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SNAPSHOT. NO ATELIER DE...




'Belia', guarda-chuva de Belia, gelatina, vistiça da exposição individual ‘Two round to be one’, FELT Galleri, Bergen, 2016


'Belia', guarda-chuva de Belia, gelatina, vistiça da exposição individual ‘Two round to be one’, FELT Galleri, Bergen, 2016


'Les Commères'(As beatas), assentos de folheado de madeira, resina epóxi, vista da exposição coletiva 'L’attrape couleurs invite Les Ateliers', L’Attrape-Couleurs, Lyon, 2017


'Les Commères'(As beatas), assentos de folheado de madeira, resina epóxi, vista da exposição coletiva 'L’attrape couleurs invite Les Ateliers', L’Attrape-Couleurs, Lyon, 2017


'Ossos', suporte de bidé, fio metálico, folha artificial, 50x60x33cm, vista da exposição ‘Cura’, Galeria do Sol, Porto, 2020


'S', poliestireno extrudado diluído em acetona, componente de um lustre em letão, 46x75x23cm, vista da exposição ‘Cura’, Galeria do Sol, Porto, 2020


‘Exuvie’ (Éxuvia), escorregão de plástico, cola branca e talco, 160x50x20cm, vista da exposição ‘Skincare’, Bikini – espaço de arte contemporânea, Lyon, 2020


‘Exuvie’ (Éxuvia), escorregão de plástico, cola branca e talco, 160x50x20cm, vista da exposição ‘Skincare’, Bikini – espaço de arte contemporânea, Lyon, 2020


‘Sniff’, pladur, flocos de pimentão e gesso transparente, 182x244cm, vista da exposição ‘Sniff Out’, Flux Factory, Nova-Iorque, 2018


‘Sniff’, pladur, flocos de pimentão e gesso transparente, 182x244cm, vista da exposição ‘Sniff Out’, Flux Factory, Nova-Iorque, 2018


‘Spaniel’, vaso de cerâmica, flocos de pimentão e gesso transparente, vista da exposição individual ‘Sniff Out’, Flux Factory, Nova-Iorque, 2018


‘Spaniel’, vaso de cerâmica, flocos de pimentão e gesso transparente, vista da exposição individual ‘Sniff Out’, Flux Factory, Nova-Iorque, 2018


Page de route 13, vista da exposição individual ‘Sniff Out’, Flux Factory, Nova-Iorque, 2018


‘Banc’ (Cardume), tecido de algodão, impressão jato de tinta transferida ao tricloroetileno, 288x470cm, 2020


‘Banc’ (Cardume), tecido de algodão, impressão jato de tinta transferida ao tricloroetileno, 288x470cm, 2020


Cancale, tampo de mesa, tampo de banco, pó de ostra e gesso transparente, vista da exposição colectiva ‘Plastic Beach’, ZZ Studio, Lyon, 2018


Cancale, tampo de mesa, tampo de banco, pó de ostra e gesso transparente, vista da exposição colectiva ‘Plastic Beach’, ZZ Studio, Lyon, 2018

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Pedro Pousada



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São Trindade



Inez Teixeira



Binelde Hyrcan



António Júlio Duarte



Délio Jasse



Nástio Mosquito



José Pedro Cortes




BRUNO SILVA

CATARINA REAL


26/12/2021

 

 

Movendo-se entre a procura e a disponibilidade para a descoberta de objectos e matérias, na sua maioria em segunda ou terceira mão, e com as marcas do uso humano, Bruno Silva (Vila Nova de Gaia, 1986) não está interessado em recuperar essa história, mas em preservá-la, mudando-a. Os objectos transformam-se e ganham uma nova vida, assimilados, recortados, recobertos, recontextualizados e ressignificados. Dessa forma, resistem, mas diferentes. Utiliza a imagem do “zombie” para nos falar do limbo em que os objectos que produz se encontram, auxiliando-se também da imagem da esponja, como usada por Jacques Derrida para falar de Francis Ponge; o objecto duplo, ambíguo, que absorve, se deixa contaminar, sujar, e que no mesmo movimento limpa, abriga, acolhe.


