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JOSé ALMEIDA PEREIRA
SUSANA CHIOCCA
16/01/2023
José Almeida Pereira é um artista radicado no Porto, com obras em diversas colecções das quais se podem destacar a Fundação EDP, Fundação PLMJ e Banque Privée Edmond de Rothschild. Neste momento, expõe o trabalho Murais do Silêncio, encomenda do Museu da Cidade do Porto para a exposição Quando a terra voltar a brilhar verde para ti, com a curadoria de Nuno Faria. No espaço Mira encontra-se patente a exposição Tona de Max Fernandes sob a sua curadoria.
O artista conversou com Susana Chiocca sobre apropriação, autenticidade e criação de imagens, deixando-nos uma interrogação: “Que lugar neste mundo para quem ainda se interessa pela pintura?”
Por Susana Chiocca
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O rapto da Europa (segundo Rubens segundo Ticiano), (2009), óleo sobre tela, 147 x 147 cm
SC: No teu trabalho aproprias e manipulas imagens de obras maiores da história da pintura, revelas um presente que transforma o passado, o reenquadra, o mistura, o distorce, lembrando aproximações às imagens 3D e ao trabalho de um fotógrafo que recorta a realidade e nos mostra o que considera mais importante, onde um pormenor passa a ser o todo da tela. Crias um novo olhar para quem observa, como se se construísse uma nova história.
Rememoro recriações no mundo da música como a homenagem de Sam the Kid ao Carlos Paredes com o tema Viva! ou os reenactments tão disseminados na performance, que permitem tornar vivo determinado trabalho ao mesmo tempo que se reinterpreta e actualiza.
JAP: A apropriação é condição sine qua non da arte. Com a pós-modernidade, a criação assumiu que o passado, os artefactos anteriores a nós, toda a herança mítica e cultural, traz consigo um léxico comum que permite dar sentido ao presente e projetar o futuro. Como escrevia Borges no conto “Pierre Menard, autor do Quixote”: “(...) a verdade cuja mãe é a história (…)”.
A procura pela originalidade no modernismo é suplantada pela consciência de que os signos culturais são matéria profícua de reflexão, crítica e análise psico-coletiva. Os textos de Foucault e Barthes, sobre a ideia de autoria, arredaram-me a ansiedade da autenticidade. Na minha adolescência lia biografias de pintores. Copiava e interpretava desenhos e pinturas. No entanto, nunca quis repetir. Não queria fazer o mesmo que já foi feito, e aqui falo de repetir os mesmo gestos e ideias. Entendo que vivemos num mundo de reiterações, de cópias, de simulacros e de plágios (inconscientes ou não). Com isso em mente permiti-me mergulhar no rio que mais me atrai - a pintura ocidental pós-renascentista. Talvez seja refém dessas estórias que lia na adolescência - dos artistas sábios. Ao mesmo tempo, não encontrei utilidade na prática de uma pintura que indaga a partir do mundo dos objetos físicos. Julgo que as imagens que criamos são mais ricas no que elas dizem sobre nós. E no tempo de atenção que crescentemente ocupam na nossa vida. A pintura foi, até à criação da fotografia, a privilegiada na criação de imagens. Com o aparecimento da fotografia, ela perdeu esse lugar. Depois o cinema destronou as duas, a seguir veio a televisão. E, depois, o ciberespaço engoliu tudo.
Vivo num mundo onde o que consumo é emitido maioritariamente por ecrãs. Cresci também a ver televisão, essencialmente de propaganda norte-americana... Nos anos 90, acompanhei o início da universalização do ciberespaço. O ciberespaço colonizou o humano. E o hardware que suporta a sua virtualidade, ocupa cada vez mais áreas geográficas no planeta: edifícios com máquinas de processamento e armazenamento de dados, assim como todos os instrumentos da sua distribuição. É como um parasita que absorve vorazmente os recursos naturais e emite impulsos elétricos incessantemente.
Que lugar neste mundo para quem ainda se interessa pela pintura? A pintura cria imagens planas, mas tácteis, marcas físicas de uma presença, sendo simultaneamente ilusão. Isto é uma potência consideravelmente atraente para rebater a impermanência das imagens dos ecrãs.
