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Tudo vem de tudo, tudo resulta de tudo e tudo se pode transformar em tudo, porque o que existe nos seus elementos está composto por esses elementos. [1]  


 
Maria José Oliveira acredita na transformação cíclica de todos os elementos e tem a capacidade de fazer ressurgir objectos e sentidos que engendram inesperados cruzamentos entre universos. O seu resgatar constante das coisas imperceptíveis, das coisas sem valor, ou das coisas que acontecem contra a nossa vontade, lembra-nos que a supressão de qualquer ser, objecto, ou resíduo, por mais superficial ou inútil que pareça, destrói as continuidades entre vários universos. É sobre este resgate transformador do quase invisível, que se constrói o maravilhamento destes “Universos em Viagem”. 

Os acontecimentos que conduzem a estas descobertas são acidentais e aleatórios,  mas ao contrário de muitos outros acidentes que a história procura concertar e apagar, tanto nos museus como nas oficinas, aqui o acidente é o momento que dá sentido à descoberta. O impulso inicial para esta exposição foi a destruição abusiva, ou acidental, de um molde de gesso mostrado em Viseu (2003). A manipulação descuidada de um visitante fragmentou este molde, condenando-o ao limbo das obras de arte destruídas. O contentor que simbolizava a “eterna” passagem de algumas formas a porcelana, ficara inutilizado, reduzido a cacos, mas passados vinte anos, presenteou-nos com uma nova e inesperada possibilidade de trabalho.  

Os fragmentos de cerâmica são por vezes os únicos elementos através dos quais temos acesso a civilizações históricas, oferecendo-nos valiosas informações sobre aqueles que as construíram e usaram. Por vezes pequenos fragmentos são já grandes descobertas. Maria José Oliveira não resiste a acelerar a arqueologia. Em Angra do Heroísmo, nos Açores, transferiu para uma capela desconsagrada os destroços das peças de barro cozidas em fornos de chão, depois de um camião lhes ter, acidentalmente, passado por cima. A luz que incidiu naquele círculo acidentado de chão conferiu-lhe uma força impensável, uma “geometria sagrada”. E as suas criações admitem sempre novos arranjos, assumindo as desmantelações como necessárias para que novos universos possam nascer dos seus fragmentos. [2]  

Foi a irreprimível curiosidade em ultrapassar o previsível, mesmo que isso implique aceitar um acidente, que engendrou esta exposição. Composta por objectos reactivados, uns colhidos directamente no lixo, outros trazidos por amigos e alguns deslocados de memórias pessoais distantes, a exposição celebra-os enquanto dispositivos portadores de “Universos em Viagem”.  
 

 

Expôr o acidente 

A vontade de desembrulhar o molde de gesso que deu origem a “Lembrança para Andy Warhol” (1995), depois deste ter sido retirado do espectro do olhar, foi o início deste trabalho. Composta por nove formas de latas de bebidas em porcelana branca, esta obra encena a passagem de um vasilhame de alumínio na sua tridimensionalidade cilíndrica, standard, pristina e monótona, à rica e infinita variedade de formas que o seu esmagamento proporciona. Sem deixar de evocar o fascínio pela imaculada transformação industrial dos materiais da pop art, as porcelanas amachucadas são já do domínio da reciclagem. O acidente enriquece de modo desordenado e aleatório a multiplicidade de formas que uma simples lata pode tomar. O molde em gesso, ou negativo que deu origem às formas das latas em porcelana, é, na sua leitura exterior, um objecto que literalmente esconde as peças que podem vir a surgir do interior. As suas formas interiores são vazias. E os furos que dão acesso à entrada da pasta de porcelana líquida e permitem a magia da repetição das peças, transformaram-se na via destrutiva de uma curiosidade não resolvida. Este acidente, que tem a sua própria história, lembra-nos como o presente está assente no caos da matéria arqueológica e já pouco perceptível do passado. Mas também, que a história não está fundamentada em científicas causas materiais, mas depende de um sem número de acasos e acidentes. [3] Continuar a questionar as suas narrativas e a expor o acidente, em vez de o ocultar, proporciona outras leituras.  

