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JAMES NEWITT
DASHA BIRUKOVA
27/10/2020
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James Newitt é um artista australiano radicado em Lisboa. É formado pela Tasmanian School of Art, com um doutoramento em artes plásticas.
Trabalha principalmente com vídeo, texto, instalação, performance. Na sua prática artística, James explora a relação entre o corporal e o mental, a interação de estados cinematográficos e performativos, bem como uma abordagem documental expandida baseada em diferentes possibilidades de narrativas especulativas.
Recentemente expôs no Centro Cultural Carpintarias de São Lázaro onde exibiu o seu novo filme comissionado Fossil, que explora os lapsos de memória e as lacunas da linguagem de uma pessoa em recuperação de um trauma.
James realizou exposições individuais na Appleton Associação Cultural (2019), Contemporary Art Tasmania (2019), Artes, Porto (2019), Lumiar Cité (2013), Gallery of Fine Arts, Split, Croatia (2010), Monash University Museum of Art (2008) e no Tasmanian Museum and Art Gallery (2009, 2011). Participou em exposições na Art Gallery of New South Wales (2019, 2013), Carriageworks (2015), Queensland Art Gallery (2012), Museum of Contemporary Art, Sydney (2010), Art Gallery of South Australia (2008) e em festivais de cinema na Austrália e internacionalmente. Foi-lhe atribuída uma Samstag Scholarship (2012) para participar no Maumaus Independent Study Program em Lisboa, tendo realizado também residências no Australia Council for the Arts em Los Angeles (2008) e Liverpool UK (2011).
Entrevista por Dasha Birukova
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DB: Sou muito influenciada pelo conceito de «estranhamento», conforme discutido pelo teórico russo Viktor Shklovsky e apresentado no seu ensaio «Arte como técnica» (tornou-se num Manifesto da escola formal russa de crítica literária). «Estranhamento» significa uma transformação de coisas familiares em estranhas, que é uma lei básica da arte, segundo Schklovsky. As acções tornam-se habituais quando mergulhamos no inconsciente, e a tarefa da arte é extraí-las dali, para as re-apresentar na nossa consciência, mas como irreconhecíveis, estranhas, nas quais a nossa percepção pode permanecer por muito tempo.
Este conceito de estranhamento aplica-se à tua práctica?
JN: Em trabalhos recentes tenho pensado sobre o subconsciente e a relação entre o nosso subconsciente e como a memória funciona. Num trabalho como “The Rehearsal”, que filmei em Lisboa em 2014, estava a tratar o comportamento subconsciente e psicossomático. Estava muito interessado em saber como o trauma poderia produzir movimentos ou reações físicas descontroladas, como algumas pessoas que sofreram trauma experienciam desassociação, por exemplo. No início da minha pesquisa para este projeto, investiguei um caso particular de uma praga de dança que ocorreu em Estrasburgo no século XVI. É um fenómeno muito estranho e bem documentado que aconteceu durante uma crise em curso, em que as pessoas viviam na pobreza, a morrer de fome, e essa crise produziu um trauma que foi expresso por acessos de dança descontrolados. Não era uma expressão consciente, mas uma espécie de dança estilo transe que se tornou contagiante, uma mania colectiva que tomou conta da cidade. Também examinei outras formas de desassociação expressas por meio de movimentos corporais, como a tarantela e outros rituais de transe. Num trabalho como “Fossil” tentei pensar sobre como uma pessoa com um défice de cognição e memória poderia ver o mundo. Esta foi uma questão que veio de uma experiência muito pessoal. Enquanto desenvolvia “Fossil”, comecei a pensar sobre como a informação é armazenada no cérebro, como acedemos e comunicamos essas informações - especialmente se as nossas vias neuronais estiverem danificadas - e como o subconsciente pode interferir nisto. Então, sim, coisas que não são lógicas, como experiências psicossomáticas e o subconsciente, são assuntos que me interessam.
