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NORONHA DA COSTA
ALDA GALSTERER E VERóNICA DE MELLO
Enquanto estudante de arquitectura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa (1959-1968), Luís Noronha da Costa (Lisboa, 1942) expôs as suas primeiras colagens e têmperas vinílicas. O seu trabalho vanguardista foi recebido com inédita e imediata aclamação. Durante a década de 60, Noronha da Costa ganhou os principais prémios nacionais e representou Portugal nas embaixadas artísticas mais emblemáticas, como a Bienal de São Paulo (1969) e a Bienal de Veneza (1970).
Pesquisou os fenómenos da imagem e da percepção, que se afirmou numa primeira fase sobretudo com a construção de objectos imagéticos (1965-1969). Perseguiu a crítica de cinema, bem como seguiu e realizou também experiências visuais próprias nessa área.
O seu trabalho de pintura – a que se dedica em quase exclusividade a partir de 1969 – está muito ligado ao interesse filosófico na fenomenologia da percepção e na dimensão noética [1] da arte, testando, através de diferentes suportes, técnicas e materiais, o lugar das convenções históricas, dos modos de ver e da representação clássica na imagem ou “ecrã”.
Actualmente, Noronha da Costa vive em Lisboa e trabalha no Estoril.
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Recebe-nos num espaço que lhe diz muito [estamos no atelier do artista no Estoril]. Esta relação com o atelier e com esta casa-atelier – como tem sido ao longo da sua vida de trabalho? Está relacionado com a obra que produz?
O meu trabalho passou por sítios completamente diferentes, primeiro, comecei por ter atelier com o Eduardo Nery em Campo de Ourique (a ex-mulher dele, a Ana Vieira foi uma grande amiga minha), mas isso foi há muito tempo. Ainda nos anos 70 comecei a fazer colagens que o José Augusto França ‘embandeirou em arco’, eram páginas tiradas de revistas de moda ou do Paris Match pintadas com óleo de linho; e ficava com a imagem da página só de um dos lados; tenho muita pena, mas já não tenho nada disso. [...]
Eu trabalhei sempre em espaços completamente diferentes. O Eduardo continuou com o trabalho dele, e eu comecei a fazer objectos. Ninguém pensava em objectos, falavam da ‘crise da arte’, e eu fiz os primeiros objectos. Eram objectos que foram feitos muito antes das ‘Primary Structures’ que os Americanos estavam a fazer. Disso tenho ali, depois mostro-vos.
Eu passei dos objectos para a pintura... [e mostra as pinturas que tem na parede da sala do atelier].
E na pintura depois comecei a pintar com pistola para ter o efeito que queria. Mas o resultado foi mau, e não me satisfez, e então pensei que tinha que aprender com quem sabe fazer, com os pintores de automóveis, foi num bairro da “lata” em Lisboa a caminho do aeroporto, onde eu fui ter com uns senhores a dizer que precisava de aprender a pintar assim. Foi quando passei para um armazém na Quinta de Figo Maduro, com espaço, e apreendi com quem pintava carros...
Passei por muitos lugares. Estávamos para aí em 1972. Já nem sei se aquilo existe ainda... É nessa altura que começa o meu primeiro contacto e interesse nas tintas celulósicas...
Secam rapidamente, gostei delas pela transparência. Depois também tive uma fase com óleo, tem algumas faculdades muito melhores, mas demora muito mais tempo a secar; e se há danificações, não se consegue recuperar. Isso com as tintas celulósicas não acontece.
Bom, o atelier para mim é um espaço de trabalho, e agora sinto-me feliz, gosto de trabalhar aqui. Esta casa era da minha mãe, o Estoril diz me muito, a relação com o mar é muito forte para mim, essencial, cresci com ele ao lado. E a luz aqui é muito especial, tenho uma ligação desde a infância com este local, que é muito forte. Foi aqui que vi o mar pela primeira vez bem como uma árvore também.
Com a minha primeira mulher fui viver para Lisboa, mas depois voltei para aqui, para o mar.
Como vê a relação da sua obra com a arquitectura? A arquitectura é a sua formação de base e Leonardo da Vinci uma das grandes referências da sua obra.
Total! Eu fiz arquitectura, e desenhei uma casa no Algarve da qual gostava muito. Era sobre o mar, e criava todo um percurso numa homenagem ao mar. É que o mar para mim é cheio de romantismo. Eu sem Mar não vivo...
Mas existe realmente uma relação entre a minha obra pictórica e arquitectónica que é muito grande: tem a ver com o espaço que na cultura ocidental é muito forte; a pintura desde o Renascimento também tem tido uma relação grande com o espaço e tem-na mantido.
[...]
Para mim tanto a casa no Algarve como a minha pintura, relacionam-se com o espaço e por isso com a arquitectura. Para mim a relação com o espaço está sempre presente no meu trabalho, há espaço dentro da tela, vários planos, uma tridimensionalidade forte que exploro. Para mim, o objectivo final na pintura foi sempre o de tentar obter uma “holografia”.