A conversa que se segue decorreu via videochamada, entre Lisboa e Clermont-Ferrand, onde Bruno reside actualmente.

 
Por Catarina Real

 

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CR: A tua prática parece existir continuamente no presente, como que existindo em permanente actualização, e sempre em função da tua vivência. Nesse sentido, pergunto-te se há alguma distinção entre o artista e a pessoa.  
 
BS: [Riso] Boa pergunta. Acho que não, que não existe distinção. Há no entanto coisas íntimas, que não são expressas no artista, e fragilidades da prática artística que não vêm impressas na pessoa. Mas é uma só unidade.  
Digamos que se trata sobretudo de uma forma de estar, não apenas de ser, e não só de fazer. Para mim, enquanto artista e também pessoa, mais do que fazer, importa estar. Mesmo quando eles são coincidentes. Ser e estar fazem parte do mesmo conjunto, mas acabam por se distinguir; as coisas têm uma existência diferente consoante o contexto - estão de forma diferente.  
É por isso recorro a objectos. Os que eu produzo têm sempre uma intensidade humana. São objectos usados, que tiveram já uma intervenção ou uso humanos (Belia, 2016). Nem que seja no facto de terem sido rejeitados, de estarem agora na rua, no lixo, numa loja em segunda mão (Ossos, 2020)... os objectos não chegam lá sozinhos. Um objecto é inerte, precisa do auxílio humano para mudar de sítio, e para ser abandonado. E quando há esse abandono, eu vejo-o como uma maneira de lhes dar uma nova vida, e de trazer o objecto do estado inerte, do tempo e história passadas, que eu desconheço, como uma forma de o trazer de volta ao presente. Isto significa apropriar-me dele, apropriar-me da sua forma.
Raramente transformo os objectos que recolho em aparências totalmente diferente, tento guardar as marcas do tempo, o desgaste, tento que esse passado ainda fique visível. (Les Commères, 2017)
A minha forma de intervir nos objectos é uma espécie de gesto de re-afecção, atribuindo-lhes, através de pequenas novas características, um novo valor. Não um valor moral, ou valor quantitativo, falo de outro valor, de uma nova vida, como dizia. Crio zombies, de certa forma. Mortos-vivos. Mortos porque têm o seu passado, e vivos porque eu os trouxe a uma nova existência, mas sem perderem o vínculo à sua história. Ficam sempre nesse estado ambíguo, entre os dois tempos. (S, 2020)
Gosto de usar o termo zombie para me referir a eles [aos objectos] porque engloba tudo o que quero dizer: um estado de vida inerte.  
 
CR: O estar, em vez do ser; era precisamente nesse sentido em que te perguntava sobre os objectos. Tudo parece ser relacional. O estar e o espaço onde se está, têm uma grande relevância para os teus objectos. Encaras a prática de atelier como uma espécie de preparação para o trabalho, para o estar final...?  
 
BS: É precisamente por isso que falo do estar. Para mim a exposição não é um objectivo. É um momento. Um momento específico, como outros. Mais do que outra coisa, dedico grande parte do meu trabalho a pesquisar matérias. Mais recentemente estou a focar-me também em produzir as minhas próprias, que depois aplico a objectos já existentes, integrando ou incrustando-os neles.  
Trabalho regularmente no atelier, e grande parte do tempo trabalho sem um objectivo expositivo. Fabrico, modifico, construo, reconstruo. As coisas estão sempre em movimento. Um objecto em que começo a trabalhar hoje, possivelmente, não terá nada a ver daqui a uns meses. Vou trabalhando, produzindo, e quando me aparece uma oportunidade de exposição, vejo o que é que estou a fazer nesse momento e isso será provavelmente o que existirá nessa exposição. Não estou à espera de um espaço específico, nem temporal nem físico, para produzir objectos. No entanto, posso dizer que as residências artísticas são um formato que me interessa e particularmente porque me permitem que me desloque, valorize a pesquisa e adicione novos elementos, objectos e matérias. Também me proporcionam novos encontros, referentes a um sítio em específico. É uma forma de continuar a alimentar o meu percurso.
As coisas estão sempre a modificar-se. Embora não tenha pensado anteriormente nestas questões do presente, passado e futuro, a nossa conversa fez-me lembrar o filme do Chris Marker [juntamente com Alain Resnais e Ghislain Cloquet], Les statues meurent aussi, que se debruça sobre a forma colonialista como as estátuas vivem nos museus... Afastando-me da questão histórica que evoquei com o filme, diria que os objectos também vivem. Isto quer dizer que eu não acredito na morte, não acredito na desaparição dos objectos. Todas as coisas estão em stand by, sempre à espera de serem transformadas.  
A escultura é para mim, por uma questão de circulação, da possibilidade de contornar um objecto, uma espécie de ritual. É preciso procurar a forma como a escultura melhor comunica, o que ela pode dizer e o que posso eu dizer com ela. É uma forma de comunicação, um diálogo entre o que estou a fazer e o que ela me tem a dizer.  
É o que tento ter presente; o que percebo do que ela me diz e o que é que ela aceita também do que eu tenho para dizer.
 
