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O ESTADO DA ARTE


Sem Título (FCM #4), 1975. © Julia Ventura.


Cortesia Culturgest, © Vera Marmelo.


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© Júlia Ventura, 1977.

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MIGUEL PINTO

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Se Ana Hatherly procurou A Mão Inteligente, e Helena Almeida, a mão criadora, também cognoscente, poderíamos dizer que Júlia Ventura se interessa pela mão que dança, teatraliza, representa. Nas inúmeras analogias entre o cérebro e estas extremidades que tateiam, apreendem e possibilitam a criação (sempre sujeitas às suas especificas fragilidades, em tensão com o que as sinapses lhes ditam e, por isso, construindo uma outra coisa, que é real nas suas imperfeições e, por isso, foge à idealização que a gerou) que vêm povoando, regularmente, a(s) história(s) da produção artística ocidental, Júlia Ventura quer indiciar não a uma mão-cérebro, mas a uma mão-rosto. A superfície e a aparência, em troco da interioridade e da intelectualização. A impressão simulando a expressão.

Se as mãos são um elemento recorrente em várias salas desta exposição (com a terceira dedicada, exclusivamente, à iconografia deste elemento nestes primeiros anos do trabalho de Júlia Ventura) a chave a que nos indiciam revela-se, apenas, na segunda fase/corredor desta retrospetiva, apontando-se à primeira fotografia de Modèles Inimitables d’Intuitions Possibles, na qual encontramos o rosto, as mãos, o início do tronco de quem identificamos ser Júlia Ventura, numa pose de mimo, que parece ter revelado o rosto sob a máscara: uma face triste a sugerir que, dentro de momentos, na utopia do movimento impossibilitado pela fotografia, se poderia transformar, ilusionisticamente, num outro rosto, numa outra representação, através do mero movimento dessas mãos que o esconderiam, para depois o voltarem a revelar transfigurado. Na impossibilidade do feitiço, a imagem fotográfica eternizou, suspenso, este rosto vulnerável, “expressivo”. A imagem, (com a pose a recordar a capa de Heroes de David Bowie, produzida poucos anos antes, a que a imagem parece dever, também, alguma androginia) se não percecionada logo como ontologicamente ficcional, concretiza-se como o verdadeiro truque de magia: a representação que se faz passar por revelação de uma qualquer interioridade. É a função do mimo, do modelo, que o título da série torna, aliás, bastante claro. Porque se as representações de Júlia Ventura nos podem, por vezes, iludir (será que querem?) – e a série de imagens que nos encaminha à exposição é especialmente marcante nesse sentido, com a artista a performatizar-se em personagens que ainda não sabemos que o são, olhando-nos de frente, em poses e enquadramentos que nos remetem à fotografia de moda, ainda que ligeiramente mais conscientes de si próprias - também podem ser, paradoxalmente, absolutamente diretas quanto às suas intenções. O que parece interessar a Júlia Ventura, acima de tudo, é a performatização e, por vezes, nesse gesto não tem de estar implícita uma condição necessariamente ilusória. Esta aparece, tantas vezes, como uma consequência dessa vontade de representar.

Nos já referidos Modèles, produzidos na década de 80, vemos close-ups de um rosto (o da artista?) sob um fundo branco, descontextualizado, que sublinha essa sua condição de modelos, como um dicionário de linguagens corporais, sem quaisquer ambições de História ou contexto – o branco como fundo artificialmente nulo, concedendo protagonismo ao primeiro plano. A revelação a que estes retratos nos conduzem não é tanto à psicologia da artista por entre as personagens, mas à sua habilidade de representação, às projeções possíveis que podemos tirar dessa capacidade (daí a impressão, o signo ambíguo, ainda que gravado, e não a expressão); mas, não só – esse branco parece lembrar-nos da encenação da obra, da sua processualidade – marca que nos pode levar até ao estruturalismo, à metalinguagem, em que a exposição, de resto, enquadra parte do trabalho de Júlia Ventura (“Imbuída de um espírito experimental e diretamente enquadrável nas práticas estruturalistas da época” diz a folha a respeito da série que marca a segunda sala da exposição, e que parece não esconder as influências dos nomes referidos no início, Ana Hatherly e Helena Almeida - série que situa a artista no panorama artístico do seu tempo, mas nos parece uma escolha acessória à especificidade do restante trabalho que aqui vemos).

