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O SUSURRO DE CATTELAN EM SERRALVES![]() MAFALDA TEIXEIRA2025-07-30![]()
Qual encenador ou realizador, Cattelan incita à descoberta de cada trabalho através de um percurso expositivo cuidadosamente desenhado e encenado. A escolha – pouco inocente - da Casa de Serralves enquanto palco da mostra revela-se essencial à leitura das obras, ao seu encontro e relação com o visitante, aspetos estes que se desvendam de modo imediato no piso de entrada onde se desenha um diálogo estreito – embora à distância – entre os diferentes trabalhos em exibição. Desafiando a perceção do público, lançando-o num limbo constante entre a surpresa e o desconforto, o cómico e o trágico, cada trabalho dialoga de forma única com o espaço e o olhar do espectador, redefinindo o ambiente envolvente. O impacto visual das instalações, já imbuídas de familiaridade, que compõem a retrospetiva adquirem uma nova dimensão no edifício Art Déco dos anos 1930, afirmando-se a arte da encenação enquanto core da mostra. Profundamente "habitada" por Cattelan, Sussurro revela um entendimento e envolvimento quase teatral e cinematográfico do artista com o espaço, bem como o potencial performático na interação do público com as obras. Observamo-lo nos seus retratos diminutos, autênticas caricaturas, ora fixas à parede ora à espreita sentadas em cornijas; nas grandiosas instalações que se suspendem desde o tecto e nas esculturas que repousam no chão, lançando-nos num jogo de escalas, de diferentes perspetivas e pontos de vista. A partir de uma seleção estrita de vinte e seis obras, a retrospetiva assume-se como uma caminhada pela carreira do artista. Segundo uma organização temática, os trabalhos revelam o cerne da sua prática artística: a relação e o fascínio com a História; a noção de auto-retrato; o desejo de desaparecimento e a relação conturbada com o poder dos sistemas de crença. A este propósito destacamos a importância da religião, do catolicismo e da sua iconografia tão presentes no trabalho do artista, conforme nos testemunha a assinatura fluorescente – Catttelan – que nos recebe à entrada da exposição, à qual se adicionou um terceiro T, numa alusão às três cruzes do Calvário. O peso da História do século XX introduz-nos na exposição com a obra Novecento (1997), grandioso cavalo de pernas alongadas que paira submisso e derrotado no átrio de entrada da Casa de Serralves. A imagem forte e dramática do animal inanimado e o seu movimento descente tornam inevitável a associação ao filme homónimo de Bertolucci, à evocação da ascensão do fascismo e à substituição da economia agrícola pela industrialização enquanto marcas e cicatrizes da história que pesam sobre o corpo do equídeo. Imagem de derrota e de desastre que se impõe como prenúncio a Sunday (2024) e All (2007). A primeira, conjunto de painéis de aço banhados a ouro e cravejados por buracos de balas, que revestem uma parede, impõe-se como ornamento de desespero e violência, cuja superfície brilhante e reflexiva nos revela uma imagem distorcida do mundo, ao mesmo tempo que reflete, num diálogo bem conseguido, os nove corpos incógnitos em mármore que se estendem no chão. A importância e o fascínio da religião na prática artística de Cattelan é um dos aspetos que alimenta as reflexões do artista, bem como a controvérsia em torno de algumas das suas obras mais polémicas. Numa relação interessante e de debate com a educação católica, somos surpreendidos na sala de jantar por uma reprodução em tamanho reduzido da Capela Sistina. Ícone de poder, onde os valores do catolicismo e do cristianismo se incorporam, a Capela Sistina de Cattelan - à escala de 1:6 - reequilibra e aproxima a relação entre o divino e o humano. A relação entre o artista e o Vaticano é-nos também testemunhada pela grandiosa pintura mural Father, cuja versão original revestiu a fachada do Pavilhão da Santa Sé na Bienal de Veneza de 2024. Representando a p/b um par de pés sujos e feridos - os do próprio Cattelan – o mural afirma-se na Casa de Serralves enquanto retrato da morte e da relação com o luto ao evocar os pés de Cristo da pintura de Andrea Mantegna (1431-1506), Lamentação sobre o Cristo Morto (c. 1483). Do cariz poético e melancólico da imagem da morte em Father, deixamo-nos surpreender na escadaria pela agressividade e violência do cavalo empalhado, Sem título (2007), que no seu salto atravessa a arquitetura. Se tradicionalmente, o animal simboliza poder, heroísmo e masculinidade, Cattelan subverte essa leitura ao apresentá-lo numa tentativa de fuga dominado pelo medo, dor e desespero numa imagem que nos remete para a expressão “dar com a cabeça na parede”. Em oposição ao tradicional troféu de caça, Cattelan oferece-nos a sua própria versão marcada pela ausência da cabeça do animal, numa instalação que é também um estudo sobre escultura moderna e equilíbrio no espaço.