SC: No livro A Ronda da Noite, com o mesmo título da tua série, Agustina Bessa-Luís, vai descortinando a história das personagens em torno desta obra / cópia de Rembrandt, que tem uma simbologia específica para cada uma delas. A deslocação da pintura de casa em casa, provoca um corte necessário na mesma para poder caber num espaço específico, mais tarde existe a ampliação de uma sala para a receber. São circunstâncias que também vão revelando o declínio daquela família. Ao longo do texto recorta-se a obra, na busca de uma tradução e explicação de cada personagem, gesto, animal ou objectos representados; a personagem Martinho ensimesmada com a pintura tenta encontrar o seu próprio sentido vital. Do mesmo modo, tu retalhas, amplificas detalhes, dando um outro significado a esses pormenores, dás a ver uma outra obra.
Como seleccionas as imagens dentro das pinturas, trata-se de uma descoberta constante? Mais do que uma cópia, tu operas uma recriação, uma reinterpretação.
JAP: Uma cópia é sempre um acto criativo. A transferência de um meio para outro. Pressupõe uma tradução, por isso, decisões de adequação ou diferenciação ao modelo são para mim grandes gestos. Nesse inframince, para pedir o termo emprestado a Duchamp, podem acontecer uma enormidade de ideias e ações criativas, pequenas diferenças, muitas vezes não deliberadas, são o suficiente para descobrir outras galáxias.
Autor-retrato (segundo Aurélia de Souza), 2013 óleo sobre tela, 38 x 27 cm
Como dizes, julgo que não faço cópias. Acho que me aproprio mais de imagens para poder, a partir delas, criar outras imagens/superfícies. No início tinha muito respeito por manter o reconhecimento da pintura/imagem modelo. Aos poucos fui percebendo que esse respeito era uma miragem. Fiz uma interpretação da pintura icónica Auto-retrato de Aurélia de Sousa, que está no Museu Soares dos Reis. Após a sua conclusão, passados uns meses, fui rever a pintura de Aurélia ao museu. Quando a vi fiquei derreado. Havia uma distância abismal entre as duas, para além do meu gesto deliberado de criar sobreposição de formas (atendendo àquilo que o nosso cérebro interpreta quando trocamos os olhos), verifiquei que a minha Aurélia era muito mais meiga e ingénua. Não que eu quisesse evocar o perfil psicológico da Aurélia original, mas perceber que a distância era colossal, talvez me tenha feito entender que esse respeito pela integridade da pintura primeva não tinha razão de ser.
Por isso, a partir daí fui aos poucos fugindo do reconhecimento do modelo. Quando falo de modelo, falo da mesma maneira que se fala de um objeto à nossa frente ou de um corpo humano, de uma paisagem. Penso que as imagens têm esse estatuto de coisas para mim. Quando falamos de cópias ou reproduções, todas elas são singulares. Um livro não é o mesmo que outro dos 500 exemplares que se fizeram nessa edição; um ficheiro jpeg é um fantasma que precisa de um medium para existir como imagem. Ou seja, há cópias que nos permitem fazer umas coisas e há outras cópias da mesma realidade que não nos permitem.
Mas na pintura é impossível repetir um gesto.
Ainda não li o livro de Agustina. Quando pintei o conjunto de pequenos quadros, a partir da obra de Rembrandt, não conhecia a pintura ao vivo. Pouco me lembrava do subtexto inerente à representação. Tinha visto há uns anos a Ronda da Noite do Peter Greenaway. A Ronda da Noite serviu-me para acompanhar os Bufones do Velázquez, que eu quis pintar para o CCVF.
Ronda da noite (segundo Rembrandt), 2016 óleo solúvel em água, 42x33 cm
A pintura de Rembrandt é fascinante, mais do que pela escala, por ser um pedaço de vida. Tal como na vida, as figuras parecem-nos estar mais ou menos absortas nas suas acções.
Movimentos diferentes acontecem em simultâneo, e tudo com uma composição que é também bastante teatral (podiam estar num palco). O tratamento da luz e das sombras revela detalhes semânticos. Ir a cada uma dessas ações permitia-me fazer uma longa série de quadros como planos de um filme noir. Na manipulação de cada detalhe escolhido servi-me da ideia de night shot que apresenta, perante o nosso olhar, uma imagem em tons verdes. Essa imagem resulta de um instrumento óptico capaz de ler frequências eletromagnéticas que o olhar humano não consegue identificar. Lembrei-me da série fotográfica do Thomas Ruff e das imagens de guerra que se tornaram icónicas a partir da Guerra no Golfo.
