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RENCONTRES D’ARLES 2025: ENCONTRO COM O SUL GLOBALLEONOR VEIGA2025-10-10![]()
Todos os anos, o Rencontres d’Arles – o festival que começou em 1970, quando a fotografia foi reconsiderada, reavaliada, e desde então consagrada um meio artístico – impõe-se como o certame mais antigo do mundo deste medium, fazendo dele protagonista e simultaneamente influenciador das tendências da fotografia contemporânea. [1] No entanto, o festival mostra sempre fotografia moderna, alicerçando a sua importância através de retrospectivas de grandes mestres e ícones da fotografia. Em 2025, destacam-se as exposições da vida e obra do americano Louis Stettner (1922-2016) no Espaço Van Gogh, [2] da italiana Letizia Battaglia (1935-2022) na igreja de Saint Martin d’Arles, [3] e do ícone de moda Yves Saint Laurent (1936-2008) no Mécanique Générale. [4] (FIG.1) A presença de vários protagonistas do Sul Global é, também ela, de grande relevância para esta edição. Neste contexto, o Brasil surge como grande protagonista, devido às celebrações do ano Brasil-França 2025, que os encontros souberam captar através de várias exposições. Entre elas, destaca-se Construir, Desconstruir, Reconstruir – uma grande exposição do grupo paulista Foto Cine Clube Bandeirante, fundado em 1939 e que nos transporta para o universo do Concretismo brasileiro e dos seus vários protagonistas –, e Retratistas do Morro, que nos faz penetrar na intimidade da vida da favela mais antiga do país, a de Belo Horizonte. Além destas, a obra de Claudia Andujar (1931-), sobrevivente do Holocausto e uma das mais importantes fotógrafas brasileiras, é também de importância maior. Tendo atingido fama internacional devido ao seu trabalho junto do povo indígena Yanomami, Andujar mexe com minorias e tabus de toda a espécie. O seu perfil de activista é bem retratado através da sua longa contribuição visual para a Realidade Magazine, quando a sua fotografia complementava a escrita de Jorge Andrade.
O Sul Global concretiza-se através dos temas explorados – a presença indígena é de salientar na exposição On Country: Photography from Australia, imagem de cartaz do evento (FIG.2). Aqui, apercebemo-nos de que ancestralidade e discursos indígenas são um combate. Nas palavras do Director do Festival Christoph Wiesner, “a fotografia torna-se uma ferramenta para a transmissão e resiliência em face da desordem climática e política que ameaça esta herança cultural”. [5] A mostra colectiva explora a profunda relação que os Primeiros Povos têm com a sua terra, e cobre vários temas, como conflito com colonos, expressões e música aborígenes e os mais recentes efeitos da globalização e da crise climática junto destas populações. A presença de minorias sexuais, apesar de aparecer em apontamentos, é grande. De forma ténue, encontra-se em várias das mostras – caso de Claudia Andujar e Letizia Battaglia – e de forma total na mostra de Brandon Gerara (1996-), um artista que vive e trabalha no arquipélago francês das Ilhas Reunião. O discurso das regiões ultramarinas é por ele trabalhado a partir da sua condição de artista não-binário, por um lado, e produto multicultural, por outro. O seu trabalho pretende transformar traumas coloniais em material artístico emancipatório. De discurso estruturado, Gerara utiliza palavras fortes, como orientalismo e eurocentrismo, e reclama, em crioulo, a cultura ancestral e a sua tolerância inerente, enquanto rejeita a globalização do pensamento.
A presença do Brasil enquanto centro sente-se como uma proposta de “diplomacia cultural”. Este conceito americano advoga “desenvolver respeito pelos outros e pelas suas formas de pensar... Deixem haver diálogo”. [7] O diálogo entre os dois países é exactamente a motivação para o ano 2025. No entanto, em França, dá-se protagonismo às ‘Imagens Indóceis’, título elucidativo da programação. O Brasil é apresentado em várias frentes: desde a elite urbana do Foto Cine Clube Bandeirante (FCBB), passando pela favela de Belo Horizonte, entre 1970 e 1990, através de uma selecção do arquivo de 250.000 negativos da autoria dos fotógrafos João Mendes e Afonso Pimenta, ao olhar militante dos primeiros anos de actividade de Claudia Andujar. Esta diversidade de registos – o preto e branco da primeira, a cor da segunda e o mistério da terceira – permite uma leitura da diversidade brasileira. E mostra como diferentes protagonistas – artistas da metrópole paulista, fotógrafos de Belo Horizonte e uma mulher naturalizada, vinda da Europa pós-conflito mundial – revelam visões do país. Se os primeiros permitem imaginar um país sofisticado e moderno, os segundos mostram a cultura popular através das crianças e jovens, enquanto a terceira praticamente esconde os sujeitos do seu trabalho. Há vários ‘Brasis’, captados de diferentes pontos de vista. (FIG. 3, 4, 5)