CR: Fala-nos um pouco mais da tua produção de matérias.
 
BS: Até hoje sempre me concentrei muito em objectos, na acção de os transformar. E nesse processo tento sempre inserir matérias que se encontram entre o orgânico e o sintético: estão sempre presentes as questões de relação entre morto e vivo, orgânico e sintético, inerte e activo. (Sniff, 2018) Recentemente começo a tentar fabricar matérias que, quando aplicadas sobre o corpo do objecto, o ajudem a revelar-se. A revelar as marcas, as cicatrizes. A possibilidade da pele interessa-me bastante. A pele fala de barreira, de protecção entre interior e exterior, da divisão entre o visível e o invisível... Passei a ter mais vontade de que estas “peles” que venho a aplicar nos objectos, pudessem ser também feitas a partir de materiais que possa encontrar, que não sejam apenas fruto de uma compra de um produto já fabricado. Comecei por trabalhar com pó de ostra, e agora estou a trabalhar com pó de vieiras. Recupero as conchas - a mão humana também existe no objecto natural, porque há o gesto de pegar na concha, sorver o interior, e deixar o exterior - que são uma matéria que não é muito usada. Tenho recolhido conchas em restaurantes que trituro, criando uma espécie de pó, com que depois misturo cola e talco - que torna o aspecto da cola mais mate e viva e atenua o lado sintético da mistura - o que acaba por criar uma espécie de gesso, que aplico directamente sobre certos objectos.
Numa exposição que fiz recentemente em Lyon expus um objecto onde a intervenção feita sobre o objecto original, um escorregão (Éxuvia, 2020), foi a aplicação de uma mistura de talco com cola branca. O talco é um mineral que aliado à cola branca, atribui um aspecto nacarado às superfícies onde é aplicado. Fui aplicando as várias camadas, mantendo a transparência e a visibilidade do objecto, mas criando uma pele protectora nacarada da forma, do objecto, do desenho que foi fabricado pela mão humana. É uma tentativa de conservar o objecto original no interior da minha intervenção.
 
CR: Como se criasses uma espécie de novo enquadramento... a pele, de que falas.
 
BS: Sim, uma protecção. Não no sentido de esconder, mas no de revelar.  
Tento cada vez mais aproximar-me de matérias não pré-fabricadas, mas misturadas por mim. Matérias com características novas, que surgem através de processos químicos.
 
CR: Exacto, era na química que pensava. E o que te pergunto é se essa dimensão de descoberta química - muitas vezes associada à experimentação artística dos materiais - te interessa, ou se, por outro lado, o teu interesse diz sobretudo respeito a uma conceptualização de alguma coisa.
 
BS: Interessa-me a fabricação, a experimentação e também uma forma qualquer de independência e de desconhecimento do que estou a fazer. Tento perceber as matérias, perceber porque é que se comportam de certa forma, mas gosto do amadorismo. As matérias - tal como me refiro a elas - são tal qual os objectos, mesmo que não os mostre da mesma forma. Interessam-me os processos de ambos de igual forma, da descoberta à mistura, à nova vida.  
O que me interessa não é tanto a parte conceptual, mesmo que exista uma forma de conceito - porque tudo são matérias que vêm de utilização humana, sendo impossível sair desse registo, a menos que trabalhasse directamente na natureza - esse diálogo entre o que é natural e o que é sintético, o que produzimos e o que nos é oferecido.  
Tento situar-me entre dois espaços, no espaço ambíguo.
 
