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JOANA VASCONCELOS X NUNO GAMA
HELENA OSÓRIO
11/12/2025
“Somos uma combinação poderosa e intensa, marcada pela atração magnética e pelo desejo de segurança e lealdade mútua, mas também por desafios”
Num tributo a Joana Vasconcelos, Nuno Gama apresentou surpreendentemente, no final de outubro, a sua nova coleção de outono-inverno 2025 no atelier junto ao Tejo da artista portuguesa natural de Paris que, a partir de 2023, depois de se estrear na Paris Fashion Week com pompa e circunstância, levou a ‘Miss Dior Valkyrie’ em viagem pelo mundo estreando a sua arte imponente na passerelle da maison de alta costura fundada em 1946 e nas emblemáticas flagships. Como um primeiro passo na moda.
Os bordados, inspirados nos painéis do ‘Bolo de Noiva’ exclusivamente em cerâmica, e a renda, que evoca as esculturas veladas da artista, conferem às peças um caráter fantasioso, sensual e onírico, incluindo um novo estampado que “dialoga com elementos que já fazem parte do meu repertório, que inclui sim o projeto que fiz com a Dior, com a Miss Dior Valkyrie que foi o destaque do desfile da maison”, confessa-nos a artista.
Segundo um comunicado da marca homónima Nuno Gama, esta coleção que pisou a passerelle improvisada no espaço lisboeta onde se reflete e faz desabrochar arte, reinterpreta o dandismo contemporâneo através de novas proporções e de um diálogo com a obra de Joana Vasconcelos. Os casacos encurtam-se, as calças ganham volume e as cores contrastam ou harmonizam-se, destacando a personalidade de cada peça.
Note-se que logo após este desfile, no limiar de novembro, Joana Vasconcelos inaugurou na Piazza Mignanelli, em Roma, em frente ao PM23 – o espaço de exposições inaugurado em 2025 pela Fondazione Valentino Garavani e Giancarlo Giammetti (FVGGG) – o primeiro capítulo de 'Vénus: I'll Be Your Mirror', uma máscara espelhada de grande envergadura composta por 255 molduras barrocas de bronze e 510 espelhos sobrepostos, convidando os espectadores a refletir sobre a identidade individual e coletiva, diz o comunicado da FVGGG.
“A obra de arte na Piazza Mignanelli marca o início de uma jornada artística por toda a cidade que, nas próximas semanas, se desdobrará em diversos locais de Roma – um processo de regeneração urbana viabilizado sob o Patrocínio da Roma Capitale e em colaboração com o Município I de Roma.”
O emaranhar de todos estes têxteis, objetos simbólicos e formas titânicas, bem como da evocação de momentos da História da Arte onde a História da Moda se cruza numa obra artística singular, leva as grandes casas da moda e do luxo a criarem parcerias exclusivas com Joana Vasconcelos, num espaço sem fronteiras.
Esta foi assim a homenagem que Nuno Gama debutou em Portugal, a uma artista arquiteta de formação ainda pouco entendida no seu país de sangue. Não obstante ter recebido mais de 30 prémios, e tendo sido agraciada em 2009 com o grau de Comendadora da Ordem do Infante D. Henrique pela Presidência da República Portuguesa, tornando-se em 2022 Oficial da Ordem das Artes e Letras pelo Ministério da Cultura Francês e criando, em 2012, a Fundação Joana Vasconcelos para conceder bolsas de estudo, apoiar causas sociais e promover a arte para todos. Também Nuno Gama foi agraciado diversas vezes, inclusive com a Comenda da Ordem do Infante D. Henrique em 2015.
A artista Joana Vasconcelos das esculturas e instalações gigantescas que fazem parar e pensar, e o couturier multidisciplinar Nuno Gama, que revive o mundo português no seu trabalho, e no cerne, unidos na obra artística pela elevação do artesanato Made in Portugal e pelo amor às origens, falam-nos desta parceria em primeira mão, mormente de outros projetos abordados anteriormente.
Por Helena Osório
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Nuno Gama e Joana Vasconcelos. © Matheus Koelho
Helena Osório: Como despertou a inspiração na obra de Joana Vasconcelos e como aconteceu o desfile de Nuno Gama no atelier da artista?
Nuno Gama: A Joana deu uma festa no seu Atelier, na última ARCO. Ao mostrar o espaço a uma pessoa amiga, de repente tive uma visão de um homem a atravessar todo o espaço, tipo um Dervixe rodopiante, com uma saia gota/valquírias, vestida. Ao mesmo tempo que tinha uma antevisão da coleção.
Joana Vasconcelos: Esta proposta partiu do Nuno, contou-me que teve uma visão. Achei uma ótima oportunidade, a de permitir que o meu espaço e a minha obra fossem palco e combustível para este momento. Quando aceitei abrir o Atelier, foi com o espírito de partilha: de potenciar uma conversa entre ambas as expressões artísticas.