Os objectos e materiais têm características próprias até serem atirados para a amalgama que decreta o seu fim. Maria José Oliveira resgata-os desse fim e trabalha recorrentemente sobre a sua inversão cíclica. A estratificação e recomposição da história são ambas noções com que se debate. Em “História da Traça” observa a fisionomia das traças presas em armadilhas e investiga a sua fisionomia em diferentes ecossistemas para nos presentear com a simulação de um animal agigantado existente nos trópicos; esta história da traça celebra a sua capacidade cortante na roupa de melhor qualidade e emoldura os possíveis furos deixados pela traça num lenço de seda, como se se tratassem de joias; as metamorfoses do animal e a sua extrema habilidade para perfurar os tecidos são evocadas como uma arte. Um resto de pincel de caiar, com vários pregos de pontas cortantes, foi associado ao conjunto para representar a voracidade de um animal aparentemente frágil, mas com a natural tecnologia e alquimia que lhe permite transformar-se numa agulha de duas pontas (objecto ovóide), perfurando o tecido sem nele ficar preso. Por último, um espelho propositadamente oxidado, devolve-nos um retrato traçado. Esse espelho e as marcas deixadas pelo labor da traça remetem para as memórias da artista em criança, quando numa máquina de costura picotava papéis. São lembranças de quem presenciou as metamorfoses levadas a cabo na casa de costura da sua mãe, da imaginação do primeiro traço ao último alinhavo num tecido já transformado. O gesto que fura e corta é celebrado como um gesto fundador.  

Quer o círculo da geometria sagrada gerada pelo acidente com as cerâmicas em Angra do Heroísmo, – o círculo fundador do molde de gesso cujo enigma o condenou à destruição –, quer os ovóides cortantes, mas fundadores da traça, são símbolos da transformação cíclica com que Maria José Oliveira opera. Em “Umbigo”, ponto iniciático da forma e do seu conteúdo, a artista cria duas formas circulares picotadas pela agulha da máquina de costura, uma interior e a outra exterior, uma cheia e a outra vazia; no umbigo, o início coincide com o fim, um ser desenvolve-se no vazio de outro, celebrando a copula como a mistura do mundo e a reprodução, como o mais aleatório e imprevisível dos actos. Como em “Sinais de Fogo” (2010), superfície de papel queimado que se assemelha formalmente a um tecido comido pela traça, Maria José Oliveira afronta a destruição e o fim, transformando o vazio em forma e força. 

É explícita a atenção que Maria José Oliveira presta a tudo o que se vai transformando, independentemente da respectiva conotação ou categoria de conhecimento.  Por isso aguardou que os bibliófagos danificassem o livro com reproduções de gravuras, oferecido pelo seu pai, afirmando a transitoriedade do processo: “...o tempo que isto demorou a fazer!”. O ininterrupto percurso dos materiais, que nos é mostrado numa página de um livro com as figuras de Adão e Eva, aproxima a vida da morte, evidenciando o ciclo de sedimentação de que fazemos parte. Os objectos arcaicos têm essa força de ter sobrevivido a um tempo que já não existe, mas cuidamos em transportar. Nesta peça, é toda a escala das transformações que nos ultrapassam, presa pelo elo das duas figuras originais, que é exposto. 
 

 

Reorganizar a estrutura dos objectos 

Uma das afirmações basilares de Maria José Oliveira é a de que “todos os materiais são bons; é preciso é não ter medo”. Argila, tela crua, cartão, papel, pão, plástico, ferro ou borracha, materiais e objectos vários, em todos celebra a respectiva essência e coloca algo de si. A sua cuidada e indiscriminada capacidade de experienciar torna-a capaz de evocar inventários de relações improváveis e aparentemente indignas de nota, mas o que faz é comunicado através dos objectos. Os seus actos são silenciosos. Interessada no transporte mágico das alquimias, na transformação dos objectos e dos seus usos, na composição e decomposição dos materiais, nas passagens rituais da memória, cruza no campo da estética e sob o testemunho de frágeis impressões, infinitas famílias e universos.  