DB: A dimensão do tempo é um dos conceitos mais desafiadores de se abordar na arte. É por isso que gosto do conceito de tempo e duração de que fala Bergson. Ele percebeu que a ciência investiga principalmente um conceito linear de tempo, como uma linha, enquanto o tempo é móvel e incompleto. Em alguns casos, o tempo pode acelerar ou diminuir, enquanto para a ciência permanecerá o mesmo. Assim, Bergson decidiu explorar o mundo interior do homem, que é um tipo de duração, nem unidade nem multiplicidade quantitativa. A duração é inexprimível e só pode ser exibida indiretamente, por meio de imagens que nunca podem mostrar o quadro inteiro. Só pode ser compreendido por meio da intuição da imaginação.
Como jogas com o tempo e a duração nas tuas obras?
JN: Acho que se és um artista que trabalha com a imagem em movimento, com vídeo e filme em particular, é impossível não considerar o tempo como um material que pode ser manipulado ou interrogado. Acho que quanto mais aprendo sobre como editar, mais aprendo sobre possibilidades de manipulação do tempo. Lembro-me que, quando fiz um trabalho já bastante antigo intitulado “Altered State”, filmei uma série de performances com pessoas individuais em locais diferentes e reuni essas pessoas virtualmente por meio de um vídeo multicanal para enfatizar as relações dos seus gestos e palavras. Tive a sensação de que não poderia cortar as performances, não poderia manipular o tempo que experienciei durante as filmagens, porque senti que tinha uma responsabilidade com a experiência original e senti que de alguma forma não era autorizado a usar esse material como material em bruto que pode ser cortado, reorganizado ou manipulado. À medida que continuo a trabalhar, tento desenvolver uma relação mais lúdica com o tempo e pensar sobre a natureza temporal do material com o qual estou a trabalhar como algo que tem uma plasticidade, que pode ser manipulado e alterado. Com “Fossil”, talvez por estar a tratar de questões de neuro-plasticidade e memória, eu sabia que não queria que o trabalho seguisse a lógica de uma narrativa linear. Então, em termos de estrutura narrativa, senti que precisava de jogar com a forma como o tempo operava no trabalho. Então usei muitas repetições e loops para criar a sensação de estar preso num espaço, dentro da cabeça de alguém, numa sala, dentro de uma espécie de estrutura em loop, gaguejante, que reflectia a experiência de estar num hospital, a tentar recompor o mundo ao seu redor, a fim de funcionar novamente de forma independente.
DB: Na tua opinião, como é que a natureza da performatividade e uma performance gravada para um ecrã podem responder ou ligarem-se uma à outra? Como é que entrelaças a abordagem cinemática e a performativa?
Podes contar-nos mais sobre a tua ideia de «encenar» a acção?
JN: É interessante pensar sobre como uma performance ao vivo, algo feito por um humano de carne, pode operar de forma diferente de uma performance filmada que é projectada como luz na superfície de um ecrã. Um exemplo recente em que tentei olhar essa relação foi uma exposição em Lisboa em 2016 no AR Sólido - um espaço independente em Xabregas que infelizmente já fechou. O trabalho intitulava-se “To Attempt to Become Other, Secretly or Not” e desenvolvi-o em colaboração com duas bailarinas portuguesas, Vânia Rovisco e Ana Trincão. Comecei este trabalho olhando para a figura do Acéfalo, um ser mítico - uma criatura que não tem cabeça. Bataille escreveu sobre o Acéfalo, tornou-se numa espécie de imagem que representava a sua sociedade secreta, porque o Acéfalo é essa criatura de tipo humano que não age de forma racional, para ele representa uma libertação do pensamento racional. Então, trabalhei de perto com a Vânia e a Ana para pensar em como o Acéfalo se poderia mover, como poderia relacionar-se com o seu próprio corpo, como poderia negociar o seu ambiente, como poderia sentir o seu caminho pelo mundo. Filmei a Vânia Rovisco num cenário, na floresta à noite, como se esta figura, o Acéfalo, não soubesse que estava a ser filmado, captando o vídeo essa performance numa paisagem surreal. Dentro da exposição instalei um grande ecrã para o vídeo ser projectado, então no espaço tinhas o vídeo da figura sem cabeça na floresta, além de alguns outros objectos e elementos de texto, e durante a abertura convidei a Ana Trincão para fazer uma performance ao vivo na galeria. A performance não foi algo anunciado, nenhum público foi organizado para se