Not Afraid of Love, Maurizio Cattelan, 2000. © Ricardo Raminhos / cortesia Fundação de Serralves
No piso superior, o humor e o insólito cruzam-se em Not Afraid of Love (2000), escultura de um elefante que, qual fantasma, procura esconder o seu tamanho, peso e presença sob um enorme lençol branco. Subvertendo a força e poder do animal em vulnerabilidade, apresentando-nos uma situação difícil de ignorar, Cattelan joga com a expressão popular "um elefante na sala” e com a arte do disfarce. A arte da encenação, enquanto estratégia utilizada pelo artista, atinge o seu auge com a obra Charlie don’t surf (1997), que colocada ao fundo de uma longa sala revela o entendimento de Cattelan de que cada dimensão do espaço pertence à experiência da obra. Sentada de costas para o visitante e de frente para uma janela, aproximamo-nos da criança que julgamos estar a estudar para nos confrontarmos, num jogo ilusório, com a imagem de dor e tortura das suas mãos bloqueadas por lápis. A importância da infância na prática artística de Cattelan, a sua capacidade de envelhecer e de crescer sem se tornar um adulto, conforme nos revelam as escalas diminutas dos seus autorretratos, é-nos revelada em Sem título (2003), escultura em cera de um menino que, sentado numa balaustrada e voltado para o átrio de entrada, toca tambor de forma aleatória numa referência à criança do filme de 1979 Le Tambour, que testemunhando o rumo da história durante a Segunda Guerra Mundial e a ascensão do fascismo recusa-se a tornar adulto, tamborilando freneticamente.
Sem título, de Maurizio Cattelan, 2003. © Ricardo Raminhos / cortesia Fundação de Serralves
O questionamento do catolicismo ao longo da História é abordado em La Nona Ora (1999), escultura hiper-realista de João Paulo II atingido por um meteorito. Deitado sobre uma alcatifa vermelha e envergando as vestes papais, a carismática e perturbadora escultura em tamanho real destaca-se pela expressão facial, pelo movimento do corpo - cujo tronco permanece erguido como se levitasse - e pelas mãos que se agarram à férula papal num ato de resistência à natureza que sobrecarrega o espírito, numa imagem que o curador afirma ser o oposto de blasfémia, antes de dignidade de um homem com integridade moral que carrega o peso do mundo.
You, Maurizio Cattelan, 2021. © nvstudio / cortesia Fundação de Serralves
A presença do autorretrato na obra de Maurizio, a sua relação com a morte e a morte autoinfligida cruzam-se em You (2021). Com os pés a flutuarem no vazio, pendendo do tecto da casa de banho, o manequim em cera elegantemente vestido, com o rosto do artista e de sorriso irónico, afirma-se enquanto autorretrato sombrio e provocador, no qual também existe vida com a presença de um ramo de flores frescas, provenientes do jardim do parque, que o defunto segura na mão. A obsessão com a morte e a religião estão também presentes em Sem título (2007), crucificação feminina resultante da reprodução escultural de uma fotografia de 1977 de Francesca Woodman (1958-1981) que, num autorretrato, se apresenta pendurada na arquitrave de uma porta envergando uma túnica branca.
Sem título, Maurizio Cattelan, 2007. © nvstudio / cortesia Fundação de Serralves
Criador de imagens com um forte impacto visual, a ironia do artista e o seu caráter provocatório manifestam-se nas surpreendentes interações que estabelece entre o público e as obras. A este propósito destacamos na capela Him (2001), cuja figura do menino ajoelhado frente ao altar nos impele ao seu encontro. Ao aproximarmo-nos da criança, surpreendemo-nos com o rosto de Hitler e o seu olhar vazio fixo no horizonte. Entre a raiva, compaixão e tristeza, a estratégia estética de Him recorda-nos que o inimaginável nunca está longe. Estendendo-se a mostra ao parque de Serralves, é em frente à casa que se ergue L.O.V.E. (2024), réplica em madeira do original em mármore que encontramos próxima da bolsa de valores italiana, em Milão. Apresentando-se como um cenário, uma fachada, a grandiosa escultura da mão com o dedo do meio levantado representa, para além do gesto, um pedestal numa alusão à escultura romana clássica. No lago de Serralves, a mentira, o suicídio e a relação entre as crianças e a autoridade paterna são explorados em Daddy Daddy (2008), o Pinóquio que flutua ‘afogado’. No roseiral November (2024), escultura de pendor melancólico e de denúncia social desperta a atenção dos visitantes. Qual fonte inusitada em mármore branco, como que evocando Manneken Pis, observamos a figura de um morador de rua que, deitado num banco de jardim, urina sobre si próprio ao mesmo tempo que esconde o rosto com a mão. Monumento aos marginalizados, a escultura trata-se igualmente de uma comovedora homenagem do artista a um seu amigo e assistente falecido, cujo rosto imortaliza na presente obra. Não poderíamos concluir a nossa visita por Sussurro sem mencionarmos Comedian (2019), a famosa banana colada à parede com fita adesiva, obra que constitui uma rutura na prática artística de Maurizio Cattelan. Ocupando um lugar de destaque no segundo piso da casa, Comedian afirma-se enquanto acontecimento global de grande impacto na consciência cultural contemporânea. Desde o momento em que foi exibido pela primeira vez em 2019, na Miami Art Fair, à sua licitação por milhões de euros em 2024, a obra continua a ser comentada, tendo contribuído para esbater as barreiras entre a arte e a comunicação. Segundo Philippe Vergne, muito mais do que uma piada, Comedian é um autorretrato. Concluindo o curador que com esta obra a noção de ícone entrou na cultura digital, o mundo da inflação absoluta de imagens que duram quinze segundos. É um meme, e por isso, estou convencido de que permanecerá. É a Mona Lisa da nossa era. Controverso, polémico, disruptivo e irónico, apelidado de enfant terrible da arte contemporânea, Cattelan é sobretudo um fazedor de imagens, de ícones que questionam os códigos da sociedade: religião, pobreza, morte e guerra. Personagem de si mesmo, inspirado pela tradição italiana da commedia dell’arte, Maurizio Cattelan serve-se do humor, da ironia e da provocação para nos revelar em Sussurro a sua visão sombria do mundo numa exposição onde, segundo o curador, nada é inocente, nem mesmo o visitante.
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