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ZANELE MUHOLI![]() MAFALDA TEIXEIRA2025-04-28![]()
Inserida numa programação inclusiva, diversificada e atenta ao que acontece globalmente em termos geopolíticos, no seguimento de exposições como Ágora (2021) de Mark Bradford - que abordou questões contemporâneas cruciais como a epidemia da SIDA, a representação deturpada, o medo da identidade queer e homossexual e o racismo sistémico nos Estados Unidos – e Sementes Selvagens (2022) de Rivane Neuenschwander - que promovia uma reflexão crítica sobre o impacto do desmatamento da Amazónia para os povos indígenas num momento de tensão política e social no Brasil – a Fundação de Serralves-Museu de Arte Contemporânea apresenta a exposição Zanele Muholi, a primeira grande retrospetiva da sua obra em Portugal. [1] Artista e ativista social; pessoa negra; não-binária e sul-africana, nascida em Durban durante o regime do Apartheid, Zanele Muholi (1972) é umas das vozes contemporâneas mais ativas no combate ao preconceito e à descriminação racial e de género, lutas que corporiza numa prática artística que visibiliza comunidades marginalizadas na promoção de uma sociedade equitativa.
Entre composições, retratos, fotografias e escultura, abrangendo um corpo de trabalho que se estende desde o início da sua carreira artística até aos dias de hoje, a exposição antológica Zanele Muholi em Serralves, promove a inclusão e a representação justa da comunidade negra LGBTQIA+ no espaço museológico, reafirmando-o enquanto centro de discussão, de questionamento, de transformação e resistência. A este propósito, Muholi sublinha que: a História é muito, muito importante e os museus são lugares para as pessoas aprenderem e entenderem o que está a acontecer. Isto [a exposição] é apenas um pequeno pedaço do que partilhamos sobre o mundo, sobre os nossos ancestrais. Quebrando estereótipos e preconceitos a sua obra, qual manifesto visual, retrata a existência, a confiança e a resistência de corpos queer e trans em imagens que trazidas para o museu, desafiam a invisibilidade nos arquivos visuais de evidências históricas, despertando consciências. Organizada pela Tate Modern em colaboração com a Fundação de Serralves a mostra, com curadoria de Inês Grosso e Filipa Loureiro, foi adaptada ao contexto português num projeto radical de intervenção, transformação e desconstrução do espaço museológico, assinado pelo atelier de arquitetura Ventura Trindade, ao incluir novas imagens e a expansão de alguns núcleos de séries mais antigas e menos conhecidas como Being (2006-07) e Only Half of the Picture (2002-06). Marcando o momento de encontro com a obra de Muholi, a série Being incita à reflexão, à pausa e ao tempo do visitante na leitura de imagens que, a cores e a preto e branco, pedem para serem olhadas. Captando momentos de intimidade quotidiana, não de uma perspetiva voyeurista, mas como alguém que faz parte da comunidade LGBTQIA+, Zanele oferece-nos momentos de amor e cumplicidade numa série que, não obstante o gesto político, nos atrai pela celebração da afetividade e do toque de pele com pele entre casais do mesmo sexo. Da beleza poética e inocente de Being, somos conduzidos para série intimista Only Half the Picture, fotografias documentais a preto e branco de mulheres lésbicas, bissexuais e transgéneros negras vítimas de crimes de ódio, em exibição num espaço cuja luz natural lhe confere uma aura espiritual. Acompanhando a rampa que dá acesso ao segundo momento expositivo, apresenta-se a série Brave Beauties (2014-presente) composta por retratos de mulheres transgénero, antigas rainhas de beleza, que inspirados em fotografias editorias e capas de revistas de moda desafiam estereótipos. Da África do Sul para o mundo, em destaque na exposição, o projeto Faces&Phases, iniciado no ano 2000 e formalizado em 2006, impõem-se como arquivo vivo em constante crescimento. Retrato biográfico coletivo a p/b, a série homenageia e preserva as vidas de pessoas negras lésbicas, trans e não-conformes com o género. Entre artistas, ativistas, estudantes, desconhecidos e amigos de Muholi, são vários os retratos que, captados ao longo do tempo, traduzem rostos que falam sobre a progressão, o desenvolvimento