CR: Ocupas o espaço entre várias ambiguidades. Não só na junção de matérias, e por aí do que é orgânico e do que é sintético, mas também na articulação de estados. O limbo do zombie, de que falavas. Entre a artesania e o industrial.
Interessar-te-ia uma sistematização da tua experiência, feita por outros? Quase levando ao limite do científico os testes de reunião que estás a testar.
 
BS: O que me interessa a mim é o lado amador: o de achar experiências fascinantes mesmo que para alguém que perceba da cientificidade das misturas, ela possa não ter interesse nenhum. Para mim interessa-me guardar o lado artesanal, da descoberta, e interessa-me menos o desenvolvimento de uma técnica que me sirva, ou que sirva uma industrialização.  
Se alguém se apropriar das minhas experiências, por outro lado, não vejo problema nenhum. Não são coisas que me pertençam. Um pouco à semelhança dos objectos e formas que recolho. Nunca inicio nada a partir do branco. Passa sempre tudo por alguém, há sempre uma história anterior, mesmo quando a desconheço. Se eu o faço desta forma, a continuidade do meu trabalho tem de ser pensado à semelhança; não posso pensar que os objectos ou as matérias ou as experiências me pertencem. Está tudo de passagem.
 
CR: Há alguma altura em que os objectos ficam prontos para te deixarem de pertencer?
 
BS: Enquanto estão próximos, no meu espaço de trabalho, enquanto ninguém os adquirir, pertencem-me. Pertencem-se também a si próprios. Nesse espaço temporal eu guardo a liberdade de fazer o que quiser com eles. Acontece-me às vezes guardar objectos, mas passado um tempo vou buscá-los e volto a trabalhar neles, volto às modificações.... e às vezes eles desaparecem. Já não têm nada a ver com o que eram no início, e isso deixa de me interessar. É aí a morte, quando o objecto inicial se transforma noutra coisa, quando há uma modificação tão grande do objecto - feita pela minha pessoa - que já não o reconheço. Isso para mim é o final do processo, perco o interesse.
O que me interessa é o momento da descoberta, da transformação. E quando consigo trabalhar com esse estado presente, quando consigo conservar o que o objecto era quando eu o encontrei.
 
CR: Isso torna ainda mais clara a imagem do zombie. O momento em que os objectos passam a estar vivos de novo, a serem de facto outra coisa, deixam de te interessar.
 
CR: Misturando um pouco a visão sobre o teu processo de trabalho, e atentando ao também estado-de-presente dos teus textos “Pages de Route”, pedia-te que me falasses um pouco sobre a articulação deles com as outras matérias que usas.
 
BS: É literal, para mim. Página, porque se tratam de formatos de texto que eu inscrevo numa só página. Respeitar a estrutura é importante, e não ser longo. Para mim são, as “Pages de Route”, como uma forma de companheiro. Não é regular a sua aparição nem o modo como aparecem. Às vezes acontece em relação com uma peça, outras em relação com uma exposição, com o meu estado de espírito. Outras vezes contam uma história que não tem nada a ver com o que estou a produzir, são como excertos de pensamentos e menos como obras. Não as considero como obras, porque não me vejo como escritor. É um meio que me interessa, porque me permite dizer coisas, o que mais nenhum meio permite. Pode-se fabricar outro tipo de formas com o texto, mas que não adquirem, no meu trabalho, o estatuto de obra.  
Considero-as como uma forma de acompanhamento, próximas do que é um melhor amigo. O que não consigo dizer no atelier, na escultura, digo nas páginas.  
Tenho vários exemplos de como elas podem aparecer... numa exposição que fiz em Nova York, chamada “Sniff Out”, a “Page de Route” falava de um cão na cidade (Spaniel, 2018). Através dela percebes a exposição, porque de certa forma evoca as obras que estão expostas, sem as descrever. É uma maneira de falar de um processo sem ter a obrigação de ser directo. É uma forma metafórica, uma alegoria. (Page de route 13, 2018)
 
CR: E enquanto conjunto, não lhes vês uma autonomia, enquanto obra?
 