A retrospectiva de Louis Stettner faz a ponte entre dois continentes: o americano e o europeu. Conhecido por advogar a fotografia humanista praticada em França, Stettner comissariou em 1947 uma exposição de fotografia francesa em Nova Iorque, que, por ser considerada subversiva, foi proibida. Quando finalmente abriu em 1948, foi um tremendo sucesso. A sua vida ficou também marcada pela investigação do FBI entre 1969 e 1977, facto que não o demoveu – “he didn’t care” –, tendo-se deslocado à URSS e a Cuba. A sua mensagem para as futuras gerações de artistas, a quem diz para se entregarem inteiramente à sua mensagem, mostra o seu activismo e um espírito eternamente jovem, de alguém para quem a vida é tudo. Stettner começou a sua carreira como fotógrafo de guerra, tendo estado em Hiroshima, em 1945, depois do rebentamento da bomba nuclear. No mesmo ano, esteve em Luzon, nas Filipinas. A partir de então retratou a vida americana em “não-lugares” [8] como o metro de Nova Iorque ou a estação de Penn. Nos anos 1950 viaja aos Países Baixos, México e à ilha de Ibiza. Nos anos 1970, mostra uma mudança na vida contemporânea das cidades: o olhar entre transeuntes já não se cruza e sente-se a solidão de cada indivíduo. Stettner morreu em Saint-Ouen, em França, onde viveu uma grande parte da sua vida. (FIG. 6)
É interessante pensar como muitas mulheres se têm dedicado a este medium desde os anos 1970, enquanto a fotografia se afirmava como meio artístico per se. O interesse das mulheres à fotografia pode significar um espaço que ainda lhes era possível preencher devido à possibilidade de definir regras, ao mesmo tempo que servia para comunicar as mudanças sociais que então se desenrolavam um pouco por todo o mundo. Se as mulheres foram objecto de interesse das câmaras até aos anos 1950, a partir dos anos 1960 a sua utilização pelos movimentos de libertação feminina é marcante. Nos anos 1960, a fotografia, quando usada por mulheres, permite olhares íntimos – como no caso de Letizia Battaglia, que, por ser mulher e, portanto, “não considerada uma ameaça”, [9] acedeu aos interiores das casas dos habitantes de Palermo – ou olhares cruzados e actualizados, – como no caso do trabalho da americana Berenice Abbott (1898-1991). O seu projecto US Route 1, entre o Maine e a Flórida nas décadas 1950-1970 foi reconsiderado e retrabalhado pela dupla Anna Fox e Karen Knorr entre 2015 e 2025. Este diálogo entre diferentes gerações mostra como através de arquivos se podem revelar as profundas mutações vividas pela sociedade (sejam elas económicas, migratórias ou identitárias) e permitem uma visão mais alargada da vida. (FIG. 7)
Há ainda uma grande prevalência da experimentação nesta mostra. Os encontros de fotografia de Arles são, por isso também, um laboratório de tendências. Neste ano, destaca-se a fotografia translúcida de Raphaëlle Peria, vencedora do 2025 BMW Art Makers. A técnica que utiliza cruza fotografia, serigrafia e gravura, resultando em objectos tridimensionais que comunicam com os teatros de sombras indonésios. Ouve-se a artista explicar no vídeo que acompanha a instalação: “o artista torna-se artesão”. (FIG. 8) Igualmente novo é o registo monumental, forte e sofisticado de Carine Krecké, vencedora do Prémio Luxembourg Photo Award. A série Loosing North é uma instalação que ocupa toda a Chapelle de Charité, e revela como, entre 2018 e 2025, a artista obsessivamente se dedicou a recolher imagens satélite no Google Earth da guerra na Síria. Entre outras coisas, revela a destruição de Damasco, de testemunhos individuais de protagonistas (que encontrou online), como os de Prophet e Hezbii, e como o ditador Assad, nos sucessivos ataques a civis, provavelmente os eliminou. A hiper-violência deste trabalho de seis anos de morte e de terror, apesar de apresentada de forma fragmentada, é muito bem estruturada e as narrativas são sensoriais. A artista lembra que este material está disponível online de forma gratuita, como que convidando a novos relatos. (Fig. 9)
Notas [1] Ver website Les Rencontres d'Arles 2025, consultado a 28 de Setembro de 2025.
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* Legendas completas
Fig.1 Igreja de Saint Martin d’Arles Fig.2 Cartaz da exposição Fig.3 José Yalenti, exposição Construction Deconstruction Reconstruction. Brazilian Modernist Photography (1939–1964) Fig.4 Afonso Pimenta, exposição Retratistas do Morro – Reflections from Serra Community, Belo Horizonte (1970–1990) Fig.5 Claudia Andujar, exposição In the Place of the Other Fig.6 Louis Stettner, exposição The World of Louis Stettner (1922–2016) Fig.7a Berenice Abbott, Anna Fox and Karen Knorr, exposição U.S. Route 1 Fig.7b Anna Fox and Karen Knorr Fig.8 Raphaëlle Peria e Fanny Robin, exposição 2024 BMW ART MAKERS Program Winners, Crossing the Missing Fragment Fig.9 Carine Krecké, exposição Losing North |