Do Leonardo da Vinci: ele é de facto uma grande inspiração, ele também foi arquitecto e pintor, e o esfumato que uso também tem a ver com ele.
O mar sempre...
Fiquei muito contente quando houve aquela exposição – As Idades do Mar – na Gulbenkian em que um quadro meu esteve junto de vários artistas – com alguns dos maiores pintores portugueses – como o Amadeo de Sousa Cardoso e a Maria Helena Vieira da Silva. Fiquei muito contente.
Na sua obra até aos anos 80 aparece muitas vezes a figura humana, no meio de um espaço aberto, na natureza e não só. Essa figura da mulher – sozinha ou em pares – relaciona-se com o erótico?
Sim, claro, talvez não diria isto desta forma, mas claro que a figura da mulher se relaciona com um espaço físico relacional e também com o erótico. Como dizia um crítico espanhol que escreveu no Jornal El Pais “a tua busca em torno do romantismo, na cara das mulheres que pintas, está lá tudo e não está lá nada”, gostei particularmente deste comentário sobre a minha obra.
O facto de as figuras aparecerem retratadas com características (roupas, penteado, acessórios) que as colocam num tempo do passado, e a “névoa” que se encontra em torno e por cima delas, foi para cruzar vários tempos no tempo da pintura. Disseram que eu fazia pintura sobre pintura – as sobreposições das imagens e pintura nos meus quadros.
Na altura viajava muito para Paris, para me encontrar com o Costa Pinheiro, a Lourdes Castro, e o Palolo também. E o Costa Pinheiro encorajou-me muito para ir viver para lá para ver outras coisas, e aprender mais. E disse que acreditava na minha busca em torno do Romantismo.
O Sr. Arquitecto diz que fazia “Pintura sobre Pintura”, diz que a imagem é importante e que todo o resto é “lixo”, e por isso interessa-nos saber o que é a imagem para o Luís Noronha da Costa?
Hummm... Vou dizer, como hei de explicar... Todos nós neste instante, aqui neste momento, os quatro, temos uma imagem da Torre Eiffel; e esta imagem pode-se dividir em 2 coisas – a imagem hermética da Torre Eiffel, que conhecemos e que é uma torre de ferro, e a imagem noética – que aí cada imagem que temos na cabeça da torre é diferente em cada pessoa, porque já tem a ver com a imagem que é formada pela memoria e experiência de cada um, e aquilo que vemos nela, e o que representa para cada um de nós. E essa é diferente. A imagem noética por assim dizer corresponde à imagem mental que cada um tem dentro de si.
Eu procuro sempre quando pinto, uma mulher – não a mulher, mas a imagem que cada um de nós tem na cabeça, daquilo que é [para cada um] a mulher; normalmente uma imagem de uma época do passado, romântica ou vitoriana...
Quando representou Portugal na Bienal de Veneza em 1970 era novo, tinha 38 anos. Qual foi o impacto que teve a sua presença nessa Bienal de 1970 e na Bienal de São Paulo de 1969 no seu trabalho e vida?
Ter representado Portugal nas Bienais de Veneza (1970) e São Paulo (1969) que são “as Bienais” marcou muito a minha obra. Não tive crítica nenhuma, nem prémio nenhum, mas para já foi muito bom entrar por baixo do tecto sagrado de Alvar Aalto, o nosso Pavilhão era tão bonito e tão pequeno, mas muito bonito. Isso foi uma honra muito grande.
As pessoas entravam e viam tudo muito devagar. Olhavam, paravam, na Bienal de Veneza, estava com a minha [primeira] mulher lá e estava feliz.
Teve impacto no sentido que eu cito e refiro sempre isso, mas aqui não, aqui [em Portugal, nota das entrevistadoras] estavam por baixo de uma névoa do neo-modernismo...
Será que se pode afirmar que a sua obra é directamente relacionada com o tempo? E para o parafrasear, o Arq. diz que “investiga o tempo prévio à formação da imagem”. Assim voltamos outra vez ao início da nossa conversa, em que já constatamos que o tempo é um instrumento com grande relevância para o seu trabalho e a sua obra.
É. [afirmativo] – Dizem que sim. A Barbara Roth crítica e curadora americana que fala sobre o meu trabalho, (fiz lá uma exposição em Washington), e ela [Barbara Roth] enunciou uma relação entre a minha pintura e o Fernando Pessoa. Dizia então que a minha pintura é autóctone.
Interessa-me a sobreposição de tempos, e de facto criar imagens noéticas... Tenho voltado a pintar e está a dar-me muito gosto voltar à pintura. Vou ter uma exposição em Espanha agora na altura da feira em Madrid. Depois mostro-vos as pinturas novas... [ver as duas últimas imagens laterais]
[Entrevista conduzida e transcrita por Alda Galsterer e Verónica de Mello, curadoras independentes e co-fundadoras do ProjectoMap: www.projectomap.com]
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Notas
[1] A noética (do grego: nous, mente) é uma disciplina que estuda os fenómenos subjectivos da conciência, da mente e do espírito. Noronha da Costa gosta de usar esta expressão para falar da forma como cada um entende ou percebe a pintura.