BS: Será uma coisa que precisa de tempo para que venha a ter uma autonomia. Será uma obra que não termina enquanto eu não decidir que ela termina. Acumular, acumular, acumular, até aos meus cem anos. [risos] É um formato que se acumula e que vai sendo construído e que fala de objecto, de espaço, de pensamento, mas que é constantemente construído.  
Aconteceu-me uma vez uma curiosidade...   uma vez fartei-me das “Pages de Route”, numa fase em que não conseguia escrever, e fiz um desenho. É a número dez, a única que não é texto e em que aparece um desenho de mim sentado, à espera que alguma coisa aconteça. Quase como uma forma de quebrar o protocolo e depois voltar a ele. O erro no sistema permitiu-me voltar.  
 
CR: Aproveito para dar um passo atrás e te perguntar se, na tua prática - aproveitando a tua referência ao desenho - há algo que seja preparatório, que sirva somente a preparação do passo seguinte?  
 
BS: Raramente desenho. Não existe praticamente nada. O desenho existe nos objectos, no seu uso pelo tempo, nas marcas. É a minha forma de desenho, aquele que já existe no objecto. Mesmo para pensar, raramente utilizo o desenho. Neste sentido, até tenho vindo a introduzir mais a imagem. Apareceu nesta exposição de que te falava, em Lyon. Começo, ainda que de uma forma tímida, a entrar agora mais numa abordagem à imagem e ao pensamento bidimensional. Expus uma espécie de cortina (Banc, 2020), construída através da repetição padronizada de imagens de uma truta, que imprimi a jacto de tinta e transferi para a superfície do objecto, com um produto químico, um substituto de tricloroetileno. É para mim muito mais que   uma impressão, do que uma transferência, acabo por vê-la como uma absorção da tinta pela matéria, o que quer dizer que a imagem entra no material, para além da superfície. A tinta atravessa a matéria, que neste caso é tecido, e torna-se visível na frente e no verso.
 
CR: Torna-se uma imagem escultórica.
 
BS: Sim, e para o acentuar decidi introduzir uma dobra. O tecido é maior do que a parede, o que faz com que eu mostre o verso da impressão. Acrescenta-se volume. Que me interessa pensar é: como é que podemos atribuir uma imagem a uma tridimensionalidade? Como é que voltamos a essa origem?; passando da escultura do peixe a imagem, de volta à escultura. É uma forma de voltar a dar vida à imagem, voltando a atribuir-lhe um corpo. Voltar a dar-lhe vida, mas de outra forma.  
 
 
 
Cancale, tampo de mesa, tampo de banco, pó de ostra e gesso transparente, vista da exposição colectiva ‘Plastic Beach’, ZZ Studio, Lyon, 2018.
 
 
 
BS: Lembrei-me agora que acabei por não acabar a história do início da utilização do pó de ostra, e da fabricação de matérias. Durante uma residência em Rennes, recuperei ostras, que transformei em pó e adicionei a gesso, transparente, com que cobri uma prancha de madeira. Cobri totalmente a madeira, transformando-a numa espécie de mesa (Cancale, 2018). A escultura é uma mesa. Foi também uma forma de dar outra vida a essa matéria. Falo-te desta peça porque é a razão de eu ter começado a usar a ostra e as conchas como matéria. Nessa residência visitei uma cidade que se chama Cancale, da Bretanha, onde a tradição gastronómica é a ostra. As pessoas comem as ostras e deitam as conchas para a areia. Encontras praias completamente cobertas de conchas. O que fiz foi pegar nelas, junta-las a outras matérias e dar-lhes uma nova vida enquanto mesa. O que joga no limite entre o objecto e a obra. E isso interessa-me também, como é que um objecto se transforma em obra e, por outro lado, como é que a obra também pode ser um objecto, no sentido utilitário.
 
CR: Mas nunca com uma intenção de usabilidade? Apenas como sugestão.
 
