifesto secreto, ao invés de, Habitar: um segredo manifesto. Uma vez tornado consciente o erro, decidi permitir que o acontecer do texto esclarecesse a origem do equívoco, por me ter dado a ver, e lembrando uma expressão da escritora Agustina Bessa-Luís, uma “cisma do coração”. 

[2] Ludwig Wittgenstein citado por Maria Filomena Molder, in Maria Filomena Molder, A arquitectura é um gesto. Variações sobre um motivo wittgensteiniano, s.l., Sr Teste, 2021, p. 7. 

[3] Idem. 

[4] Op. cit. Maria Filomena Molder, 2021, p. 7, 8. 

[5] Ibid, p. 9. 

[6] Ibid, p. 9,10. 

[7] Expressão encontrada por Maurice Merleau-Ponty, a propósito da profundidade da pintura de Cézanne, in Maurice Merleau-Ponty, O olho e o espírito, Lisboa, Vega, 1997, p. 54. 

[8] Aforismo da Professora Catedrática na Faculdade de Arquitetura de Lisboa, Maria João Madeira Rodrigues, transmitido oralmente por um seu aluno do curso de doutoramento e meu colega de grupo de investigação, João Castela Cravo. 

[9] Hugo von Hofmannsthal citado por Maria Filomena Molder, op. cit. Maria Filomena Molder, 2021, p. 5.

[10] Alejandro Jodorowsky citado por Gonçalo M. Tavares in Gonçalo M. Tavares, Realidade e rinoceronte, in Expresso, 2020, p.14.

[11] Op. cit. Maria Filomena Molder, 2021, p. 34. 

[12] Ibid, p. 27. 

[13] Ibid, p. 14,15. 

[14] Alberto Campo Baeza, “Subir e descer escadas”, in Quero ser arquitecto, Madrid, Ed. Campo Baeza, 2014, acedido a 22 de Dezembro de 2022. 

[15] Ibid.

[16]  Yvette Centeno, “António Ramos Rosa: A maturação do centro” in Yvette Centeno, 5 Aproximações: Peter Weiss, A. Ramos Rosa, Alquimia e Misticismo, Fernando Pessoa, Hermann Hesse, Lisboa, Ática, 1976, p. 41.

[17] Op. cit. Maria Filomena Molder, 2021, p. 7.

[18] Ibid, p. 32, 33.

[19] Ibid, p. 35.

 

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Madalena Folgado

É mestre em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Artes da Universidade Lusíada de Lisboa e investigadora do Centro de Investigação em Território, Arquitetura e Design; e do Laboratório de Investigação em Design e Artes, entre outras coisas.