O universo instrumental desta artista é composto por materiais heteróclitos, não definidos pela aparente especificidade de um qualquer projecto, mas antes reaproveitados do seu entorno, aceitando os seus desvios e acidentes, com o intuito de renovar e enriquecer a matéria que parece já ter cumprido a respectiva função. Embalagens de cartão industrial reciclado, passam de contentores descartáveis a construções simbólicas que incorporam os vestígios de rituais, indispensáveis para a constituição de memórias. Assim são as “construções simbólicas” de Maria José Oliveira, usando elementos tão concretos como pães, óculos escuros, molas de um colchão, espelhos, o copo das tintas utilizado pelo pai, ou o frasco de terebentina como o que bebeu em criança e que até hoje lhe desperta a sensualidade. As oito construções simbólicas, tal como “a coluna vertebral ou o princípio do mundo” (2020) que aqui são mostradas, são compostas por aglomerados de objectos que não se reduzem ao seu conceito abstracto nem sequer a si mesmos. Tal como na definição de bricoleur de Lévi-Strauss, a artista “interroga todos estes objectos heteróclitos que constituem o seu tesouro, a fim de compreender o que cada um deles poderia significar” e “contribuindo para definir um conjunto a ser realizado, que no final será diferente do conjunto instrumental apenas pela disposição interna das partes”. [4] O seu significado reside numa história precedente, mas difere desta através das adaptações que sofreu para servir outros usos.  

À medida que a exposição “Universos em Viagem” foi tomando forma, as construções simbólicas tiveram diferentes composições e nomes, sofrendo ajustes e reorganizações, entre os elementos da experiência e herança pessoal de Maria José Oliveira e aqueles encontrados abandonados na rua ou trazidos por amigos, mas sempre com a carga de se relacionarem com algumas memórias ou afetos. As suas “construções simbólicas” são simultaneamente fragmentos e universos que se transformam pela via da viagem: transportam alguma parte da sua vida, sendo sempre metáforas. É a história própria dos acidentes e a leitura da história como a construção de enredos que resultam de acasos que permite criar construções simbólicas a partir de objectos concretos.  

O bricoleur começa por recolher e conservar elementos díspares “em função do princípio de que isso pode vir a servir”. A sua regra do jogo, como explica Claude Lévi-Strauss em “O Pensamento Selvagem”, é arranjar-se com os “meios-limites”, pois o seu projecto “é o resultado contingente de todas as oportunidades que se apresentam para renovar e enriquecer o estoque ou para mantê-lo com os resíduos de construção e destruição anteriores”. O bricoleur tem a capacidade de cruzar universos, combinar imagens e conceitos, tal como na reflexão mítica ou na criação de signos: jogar com a capacidade de representar algo diferente de si próprio, a meio caminho entre significado e significante, entre imagem e conceito.  

Os seus ritos oferecem-se como valor principal, obrigando a desconstruir a percepção instalada dos materiais para aceder à constituição das memórias sensíveis. Para lá do presente visível, os ritos não são menos reais que os objectos. Por isso Maria José Oliveira se interessa por objectos semelhantes que transportam diferentes cargas, como as tampas e pegas das cerâmicas de Cabinda, povo em que as panelas assumem especiais formas (e significados) para diferentes pessoas, não sendo usual a partilha das mesmas por pessoas com diferentes histórias de vida. Todas as pegas e as tampas têm o mesmo uso, mas tal como os alimentos confeccionados, transportam as marcas e vivências do seu operador. Os objectos ou materiais cuja valência tem um determinado fim, são chamados para mediar outros significados. Todos aqueles que presenteiam a artista com “tesouros” – que mais ninguém sabe como reactivar – reconhecem, em ambas partes, uma outra possibilidade de sobrevivência. Esse diálogo produz uma reorganização da estrutura dos objectos e atribui-lhes uma força equivalente à dos objectos-rituais.  