sentar e assistir, pois eu que não estava realmente interessado em encenar uma performance para um público, onde as pessoas têm que parar o que estão a fazer, reunir-se, assistir a algo, apreciar e bater palmas quando termina. Estou mais interessado na performance como uma espécie de ruptura ou intervenção num espaço ou numa situação. Com a Ana ensaiámos a performance para que durante momentos específicos no vídeo, ela fizesse uma pausa e começasse a interagir com o Acéfalo, ela como que espelharia os gestos dele, pararia o que quer que estivesse a fazer e por um período de cerca de 2 minutos também ficaria sem cabeça. Isso estava a acontecer em vários lugares da galeria, às vezes atrás do ecrã, às vezes entre as pessoas. Após esta sequência de 2 minutos, a Ana voltaria aos seus movimentos "normais", não interagindo realmente com ninguém directamente, mas como que desaparecendo na multidão novamente. Neste caso pensei em como a performance ao vivo poderia interromper o formato de inauguração da exposição. Que a figura que vemos na superfície plana do ecrã, extravasou e influenciou o comportamento de uma figura real, viva, de carne, no espaço da galeria. Gosto deste processo de questionar a relação entre o público, o ecrã e o performer. Tento encontrar oportunidades de produzir comportamentos, acções ou gestos que não se alinham com a forma como podemos esperar que as interações convencionais ocorram numa situação particular, como a inauguração de uma exposição, e que essas experiências não sejam enquadradas ou anunciadas como performances, que possam ocorrer talvez despercebidas e depois desaparecer novamente.
DB: Às vezes usas documentos como ponto de partida para o teu trabalho. Relacionas o teu trabalho com a realização de documentários? Que tipo de novas possibilidades achas que um documento pode trazer para a arte das imagens em movimento? Podes descrever a tua estratégia particular neste sentido?
JN: No início da minha produção eu estava a fazer um trabalho que não era necessariamente documentário, mas estava envolvido em estratégias de documentário como a entrevista, a filmagem observacional, a pesquisa etnográfica, etc., e acho que a minha relação com o assunto era um tanto objectiva, quero dizer que não ‘dirija’ tudo o que acontecia em frente à câmara. Nessa época não trabalhava com actores profissionais, deparava-me com situações, imagens ou eventos, gravando-os e depois trabalhando com esse material. Ainda estou interessado em práticas documentais, especialmente em formas experimentais de documentário, documentário expandido ou realização documental autorreflexiva, porém em trabalhos recentes tenho tentado mudar para uma abordagem mais especulativa, trabalhando com actores e criando uma estrutura para eles actuarem, onde a escrita é também uma parte importante deste processo. Apesar de me mover para um espaço mais especulativo, ainda acho que o meu trabalho emerge de experiências reais, seja uma história real, um lugar real ou documentos reais. Por exemplo, um filme recente, “I Go Further Under”, é baseado na história real de uma jovem que desapareceu da sua vida em Melbourne para viver sozinha numa pequena ilha na costa sul da Tasmânia, um lugar que poderia ser pensado como estando no fim do mundo. Eu reuni muito material para trabalhar, o que ajudou a dar uma visão sobre a sua personalidade e a sua experiência nessa ilha. Por exemplo, encontrei uma colecção de cartas dirigidas a ela escritas por homens de meia-idade de todo o mundo, que era como uma correspondência de fãs onde eles projectavam as suas fantasias de se retirarem da sociedade e desaparecerem em direcção a ela. Achei esses documentos muito interessantes. As cartas permitiram-me abrir ainda mais o trabalho para o território especulativo, porque me proporcionaram uma base para jogar com a sua história e pensar no próprio filme como uma forma de carta. “Fossil” também foi baseado numa colecção de documentos pessoais. O ponto de partida do filme foi uma novela que escrevi em 2017. A novela expandiu-se numa série de memórias e textos curtos que a minha mãe escreveu depois de perder a memória devido a um aneurisma cerebral. Estes textos curtos não significam necessariamente nada fora do contexto, mas eles permitiram-me focar e extrapolar essas memórias numa narrativa semi coesa. De certa forma é verdade que os documentos desempenham um papel importante no meu trabalho, mas procuro usá-los como ponto de partida.