© Ricardo Marques
HO: Já privaram, ou foi amor à primeira vista?
NG: Claro que sim, ambos, somos uma combinação poderosa e intensa, marcada pela atração magnética e pelo desejo de segurança e lealdade mútua, mas também por desafios – aceite pela Joana tanto pela “invasão” do seu espaço, pela abertura ao meu olhar como pelo meu regresso ao Universo feminino.
HO: A introdução de womenswear no desfile passa também pela homenagem a Joana Vasconcelos?
NG: Sim, fazia sentido pela Joana como por toda a conjetura e pela pressão feminina no desejo de anos, de voltar a fazer senhora.
JV: Vejo a proposta do Nuno como uma homenagem e como uma resposta. Penso que seria impossível dialogar com o meu trabalho sem pensar no feminino.
HO: Ambos ligados ao artesanato português que transportam ora para obras de arte ora para arte vestível, esta união parece existir muito para além do que aconteceu na passerelle. A ideia foi também estabelecer este paralelo?
NG: Considero que o paralelismo seja uma realidade inspiracional de ambos daí coincidirmos nesse ponto. Não faria sentido para mim se assim não fosse.
JV: A nossa convergência vem daí: eu trabalho com técnicas e materiais que evocam ofícios tradicionais; o Nuno transformou esses códigos em peças de vestir. É uma mesma conversa, traduzida por linguagens diferentes.
HO: É este o amor que os une e que Nuno Gama homenageia num imenso elogio?
NG: O que me une é o respeito, a admiração e o carinho mútuo que conquistámos.
JV: Sim, como diz o Nuno, o que nos une é principalmente o respeito, a admiração, mas também uma grande cumplicidade criativa e a vontade de celebrar a obra de cada um.
HO: Desde os bordados, inspirados nos painéis do 'Bolo de Noiva', à relevância da renda, presente em tantas esculturas. Unir a moda à arte não reserva também o gesto de elevar trabalhos de alguma forma paralelos que saem de um cérebro criativo, mas não vivem sem o savoir-faire de tantos desconhecidos por detrás da obra, no caso artesãos?
NG: Essa é a riqueza de cada uma das peças.
Cada trabalho, é tocado por cada um dos seus intervenientes impregnando a sua experiência energética, a sua herança da sabedoria da nossa cultura e consequentemente da raça humana.
HO: Podem contar-se em número os fazedores (de um lado e do outro) que contribuíram para esta bela homenagem?
NG: No nosso caso é incontável o número de intervenientes, pois começam nos fios, na tecelagem, no desenho, na tinturaria, no controlo de qualidade, na embalagem, no transporte e num sem fim de profissionais envolvidos até chegarem até nós.
E esta “longueza” aplica-se a cada um dos elementos necessários que compõem cada uma das peças.
JV: Não numericamente, no Atelier trabalham quase 60 pessoas, mais todos os intervenientes externos que nos ajudaram a materializar tudo isto o que, na prática, é incontável. É uma longa cadeia de mãos e saberes.
HO: Desta mesma renda aplicada nos 'dandies' de Nuno Gama, nasceu um estampado exclusivo prolongado aos jeans, com volumes e gomos inspirados nas Valquírias de Joana Vasconcelos que já correram o mundo com a Dior, desde a estreia no desfile da maison na Paris Fashion Week, em 2023. Tal como Joana Vasconcelos criou a 'Miss Dior Valkyrie', com 20 padrões diferentes de tecidos fornecidos pela Dior, Nuno Gama elogia e experimenta o ato desta criação no seu estampado único?
NG: Sim, claro que sim.
O interessante deste processo é o resultado do que a Joana inspira em mim.
JV: O estampado do Nuno dialoga com elementos que já fazem parte do meu repertório, que inclui sim o projeto que fiz com a Dior, com a Miss Dior Valkyrie que foi o destaque do desfile da maison. É muito interessante ver outras formas de o meu trabalho se desdobrar e inspirar outros universos criativos.
HO: As peças estruturadas e luminosas, que daí resultam, especialmente femininas, são também uma estreia na marca homónima Nuno Gama. Este foi o anúncio de desfiles mistos nas próximas coleções?
NG: Sim, sinto essa vontade em mim e gostaria muito de continuar com este processo de redescoberta, do hemisfério feminino.
HO: O womenswear vem complementar todo um percurso de 40 anos até aqui, que o identifica como designer de moda masculina, que abraça várias categorias. Sedimentou-se com este amor pela obra de Joana Vasconcelos, ou outro desafio?
NG: Sim, a Joana despoletou aquilo que se tornou uma necessidade em mim.
HO: Como interpreta Joana Vasconcelos esta coleção que, segundo Nuno Gama, "é uma carta de amor" à artista, mormente "uma celebração da sua ousadia, da sua beleza caótica, e da forma como transforma o comum em extraordinário"?