BS: Sim, apenas como sugestão.
 
CR: Sugeria-te que acabássemos a nossa conversa falando do projecto expositivo home alonE. Peço-te que o faças não só porque o criaste, juntamente com Romane Domas, mas também porque me parece importante no contexto da tua prática. A união de pessoas parece-me semelhante ao teu processo de união de matérias. [para uma descrição do nascimento e desenvolvimento do projecto ver aqui]
 
BS: Sim, é uma prática artística sem obra. Aliás, com obras, mas não as minhas.  
É uma forma de estar na arte, tal como falávamos no início, onde não há uma obrigação de produção de objectos.  
O home alonE começou em Clermont-Ferrand como uma vontade de coabitar com obras e de juntar pessoas. Nunca tive nenhum desejo de curadoria, nunca procurei criar uma linha de curadoria específica para o espaço, o que sempre me moveu foi o encontro com as e das pessoas. Era a intimidade que eu queria partilhar com as várias pessoas que fui convidando, porque tratava-se [e ainda se trata, mas numa outra morada] da minha casa. E também porque, mais do que apreciar a prática artística, aprecio o valor que a pessoa representa, e a forma como o traz ao seu trabalho.  
Havia também a motivação de propor um espaço de exposição para Clermont-Ferrand, disponível para os artistas de Clermont-Ferrand. Na altura havia poucos espaços de exposição. Pensei simplesmente que queria fazer exposições em minha casa, e que assim poderia convidar as pessoas que têm uma prática regular de atelier, e que não conseguem expôr, na sua própria cidade e às pessoas que conhecem, o seu trabalho. Foi uma forma de facilitar esse encontro com o público local, contrariando a tendência de expôr apenas fora da cidade onde se vive, que era o que acontecia. Era um pouco triste viver numa cidade onde havia muitos artistas, mas não havia formas de conhecer e ver o trabalho deles.  
Começou desta forma. Começamos, eu e a Romane, por dedicar um espaço da nossa casa somente a propostas de exposição. Decidi de forma voluntária que este espaço não fosse isolado na geografia do apartamento: situava-se entre o meu quarto, a cozinha e a sala de estar. Eu tinha de atravessar a exposição no meu dia a dia, e essa coabitação era importante. As exposições tornavam-se pessoas com quem eu morava, como se alguém estivesse de visita.  
Acaba também por responder à questão do estar, porque desta forma é um estar permanente, 24h por dia, na arte, mas sem ser numa lógica produtiva. A mim esse estar ajuda-me, motiva-me e permite-me sair do meu espaço, da minha bolha, do meu pensamento e obriga-me a situar-me, observando o trabalho e as práticas dos outros.  
 
CR: Queres introduzir a continuação do projecto, e o caminho que tomou?
 
BS: Há três ou quatro anos comecei a pensar como fazer o projecto crescer, e não estar dependente de um só espaço ou de mim. Comecei a falar com várias pessoas em Clermont que senti que poderiam fazer viver o projecto. Assim, apareceu o segundo espaço home alonE, num outro apartamento, onde se fazem exposições mais voláteis. Começou assim a aparição de réplicas. Entretanto também mudei de casa, e então passou a haver um outro sítio, mais pequeno. Mais recentemente passou a existir uma outra localização, numa aldeia perto de Clermont. O que torna o projecto o mesmo; um projecto expositivo em espaços íntimos, mas em que cada um deles [os espaços, as casas, as pessoas] assume a sua identidade em função da geografia do espaço e da personalidade dos anfitriões. O que interessa é sobretudo a intimidade, que não existe em espaços como galerias, e que faz com que as pessoas permaneçam, e não estejam apenas de passagem.
home alonE existe desde 2014 e vou perdendo o controlo do projecto porque acredito que nenhum projecto deve pertencer na íntegra a alguém. Essa partilha permite que o projecto, um dia que eu queira deixar de fazer exposições na minha casa por alguma razão, possa continuar independentemente da minha vontade. Há uma vida que continua sem mim, de alguma forma como os objectos que eu produzo. Trata-se de uma forma de perda de controlo, embora controlada, para tudo poder estar em constante movimento.