DB: Como é que trabalhas na adaptação do texto? Não estou a falar sobre a narração em si, mas mais sobre a visualização de texto abstrato ou fluxo de consciência.
JN: Estou interessado em trabalhar com texto que poderia operar em registos múltiplos e talvez simultâneos, por exemplo, poderia ser uma narração de voz off ou texto em legendas, ou texto que desempenha um elemento mais gráfico num filme, ou poderia ser um som particular ou uma discussão ouvida. Estou curioso para ver como o texto pode desempenhar esses papéis diferentes, como esses registos podem reforçar uma narrativa ou talvez desestabilizá-la, como podem ser coesos ou existir num estado de conflito.
DB: Sobre o teu filme «Fossil», podias falar um pouco mais sobre o livro em que o filme é baseado?
JN: Fui convidado a escrever uma novela como parte de um projecto chamado "Lost Rocks", que é um projecto de edição independente, bonito e de longo prazo de um colectivo australiano chamado ‘A Published Event’. Justy Phillips e Margaret Woodward, que estão por trás de A Published Event, convidaram 40 artistas ao longo de 5 anos para escrever novelas baseadas numa rocha desaparecida. Há uma longa história por trás disto, não vou entrar em detalhes agora, mas basicamente eles encontraram um dispositivo educativo, um painel de espécimes que nomeava uma colecção de rochas e minerais da Tasmânia, em que 40 desses espécimes estavam desaparecidos (as rochas tinham caído do tabuleiro), então eles estão a pedir a artistas que escrevam no espaço dos minerais ausentes. Escolhi um dos "fósseis" desaparecidos, não tinha bem a certeza do porquê na época, mas sabia que poderia ser um material interessante para escrever. Tive a sensação de que escreveria um texto sobre o eu testemunhar a minha mãe sofrendo de um aneurisma cerebral, perdendo a memória e a sua tentativa subsequente para recuperar essa função. Lembro-me de Hito Steyerl escrever que “[...] uma coisa nunca é apenas um objeto, mas um fóssil no qual uma constelação de forças está petrificada. As coisas nunca são apenas objetos inertes, items passivos ou cascas sem vida, mas consistem em tensões, forças, poderes escondidos, todos sendo constantemente intercambiados.” Achei que isto era muito interessante em termos de memória, porque o “Fossil” revela uma forma complexa ou conjunto de relações através da ausência daquilo a que se refere. Esta parecia uma bela maneira de especular sobre a perda de memória e pensar sobre como o cérebro acede às informações através de uma complexa rede de vias neuronais. Escrevi esse texto em 2017 e funciona como um fluxo de consciência baseado numa colecção de memórias e pequenos textos escritos pela minha mãe. No ano seguinte, fui convidado por um curador da Art Gallery de New South Wales para participar numa exposição de pesquisa em Sydney chamada “The National”. Conversámos sobre diversos trabalhos e diferentes possibilidades de desenvolver novos trabalhos, e falei sobre essa novela que estava a pensar transformar num filme. Estava a imaginar como interações específicas, momentos, lugares, gestos, confusão, repetição, uma falta de capacidade de comunicação, como todas essas coisas, que foram importantes na novela, podem funcionar num filme. Então agarrei nalguns desses elementos e comecei a transformá-los num argumento. Depois, de volta a Lisboa, trabalhei com a Stenar Projects e dois fantásticos performers: Anton Skrzypiciel e Romeu Runa, para tentar encontrar formas de fazer um filme que não falasse apenas de perda de memória, mas criasse um mundo onde se pudesse sentir algumas das sensações de fragilidade e confusão que uma pessoa perdendo a memória pode sentir. Durante os ensaios e as filmagens tentei encontrar maneiras de jogar com o Anton e o Romeu, para às vezes enganá-los ou confundi-los, para tentar produzir essa sensação de fragilidade ou desorientação de uma forma que não fosse estritamente ensaiada.