Ao mesmo tempo tinha muito presente o cinema, os grandes planos, os blowups que nos insinuam engenhosamente sobre o fora do plano e o próprio enredo.
Vista: exposição de José Almeida Pereira e Gil Madeira, “Radiação da Sombra” (2022), no Artes (Mota Galiza), Porto. Esquerda para direita: Gil Madeira, José Almeida Pereira
© Bruno Lança
SC: Existe uma diferença neste novo trabalho em colaboração com o artista Gil Madeira apresentado no espaço Artes, em que o referente é de difícil percepção. No teu atelier podem também ver-se trabalhos na mesma linha. Para onde sentes que se está a direccionar a tua investigação?
JAP: Antes de mais, não sei bem se isto é uma investigação ou mais a satisfação de um desejo. O desejo de descobrir imagens/superfícies que ainda não vi, com autonomia suficiente para que a forma das pinturas não seja vencida pelos temas. De modo que os signos estejam sempre em tensão fecunda com os significantes, as marcas, e que nunca resolvam os significados. Assim, a cada passo, a cada pintura existe uma vontade endémica de libertar os gestos, a matéria e a sua subserviência aos modelos. Para isso busco tornar mais irreconhecíveis os referentes, com isso também surgem novas possibilidades que o abstraimento traz: a ambiguidade, a multiplicidade e a ambivalência. Mas também tenho vontade de voltar atrás e ser mais figurativo!
Continua a ser importante manter presente a ideia de opticalidade técnica, a mediação de ferramentas de edição e distorção que vêm das máquinas. Não me consigo libertar da automação, da ótica, não quero ser livre e contentar-me com a minha perceção ou o meu inconsciente. Nem creio que o possa fazer, mesmo que só eu o reconheça ao olhar para as pinturas já terminadas.
SC: A figura do bobo, que está representada na série Bufos, faz-me lembrar imediatamente o filme O Bobo de José Álvaro Morais e do livro que é adaptado em pequenos excertos no filme com o mesmo nome de Alexandre Herculano. É uma figura dúbia, porque a condição física que naturalmente a excluiria de qualquer papel dentro da sociedade é a que lhe permite ter um papel interveniente numa exposição e reflexão neste caso, sobre Portugal. A tua série traz-nos a sua correspondente espanhola que Velázquez fixa, existindo uma relação directa com outro alguém que está para além do quadro. Anulas completamente essa possibilidade com a técnica utilizada, como se estas figuras actualmente já não fossem permitidas com tanta condescendência, ou como se os bobos pudéssemos ser todos nós, em queixume constante. Mas é evidente o destaque e dimensão que dás aos bufões quase como se esmagassem o espectador com a sua verdade provocadora e desconcertante. Como te provocaram os bufões de Velázquez para que lhes dedicasses esta série?
JAP: Não sei bem o que esteve primeiro, ver os bufões de Velázquez ao vivo e sentir-me impelido para me dedicar a eles, ou se o encontro das pinturas/imagens on-line. Aliás, não me lembro de ver uma obra ao vivo e pensar que tinha de a pintar. Nesse encontro presencial há mais uma conversa que fica ali e que porventura pode voltar em forma de trabalho, mas sempre inconscientemente. Parto quase sempre do encontro com as imagens on-line ou em livros. No início fiz uma viagem ao Prado para ver uma pintura de Rubens (O Rapto da Europa) ao vivo, que por sua vez é uma cópia de uma tela homónima de Ticiano. Mas aquando no museu, esta pintura passou a ser um pretexto para ver outras que nessa ida me tocaram mais. Não deixei de pintar o Rubens, na mesma.
Niño de Vallecas (segundo Velazquez), 2016 óleo sobre tela, 283x229 cm
Gosto muito da tua leitura sobre os Bufos e pensei em muitas dessas coisas.