O interesse desta artista pelo arcaísmo conduz à instrumentalidade do gesto. Exemplos como Transformações: “experiências para estudo de várias formas volumétricas em barro cru transformadas só por pancadas com diferentes partes da mão e dedos”, Gavetas de Arquivo: “amostras de temperatura de cozedura de vários tipos de barro, amostras de barro crú e fósseis e bivalves em barro cozido”, ou Construção de Casa (1994): “memória cultural e poética das construções ainda usadas no século XVIII na zona costeira a Sul do Tejo, em que os fósseis e bivalves eram apanhados nos areais das praias e trazidos para as construções de habitações”, descrevem aquele que trabalha com suas mãos sem um plano preconcebido. Esse encontro com um sentido na linguagem própria dos materiais e em determinado tipo de operações, é definido pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss através do conceito de instrumentalidade e associado ao pensamento mítico (bricolage intelectual).  
 

 

Viagem entre fragmentos e universos 

A imagem do convite desta exposição, a da colher no bolso do casaco, permite-nos viajar até ao gesto primordial e já inacessível de levarmos, pela primeira vez, o alimento à boca. Se o fundamento da imagem remonta aos tempos medievais em que os viajantes andavam com os seus próprios talheres, pendurados à cintura, o seu gesto tem a simbologia de um ritual iniciático. A colher é um dos instrumentos de eleição de Maria José Oliveira e símbolo transversal do alimento de todas as viagens; literalmente forma de conduzir o mundo à boca. 

O arquivo de gestos de Maria José Oliveira cuida da memória e devolve-nos a existência humana. A colher deixa de ser o objecto normalizado e invisível para se transformar em veículo secular que medeia entre a natureza, a tecnologia e a alquimia da viagem da comida na boca; que atravessa todos os sentidos e transporta um infinito cúmulo de história, repleta de memórias de todos os tempos e lugares. No seu pensamento está a essencialidade do gesto nutricional e as cargas simbólicas de objectos formalmente semelhantes. É por ser um objecto universal que a colher acumula diferentes cargas culturais: o instrumento que define o que comemos, como comemos e como nos sentimos acerca do que comemos, uma necessidade universal que não deixa de nos identificar de modos muito particulares e individualizados; definir a forma de satisfazer esta necessidade básica varia com os espaços e os tempos, acompanhando paralelamente todas as nossas idades numa só vida, que evolui e se apura enquanto se degrada. De diferentes formas, um combustível, um hábito e um prazer, todo o alimento, seja o da sobrevivência, do conforto ou do intelecto, é mais surpreendente quanto mais complexamente for experienciado: “só não vê quem não quer”. 
 

 

 

Paula Parente Pinto
Licenciada em Artes Plásticas: Escultura, Faculdade de Belas Artes do Porto (1998); Mestrado em Arquitectura e Cultura Urbana, Universidade Politécnica da Catalunha, Barcelona, Espanha (2004); Doutoramento em Estudos Visuais e Culturais, Universidade de Rochester, NY, USA (2016). Tem trabalhado em Investigação histórica e como curadora independente em inúmeras exposições.

 


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Notas


[1] Leonardo Da Vinci, “El Universo”, in Cuadernos de notas, Madrid: M.E. Editores, S. L., p.195 
[2] Ver referência a “universos mitológicos” de Franz Boas, em Lévi-Strauss, “A ciência do concreto”, em O Pensamento Selvagem, São Paulo: Papirus Editora, 1989, p.36. 
[3] Edward Eigen, “On Accident”, in Log, Nº5 (Spring/Summer 2005), pp.133-138. 
[4] Lévi-Strauss, “A ciência do concreto”, em O Pensamento Selvagem, São Paulo: Papirus Editora, 1989, p.34. 

 

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Maria José Oliveira. Universos em Viagem

12 novembro a 31 dezembro 2022
CAAA Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura

Curadoria: Paula Parente Pinto