DB: Estava a pensar na relação corporal entre os dois protagonistas do filme, e imediatamente pensei no conceito do corpo sem órgãos. Para Deleuze e Guattari, todo o corpo real tem um conjunto limitado de características, hábitos, movimentos, afectos, etc. Mas todo o corpo real tem também uma dimensão virtual: um vasto reservatório de potenciais traços, conexões, afectos, movimentos, etc.
Como é que desenvolveste esta relação em "Fossil"?
JN: Pesquisei muito enquanto escrevia a novela e preparava o filme em torno da memória, neuroplasticidade e experiências psicossomáticas especialmente relacionadas com trauma e o corpo. Li muitos estudos de caso, experiências fascinantes onde, por exemplo, alguém deixava de reconhecer a sua própria perna, que depois de um trauma sentia como se a sua perna não só não lhe pertencia, mas que nunca lhe havia pertencido. Ou coisas menores, como pessoas que deixam cair regularmente a chávena de café sem explicação, em que alguma experiência anterior ou trauma foi internalizado e que esse trauma se manifesta como um estranhamento físico com o corpo. Também pensei sobre a experiência da dependência, que se alguém está a passar por um processo de reabilitação, existe um nível de dependência que quase pode parecer violento de se fazer. Às vezes durante a reabilitação pode haver empurrões e puxões bastante intensos entre dois corpos, um empurrando o outro para funcionar "normalmente" de novo. Houve um caso de um neurocirurgião cujo pai sofreu um derrame e perdeu a capacidade de andar ou funcionar normalmente. O neurocirurgião fez o seu pai gatinhar, como um bebé, na tentativa de voltar atrás, para religar o seu cérebro a partir do zero. No filme vemos estes dois homens, ambos habitam um mundo claustrofóbico e dentro deste espaço realizam diferentes exercícios físicos e cognitivos, incluindo exercícios de memória e gestos de cuidar, coisas muito práticas de certa forma.
DB: Estou fascinada sobre o modo como jogas com a sintaxe e a semântica da fala em “Fossil”, reduzes o significado ao som, mas manténs a camada da sensação imanente, baseada na semântica. Podes falar sobre a intenção por trás desta ambiguidade?
JN: Uma das coisas que aconteceu com a minha mãe depois do dano cerebral foi sofrer de Afasia, que é uma condição em que ainda sabe as palavras que quer comunicar, mas não consegue aceder a essas palavras, não consegue tirá-las da boca. É muito frustrante para as pessoas que têm Afasia porque geralmente sabem o que querem dizer, conseguem ver a palavra mas não conseguem acedê-la, então têm que tentar encontrar uma forma de se referir ao objecto, ou o que quer que desejam comunicar, sem usar a palavra real para isso. Assim, a pessoa pode tentar usar gestos, por exemplo, ou pode encontrar outra maneira de descrever uma ‘caneta’ sem dizer a palavra ‘caneta’: a coisa dura de plástico com a qual escreves. Isto acontece porque parte do cérebro relacionada com a linguagem está danificada e as sinapses não estão a conectar, então as palavras simplesmente não saem - obviamente, esta é uma maneira muito grosseira e simplificada de descrever a condição, mas também gosto de falar dela num sentido físico, em que as palavras ficam presas, que precisam ser arrancadas. Então tentei pensar na estrutura da linguagem no filme, como poderia ser afectada ou desactivada. Usei estes diálogos muito simples: “como te sentes hoje?”, como uma forma de conversa mundana, do dia a dia, que se pode ter com alguém que está preso, numa sala e dentro da sua própria cabeça. Comecei a tornar o diálogo mais repetitivo e desconectado, para mostrar como a linguagem pode operar quando as sinapses são fracturadas. Também pensar nesses sons como material em bruto, como a linguagem pode não servir um propósito narrativo, mas existe antes como bytes de som brutos.
DB: Falando numa dimensão estética de “Fossil”, por que escolheste a imagem a preto e branco, como é que essa visão monocromática influi no teu trabalho?