e o crescimento de cada participante do projeto. Para a exposição no Museu de Serralves, à semelhança do que aconteceu noutros países [3], foram incluídos novos retratos realizados em colaboração com instituições locais (ILGA e Casa Odara) para que assim, de acordo com Muholi as pessoas LGBTQIA+, principalmente os negros, tenham uma razão para vir ao museu (...) a estratégia é garantir que todos sejam bem-vindos e que sintam que o museu é para todos, não só para alguns. À medida que observamos a instalação, confrontamo-nos com algumas lacunas, numa representação simbólica de pessoas que perdemos ao longo do caminho desde o início do projeto, seja por doença ou violência. Ocupando uma posição de destaque, observamos a fotografia horizontal na qual figura o retrato da ativista e poetisa Busi Sigasa (1981-2007), símbolo de Faces&Phases, que morreu com 25 anos, vítima de complicações associadas ao VIH/sida na sequência de uma violação corretiva. Próxima, aproveitando a fluidez da arquitetura que possibilita a circulação do visitante e o contacto com as diferentes séries, apresenta-se Queering in the Public Space, conjunto de fotografias em que elementos da comunidade negra queer foram fotografados em lugares que lhes eram vedados durante o apartheid. Desafiando normas e transgredindo ideias hétero-normativas de beleza branca, observamos imagens coloridas e vibrantes como as de Mellisa Mbambo, vencedora do concurso Miss Gay, fotografada na praia de Durban – antigo local de segregação- e Miss D’vine que, envergando acessórios de missangas sul-africanas, desconstrói a imagem de princesa zulu. Antecedendo o último núcleo dedicado à mostra, a extensa cronologia presente em Trancing Contexts, evidencia a história política da África do Sul com referências ao apartheid e à emergência do ativismo queer, que numa versão alargada e adaptada ao contexto nacional, inclui a história de Portugal, o nosso passado colonial e momentos cruciais das comunidades LGBTQIA+ no país. No último piso dedicado à exposição, somos recebidos pelo enorme mural fotográfico Ntozakhe II (2016) em que Zanele Muholi se autorretrata numa imagem icónica e poderosa que, inspirada pela Estátua da Liberdade e o seu aspecto político, sublinha tratar-se de um presente para a América, numa representação de liberdade e orgulho. Integrando a série Somnyama Ngonyama (2012-presente) que se estende pelas paredes da última sala, observamos o rosto de olhar desafiador e o corpo de Muholi que em diferentes poses, contextos e lugares, homenageia a sua ancestralidade, recorrendo ao eu como forma de articular as suas próprias experiências. Escurecendo artificialmente o tom da pele, aumentando contrastes, Muholi aborda de forma direta a política da negritude numa série que traduz a sua própria dor e experiências que vivenciou. Recorrendo a materiais e objetos do dia-a-dia para se autorretratar, Somnyama Ngonyama é também uma homenagem à sua mãe, que trabalhou como doméstica, apresentando-nos imagens cujos adereços – luvas; molas de roupa; esponjas de limpeza ou sacos plásticos – conectam-se com essa realidade, dignificando-a. A encerrar a exposição, numa extensão da prática artística de Muholi à escultura, observamos em diálogo com os autorretratos, a grandiosa peça em bronze Ncinda (2023) que quebrando tabus em torno da genitália feminina, representa a anatomia completa do clitóris, numa evocação da exploração do prazer e da liberdade sexual. No momento atual, em que políticas de inclusão, de género e de justiça racial têm sido ameaçadas, sobretudo nos EUA, a exposição Zanele Muholi no Museu de Serralves assume-se da maior importância. Desafiando o status quo, reafirmando a inclusão da comunidade negra LGBTQIA+ na História, a artista e ativista visual Zanele Muholi oferece-nos um arquivo visual e político que, sem cultivar o ódio e a violência, traduzem a cura e o recomeço de pessoas, cuja existência e presença no mundo merece ser visível.
Mafalda Teixeira
Notas [1] Depois da inauguração e passagem pela Tate Modern em 2020, a exposição Zanele Muholi já foi apresentada em Paris, Berlim, Copenhaga, Umeå, Reiquejavique, Valência e São Paulo. No Porto a mostra estará patente de 10 de abril até 12 de outubro de 2025. |