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JOãO SERRA
LIZ VAHIA
O trabalho fotográfico de João Serra actua num ponto de encontro entre um público urbano afastado dos ambientes periféricos que habitam a sua obra, mas sensível a uma certa estética plástica, e uma criatividade marginal presente nas infindáveis auto-construções, na arquitectura vernacular, uma poética dos espaços em mutação, das paisagens irregulares. A Artecapital foi falar com o fotógrafo sobre essa linha inconstante entre o visual e o social, o carácter arquivístico e documental do seu trabalho e os últimos projectos que o têm ocupado.
Por Liz Vahia
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LV: A arquitectura, o espaço construído, é um ponto focal no teu trabalho. As tuas fotografias derivam de um constante deambular, de deslocações, visitas a espaços concretos. Há algum lugar físico que uses para “pensar” as imagens que fazes?
JS: Nem por isso, se eu percebi bem o sentido da tua pergunta, nem tenho um espaço físico especifico para pensar ou reflectir sobre as imagens, nem nada que se assemelhe a um “atelier de artista”. Uso naturalmente determinados espaços para trabalhar a edição de imagem mas podem ser espaços muito variáveis, por exemplo a minha casa, ou a casa de alguém, um café, uma sala de aulas, um atelier de um amigo, ou um quarto de hotel. Creio que esse “pensar” as imagens pode ocorrer em qualquer lugar e até na ausência delas, trabalho muito com a memória.
LV: O território, como espaço geográfico e social, tem ganho ultimamente uma dimensão importante na tua produção. Poderias dizer que o teu trabalho denota agora um espaço que não é só um campo visual regido pela forma, mas cada vez mais tem uma existência como local: o lugar da vivência, dos agentes, do quotidiano?
JS: Sim, mas essas preocupações estiveram sempre presentes, talvez nos últimos trabalhos estejam um pouco mais explícitas. Ainda que dependa sempre daquilo que o público consegue projectar, ou seja, de um determinado interesse subjectivo. Assim, há quem dê maior ou menor relevância a determinados aspectos. Há quem diga, por exemplo, acerca das minhas imagens: “– Ah! Tão giro parece uma pintura!” Normalmente é um comentário de quem tem falta de sensibilidade para determinadas questões sociais mas uma enorme generosidade para a decoração de ambientes. Assim como alguns amigos sociólogos tendem a relevar questões da sociologia.
LV: A “estética” presente nestes espaços periféricos é algo que aches importante trazer para o “centro”, através das tuas fotografias?
JS: A “estética” presente nestes espaços periféricos é algo que eu acho importante, ponto. Agora, esse trazer para o “centro”, se for entendido como apropriação, é próprio de qualquer dispositivo fotográfico não sendo por isso exclusivo do meu trabalho. Mas, se esse trazer para o “centro” significa dar relevância à periferia, então depende da relevância do meu trabalho. Neste sentido, com a gentrificação dos últimos anos, creio que o meu trabalho está cada vez mais periférico e longe do “centro”.
LV: Na tua última exposição, intitulada Portugal from Wikipedia, que esteve patente na Casa Bocage em Setúbal até ao início deste mês, juntas às tuas fotografias excertos da Wikipedia, da sua página sobre Portugal. Estas citações não só realçam ainda mais as características presentes nas tuas fotografias que concorrem para a definição de uma realidade social, como propõem uma reflexão sobre as tentativas de generalização, neste caso de um território, que deixam ocultos todos estes matizes, esta realidade periférica. Podes contar-nos como surgiu esta série e como decidiste enquadrar as imagens com os textos?
JS: Esta série surgiu no âmbito de uma residência no Alvito a convite do professor Jorge Gaspar onde produzi, modéstia à parte, um conjunto bastante desinteressante de fotografias. Ao contrário das conversas que mantive com o professor que eram sempre muito mais interessantes do que as fotografias que eu ia produzindo. Certo dia, fiz um retrato de uma avestruz, digo retrato porque elas não enterram a cabeça na areia, mas eu quase. A solução foi contextualizar as imagens com textos da Wikipedia... No caso da fotografia da avestruz, com um excerto sobre a política agrícola comum. E foi assim que encontrei o tom que permite expor com mais ou menos ironia e sentido de humor as contradições do Portugal contemporâneo.
LV: Há uma dimensão arquivista, etnográfica quase, no teu trabalho. Um registo sistemático da criatividade suburbana, das possíveis soluções e dos engenhos materiais e que se traduzem muitas vezes em séries específicas. Achas que o empenho documental tem a ver com o facto destas serem muitas vezes situações ou construções efémeras, em constante mutação?
JS: Sim essa dimensão interessa-me, e de facto na pratica é como se estivesse a constituir um arquivo, é documental porque estamos a falar de fotografia. Mas esse valor documental do trabalho não decorre tanto do que é efémero, ou da natureza efémera dos objetos mas daquilo que se pretende preservar na memória.
LV: Há alguma série nova que te ocupe neste momento? Ou algum plano de projecto?
JS: Eu vou trabalhando sempre em várias frentes e tenho neste momento vários projectos em desenvolvimento. Posso falar de um ou dois. Por exemplo: estou a trabalhar numa série sobre religião que tem o título provisório de Aesthetic Arguments for the Existence of God. Trata-se de um conjunto de igrejas das mais variadas confissões religiosas que eu comecei a fotografar quando estive no Brasil. E algumas delas são bastante raras e ainda sem representação no Congresso Brasileiro. Ou uma outra série de fotografias que eu tenho selecionado a partir do meu arquivo de imagens que produzi na Rússia, Brasil e Europa e que pretende contribuir para que os humanos evitem comer a comida uns dos outros.