JN: Decidi filmar no formato 4: 3, que é um formato desatualizado e, como dizes, o filme é a preto e branco. Trabalhando com o DOP Mário Melo Costa, tomámos esta decisão não para romantizar a obra, mas sim para criar uma imagem que retivesse referências a um determinado espaço ou tempo. As Carpintarias de São Lázaro, o espaço onde filmei o filme, quase parece uma instituição, ou um hospital abandonado, ou mesmo uma prisão, é um espaço contraditório, que se sente tanto desnudado como carregado de potencial. Em termos de cor é um espaço incrivelmente neutro, no sentido de que é completamente cinzento. Tivemos a sorte de filmar lá, pois era exatamente a atmosfera em que eu estava a imaginar o cenário. Também não queria que as personagens tivessem qualquer cor, não queria que os seus gestos estivessem carregados de emoção que pudesse ser exagerada pela cor. Usei o preto e branco para criar uma imagem de um espaço funcional onde dois corpos estão envolvidos numa troca de dependência e cuidado. Além disso, usei um processo de data-mosh - as falhas no vídeo - para ajudar a criar uma distorção da imagem. Queria que o próprio filme fosse confuso de alguma forma.
DB: “Fossil” poderia ser descrito como um filme poético, que se aproxima de uma espécie de trans-sensação com uma estrutura narrativa não linear. Como trabalhaste na montagem deste filme? E que tipo de estratégia de montagem te atrai mais? Segues as ideias da montagem como uma ferramenta de manipulação? Ou é mais o teu guia para o público?
JN: Por falar em edição, normalmente prefiro editar cerca de um mês depois de filmar, se possível, para me distanciar do material em bruto e para me ajudar a ter um entendimento mais claro da estrutura que quero criar. Depois das filmagens, quando voltei para a Austrália, comecei a editar “Fossil”. Senti que havia uma certa fragilidade, confusão e repetição que já estavam presentes no material em bruto, mas durante o processo de edição tentei trazer uma não linearidade à narração, para criar um espaço desorientador. Tentei encontrar uma estrutura para o filme criar um mundo onde pudesses viver uma posição semelhante à das personagens do filme.
DB: Há quanto tempo vives em Portugal?
JN: Cheguei a Portugal no final de 2012. Vim com uma bolsa para participar no Programa de Estudo Independente da Maumaus, que era um programa de um ano na altura. Em 2015 voltei para a Austrália para continuar a ensinar numa escola universitária de arte. Durante vários anos dividi o meu tempo entre a Tasmânia e Portugal, mas por agora estou sediado permanentemente em Portugal.
DB: Como artista, como vês a tua vida em Portugal?
JN: Não tenho a certeza. Escolhi viver em Lisboa porque adoro estar aqui e tenho a sorte de ter feito grandes amigos, alguns dos quais por acaso também são artistas, também conheci a minha parceira aqui e experimentei uma generosidade incrível e um apoio ao trabalho aqui, às vezes por meio de colaboração.
Eu sou da Tasmânia, que é uma pequena ilha no extremo sul da Austrália, uma ilha com uma população e cena artística pequenas. Viver e trabalhar num lugar como a Tasmânia pode ser sufocante. Lisboa também tem uma cena artística relativamente pequena, que por diferentes razões pode às vezes parecer um mundo fechado. Acho que uma das formas de sobreviver aqui é manter formas de ser activo fora de Portugal. É uma espécie de dilema de certa maneira.
DB: No que estás a trabalhar agora?
JN: Neste momento estou a desenvolver um novo filme apoiado por um programa de um workshop em Bruxelas chamado Sound Image Culture, que fará parte de uma exposição num museu na Austrália em 2023 - um bom projeto de longo prazo para me manter ocupado. Também estou a trabalhar numa encomenda para uma organização de som experimental na Western Australia, um convite para fazer um novo trabalho curto com um vocalista australiano, quase como um encontro às cegas, mas estamos a fazer isso através do Zoom. Haverá algumas coisas em Portugal no próximo ano ou assim. A minha parceira e eu também tivemos um bebé há um ano, por isso estou a aprender a ser pai.