Essa metalinguagem é ainda concretizada, por exemplo, na instalação Place of Enlightment, uma das obras que insere o trabalho da artista na década de 80, na ordem relativamente cronológica da exposição. Aí, vozes rodeiam-nos e acumulam-se num espaço escuro, alumiado por uma luz fraca no teto, como se viessem da nossa própria cabeça. A reflexividade, o espelhamento (que poderia conduzir a um conceptualismo puro e duro) não anula a sensação, aliás, leva-nos até ela (é pertinente, nesse sentido, mais à frente, nos “foto-textos” da artista, a escolha de excertos de O Prazer do Texto, de Roland Barthes, obra que marcou o abandono do teórico em relação ao projeto estruturalista, o cansaço do discurso, “exausto de tanto produzir sentido”, na procura do prazer, da sensação); e mesmo que aqui cheguemos a alguma espécie de introspeção, pela necessidade de projetarmos nas frases ouvidas alguma imagem, que não vemos, o que ouvimos não reflete mais para além desse nada (“in a black cold room, a feeling of discontinuity”, sussurra-nos em inglês, esta voz), numa sensação de medonha desconfiança que, pela repetição, pela declarada consciência de si própria, revela qualquer coisa de cómico – numa associação, talvez, forçada, vem-nos à mente o trabalho de outro estruturalista da imagem (neste caso, do vídeo), John Smith, que através do absurdo, tal como Ventura aqui indicia, sempre resistiu em conduzir essa tendência ao hermetismo fácil (que tantas vezes quer parecer difícil).

Os espelhamentos da instalação perpassam, literalmente, até às duas fotografias que compõem a série Double Bound, com o som da mesma a colorizar a aparente secura conceptual das imagens. Na mesma lógica de Place of EnlightnementDouble Bound sublinha essa tentativa de apreender as reações dos espectadores – é como se a sua autoconsciência quisesse, paradoxalmente, tornar-se superficial, negando qualquer espécie de ilusão (a sombra das neo-vanguardas). Nas duas fotografias inscrevem-se duas frases, uma simulando a perspetiva de um espectador ao olhar para aquela obra (“In looking at that photograph, I searched for that which was immediately absent from it. Face to face with that image, I looked for a vestige, a recognition that insisted on escaping me at the moment I almost reached it” – note-se, aliás, esta insistência no inglês enquanto linguagem das obras), e outra (“The images present in me in that moment were no more than vague presentiments still without form. I forced myself to seek referents, but I felt that something was escaping me, escaping me in the moment I almost reached it”).

De que perspetiva provém esta última frase? Deixo o julgamento, porque podemos estar perante uma rasteira: será uma indução da artista cuja mão-cérebro premiu o obturador da câmara para produzir aquela imagem? Ou do modelo a quem foi usurpado o rosto? A folha da exposição indica-nos esta perspetiva como a da retratada – quererá implicar que a retratada e a criadora são a mesma entidade? Breve parêntesis: há vários indícios que me parecem paradigmáticos, específicos a esta fase do trabalho de Júlia Ventura, patentes neste conjunto de fotografias – à enunciação desta declaração-comentário insere-se a tal imagem, algo desfocada (aludindo a essa coisa que escapa), da face de quem sabemos ser a artista. Ainda que alguns referentes da imagem apontem às várias componentes da frase, em semelhança à autorreferencialidade da instalação anterior, aqui, há, de facto, a escolha de uma imagem concreta, no lugar de tantas outras. A imagem escolhida é desorientação, um objeto que foge, incapturável (como a condição da própria imagem, de resto) que, ainda que aponte para si próprio, também é essa desorientação, essa deviação, que lhe permite fugir para se tornar outra coisa – estranheza, sensação. Júlia parece indicar-nos: ainda que se negue (ou aparente negar) a manipuladora ilusão, não significa que não estejamos perante uma ficção. Porque, afinal, essa nada mais é do que uma consciência da ilusão. Nesse sentido, voltando ao ponto deixado em suspenso: de facto, deslocando-nos do contexto da exposição, reconhecemos naquele rosto o da artista, mas não esquecer que tudo aqui é imagem, a fotografia que nos remete a uma inevitável ficcionalidade – ali não está Júlia Ventura, mas, apenas, o empréstimo do seu rosto. Neste caso não, necessariamente, uma personagem, mas, pelo menos, um rosto que ilustra, gravado e codificado.

 

© Julia Ventura, 1975.

 

E que rosto é este? É de uma feminilidade andrógina, dúbia. Numa das fotografias que nos introduzem à exposição, na primeira sala, reconhecemos a mesma pessoa, segurando um ramo de espiga, que enverga acima dos lábios, desenhando um bigode na face. Magnético, este Sem título de 1975, apresenta-se como uma das mais belas fotografias da exposição (é usada, inclusivamente, como a imagem-chave da retrospetiva no website da Culturgest), e na desconstrução que vamos percorrendo (se há uma transformação temática possível no conjunto de obras da exposição, a curadoria parece localizá-la na progressiva tendência para a desconstrução, para o despir no trabalho de Júlia Ventura – de que Place of Enlightnement e Double Bound oferecem uma espécie de interlúdio, como se encontrassem o núcleo conceptual da obra da artista - mantendo ao início, ainda, a integridade da ilusão, da personagem, para depois a ir retalhando) a preservação da personagem que, aqui, ainda se identifica parece servir como uma espécie de justificação, que permite aproximar o trabalho de Ventura de um questionamento sobre representações de género. Juntamente com à série de Sem Títulos alusivos à fotografia de moda, já previamente mencionado, este parece ser o momento em que o trabalho de Júlia Ventura mais se aproxima de uma fabricação que quer iludir (não há aqui um fundo branco, que nos lembre do cenário, o mais que temos é um olhar confrontativo, penetrante, como se vivo, na nossa direção), numa abordagem encenada que convive, contextualmente, com o trabalho de outros fotógrafos, ativos na década de 70, como Cindy Sherman, mas, também, com a radical androginia de alguém como Ürs Luthi. No entanto, a carga erótica que neste último se verifica, em Júlia Ventura apaga-se: o bigode é disfarce, brincadeira, o que tem de sedutor (encantador, talvez, o exprima melhor) é trazido pela sua ingenuidade, quase infantil.