JV: Sinto que parte de um encontro estético genuíno, que celebra a ousadia, a transformação do quotidiano em extraordinário, e a energia que está presente no meu trabalho. Para mim, é sempre emocionante quando alguém pega numa imagem minha e a devolve reinventada.
HO: Mais recentemente, a 'Vénus: I'll Be Your Mirror' foi desvendada na Piazza Mignanelli, em Roma, junto à sede histórica da maison Valentino. É a moda nacional e internacional (no caso) que celebra a arte de Joana Vasconcelos, e/ou a obra da artista que sensibiliza e inspira a moda chegando aos mais altos patamares?
JV: Ambos, é recíproco. A apresentação de I’ll Be Your Mirror na Piazza Mignanelli, no coração histórico de Roma, é um exemplo muito claro disso. Este projeto integra-se numa iniciativa cultural da Fondazione Valentino Garavani e Giancarlo Giammetti, que pretende unir arte contemporânea, moda e comunidade, e é precisamente nesse cruzamento que o meu trabalho vive.
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I’ll Be Your Mirror, de Joana Vasconcelos, 2019. © Atelier Joana Vasconcelos
HO: Trata-se de uma máscara veneziana espelhada de grandes dimensões, composta por 255 molduras barrocas de bronze e 510 espelhos sobrepostos, que convida a uma reflexão. Esta monumentalidade e evocação de tempos áureos, idos, e nomeadas vezes descurados, serve também como chamada de atenção global ao património artístico nas suas mais variadas expressões e às máscaras contemporâneas (neste caso) que nos tentam dar imagens filtradas e não reais?
JV: Sim, absolutamente. Ao ser instalada no espaço público, assume-se como um convite à reflexão sobre identidade individual e coletiva, algo muito presente tanto na minha obra como nas intenções deste projeto em Roma.
É também um comentário sobre a forma como hoje nos observamos através de filtros, de imagens mediadas ou distorcidas. Os espelhos multiplicam-nos, devolvem-nos fragmentados, pedem que nos reconheçamos para além da superfície.
No contexto do projeto da Fundação, cuja missão é a de aproximar a arte das pessoas, regenerar a cidade e promover um sentido comum de beleza e pertença, a obra funciona como um gesto de interrupção: obriga a parar, a olhar, a confrontar aquilo que mostramos e aquilo que escondemos.

© Tiago Mulhmann
HO: A máscara também se repete nos coordenados da nova coleção de Nuno Gama. O sentido é semelhante, ou trata-se de mais um elogio à obra?
NG: Claro que sim a ambas, as máscaras retiram-nos o julgamento imediato e obrigando-nos a escutar com o coração.
HO: Este sentido de crítica à sociedade através da arte e de outras expressões artísticas como a moda, é eficaz? Podem revelar-nos algumas manifestações com bons resultados?
NG: Pessoalmente ainda não escrevi nenhum livro de filosofia, nem vendo nada mais do que simples peças de roupa, mas agrada-me a ideia de poder inspirar os outros, num sentido qualificativo da nossa passagem por esta vida.
Para mim o interessante é cada um fazer do seu caminho uma aprendizagem num sentido de melhor evolução.
JV: A arte e a moda não mudam o mundo sozinhas, mas têm uma enorme capacidade de despertar a consciência. Muitas vezes, basta uma peça provocar uma pergunta ou um reconhecimento para iniciar a transformação. Já vi obras minhas gerarem conversas sobre identidade, tradição, feminilidade ou valor dos ofícios — e é aí que a crítica social acontece. Se uma criação consegue fazer alguém olhar para o mundo de outra forma, mesmo que por instantes, então já foi eficaz.
HO: Qual a previsão sensorial para a arte num futuro próximo, para a moda e luxo, para a humanidade?
NG: A melhoria da vida de todos nós, através da poesia.
JV: Vejo o futuro com esperança, porque acredito profundamente no poder transformador da criatividade. A arte — tal como a moda — tem a capacidade de aproximar as pessoas, de criar comunidade, de dar visibilidade ao que muitas vezes passa despercebido: o trabalho humano, os ofícios, o tempo, a memória, a energia coletiva que existe por detrás de cada peça.
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Helena Osório
Nascida em Benguela, Angola, é jornalista cultural e escritora; Doutora em Estudos sobre a História da Arte e da Música pela Universidade de Santiago de Compostela, com nota máxima (Cum Laude) e com reconhecimento da Universidade do Porto; Mestre pós-graduada em Artes Decorativas pela Universidade Católica Portuguesa; Licenciada em Estudos Europeus pela Universidade Moderna de Lisboa; Investigadora colaboradora do Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (i2ADS / FBAUP).
