Julgo que comecei com o bufão de Calabacillas. Quis aproveitar-me daquele olhar enviesado que o Velázquez representou tão bem. Parecia-me um olhar cego, não se distingue a íris da pupila. Queria torná-lo mais extremado de alguma forma. Queria também fazer uma homenagem a essas pessoas, com pinturas monumentais, em contraponto à dimensão social e humana que lhes atribuímos. No livro de Alexandre Herculano o Bobo é uma personagem fulcral no devir de uma nação, uma espécie de anti-herói que permitiu um feito maior que a vida. A sua condição do outro, do fora da norma, do excluído, motivou-me. Nos retratos de Velázquez, a nobreza de carácter e a intelectualidade são bastante destacadas, nomeadamente no Bufão Diego de Acedo. Existe também a ironia no título dessa exposição - Bufos - que para aqueles que viveram a ditadura portuguesa do séc. XX faz lembrar essa outra gente delatora. Talvez A Ronda da Noite me tivesse servido para fabricar índices de uma trama ilusória, dentro do imaginário da pintura ocidental. E, por seu lado, os anões de Velázquez configuraram-se como os elefantes de uma sala qualquer.
SC: Realizaste uma série de instalações nas quais abstratizavas padrões de várias proveniências, como, por exemplo, das notas de euros; uma vez mais retirando o referente e criando jogos de cor e forma. Podes falar um pouco deste processo?
JAP: Em retrospectiva, o que vejo na criação destes padrões, que se concretizaram maioritariamente em pintura expandida (azulejos, muros, paredes, chão e vidros), foi o desenvolver de um interesse pela repetição, pela massificação de signos que se transformam em ícones e que contaminam a paisagem urbana, mediática e económica. Comecei a procurar logotipos e a ajustá-los a técnicas ornamentais seculares (o exemplo dos azulejos), mas também procurei outros signos carregados de simbologia nas notas de euro e de reais. A crise económica de 2008 teve efeitos incomensuráveis, para além da escassez dos recursos materiais e da mobilidade laboral, afetou a minha imaginação. Fiquei também refém de toda aquela linguagem económica. E respondi como sabia, a procurar sentido nas notas de Euro. Lembro-me de um filme blockbuster que vi no início do milénio, antes de isto tudo, em que um dealer de cannabis vai a casa de um cliente e encontra-o em plena trip com uma nota de dólar. O cliente dizia que havia alguém por trás dos arbustos da Casa Branca, armado e à espreita. Talvez eu tenha andado atrás desse insurreto.
Mas mais que tudo, os padrões em escala expandida, surgem da minha atração pelos efeitos visuais limite. Com a adjacência aos espaços arquitectónicos podia tornar esse delírio mais imersivo.
Vista: Horror vacui, 2007, exposição colectiva - Pack - Reitoria da universidade do porto, spray esmalte acrílica sobre azulejo.
© José Rocha
SC: A colaboração com outros artistas tem sido uma prática recorrente. Mesmo em exposições individuais crias um ou outro trabalho em grupo. Qual a importância das mesmas?
JAP: Tenho muito orgulho e admiração pelo trabalho dos meus pares, colegas e amigos. É com eles que aprendo, é a eles que vou buscar grande parte das minhas ideias. Muitas vezes de uma conversa simples surgem rastilhos para novos trabalhos, é mais frequente do que julgava. O acaso do encontro com uma palavra, que inconscientemente há muito procurava, torna-se farol de um projeto porvir. Por isso, por muito que esta atividade seja solitária, no mundo das ideias não é. E nessa partilha, sinto o trabalho dos amigos como meu também, por empatia e por admiração. E tudo aquilo me parece fruto de uma coisa maior, o meu trabalho e o deles, uma coexistência permite diálogos inesperados que ampliam o sentido de ambos, mesmo quando na forma, e até nas ideias, parecem surgir de lugares bem distantes.
Cristina Regadas, Max Fernandes e José Almeida Pereira.
Sem título, 2016
Projeção vídeo, cor/som loop, sobre vidro acrílico com impressão fotográfica UV, tripés.
© Patrícia Barbosa
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Notas das imagens
[1] Da esquerda para direita: 1 e 2 José Almeida Pereira, 3 Gil Madeira, 4 José Almeida Pereira
[2] Colectiva Sub 40, curadoria José Maia, Galeria da Biblioteca Municipal do Porto.