Há uma timidez, um comedimento (com que a artista irá jogar, sucessivamente, mais à frente, através da iconografia da rosa – signo da beleza a desflorar, associada a virgindade ou pureza, que vai ao encontro dessa conceção patriarcal para a impossibilitar, através da picadela dos seus espinhos) que se parece desviar de um tom de agência política, ou de um confronto sobre questões de género no rescaldo do 25 de abril (ainda que haja um inegável poder em conseguir concentrar a sua força na espontaneidade desse gesto mínimo); não deixa, ainda assim, de ser uma imagem possibilitada em consequência desta revolução, e um questionar sobre os preconceções de género, mas – tal como toda o motivo da ilusão no seu trabalho – parece uma consequência. Em entrevista ao Jornal Público, no contexto desta exposição, a artista revelou até: “Não ponho de parte a aproximação dos meus trabalhos às questões do género ou da identidade (…) mas vi sempre o meu trabalho noutro lugar.”

Essa referida timidez que talvez aponte, mais uma vez, à apetência para a representação codificada em favor da expressão, é o que permite que o trabalho de Júlia Ventura funcione como um veículo para todo o tipo de projeções (é isso que o torna verdadeiramente contemporâneo, ainda que, também, procure uma certa intemporalidade nessa indefinição) um blank canvas ao espaço negro de Place of Enlightnment (como o é, aliás, o vídeo Body Mapping Space). É aqui que se situa a sua fundamental ambiguidade, ambivalência, em que a androginia, o género, parece adquirir um estatuto de meio, não de fim.

Voltemos às mãos. Na sala a que lhes é dedicada vemo-las num ecrã, ao fundo, adotando várias posições quase sempre encaracoladas, indo ao encontro dessa timidez – como se a câmara, e o nosso olhar, as intimidassem, e através dessa tensão, as tornasse irrequietas, de um modo muito controlado – como quem a medo, pouco se mexe. Não se lhes detêm um movimento natural, espontâneo. Trocam de posições num ligeiro delay (como desde já acontece nos outros vídeos da exposição) deixando vestígios ao movimento que o precederá, como dedadas sobre a superfície da tela. O que se torna interessante nestas mãos é que constroem um sentido, uma sensação – a clausura, o fechamento – mas, ainda não o desconstroem.

 

Sem Título (PNS #4), 1978/2023. © Júlia Ventura.

 

A hipótese construção/desconstrução no percurso da exposição parece ilustrado pela museografia de descida/subida. Constrói-se em duas fases e um interlúdio – a descida introdutória (de que estas Mãos fazem ainda parte, e encerram) o interlúdio (com Place of EnlightnementDouble Bound e Body Mapping Space na planura do corredor fundeiro da Culturgest, a raiz) e a subida que, por fim, a despe, vulnerabiliza. Nestas Mãos, o que as revela, como personagens que ainda são, não é a sua imagem, a sua gestualidade codificada (diria, até, bressionana) mas o que fora de campo as rodeia – as séries fotográficas sem título, do final da década de 70, onde estas se sobrepõem ao corpo, como se o controlassem, espelhassem (a lembrar Jorge Molder) – do lado esquerdo, como se o moldassem em expressões de angústia, ou poder (tacteando-o, primeiro, para depois o submeterem), ou do lado esquerdo, numa dança triunfal – a mão sedutora, que chama, embeleza, bêbada de poder e magia. Será a mesma mão que segura a rosa, numa ficção mais reveladora. Ou não? Voltemos ao princípio, aos modelos, às representações – não está ali a artista. Why?

Something is escaping me at the moment, i almost reached it. Num dos Modèles, um rosto de diabruras, com a língua erecta – como o gozo do prazer que aniquila, e lembra a impossibilidade de decifração. Nas suas brincadeiras, finalizadas na troca de olhares da última sala (a série Sem Título (FHTE) que finaliza a exposição é de uma embriaguez sublime, a translucidez das sombras como se chorasse aquele rosto inibido), há uma a que nunca se atreve: o olhar a porta de saída.

 

 

 

Miguel Pinto
Mestrando em Jornalismo pela NOVA-FCSH, e licenciado em História da Arte pela mesma faculdade. Estagia na Cinemateca Portuguesa e escreve nas horas vagas.