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O ESTADO DA ARTE


Guido Guidi, 12.03.1997, VISTA SUL


Guido Guidi, 17.03.2007, TARDE VISTA NOROESTE


Guido Guidi, 20.02.2007, VISTA SUDOESTE


Guido Guidi, 20.02.1997, VISTA NOROESTE PERSPECTIVA DA GALERIA DO PROPILAEUM E TANQUE


Caderno de notas do Guido Guidi, com um story board das fotografias.


Caderno de notas do Guido Guidi, com um story board das fotografias.


Caderno de notas do Guido Guidi, com um story board das fotografias.


Caderno de notas do Guido Guidi, com um story board das fotografias.


Caderno de notas do Guido Guidi, com um story board das fotografias.

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JOAQUIM MORENO E PAULA PINTO

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O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria
William Blake


Tudo no Túmulo Brion, que Carlo Scarpa projectou e construiu entre 1969 e 1978 é excessivo: a encomenda, o projecto, o desenho, a construção e o detalhe, o simbolismo, a interpretação crítica, a temporalidade e o devir, ou a relação com a visibilidade e a imagem fotográfica. A simples ideia inicial de Giuseppe Brion, o industrial que produziu os icónicos aparelhos electrónicos Brionvega, era acrescentar um túmulo familiar ao cemitério da sua terra, San Vito de Altivole. Mas o resultado desta vontade, cumprida pela viúva Onorina Brion, é um campo santo de 2200 m2 e também um extraordinário jardim público.

Carlo Scarpa tinha construído o cenário arcaico para o design mais contemporâneo, a loja Olivetti na Praça de São Marcos em Veneza. Tinha passado anos nos fornos de Murano a manipular o saber que molda o vidro em fusão. Tinha um longo curriculum de projectos efémeros: exposições, instalações e pavilhões. Tinha realizado restauros complexos como o Castelvecchio em Verona ou o Abatellis em Palermo e tinha encenado neles delicadas museografias. Mas esta encomenda não era nem efémera nem um restauro. Aqui podia fazer um projecto lento para um tempo imóvel. E Scarpa decidiu ficar para sempre junto da sua obra.

Foi a recusa de aceitar a morte como separação, implícita na decisão de Onorina Brion de não voltar a casar, que convenceu Scarpa a projectar este memorial familiar. Nem um cemitério público nem um mausoléu privado, este projecto é um memorial do amor conjugal, onde jazem lado a lado Giuseppe e Onorina. Scarpa confessou que talvez o melhor teria sido simplesmente plantar 1000 ciprestes. Mas o decoro social necessário para ampliar o cemitério local implicou a construção de um novo muro, de uma nova capela, e a duplicação de acessos, directo da alameda dos ciprestes e através do cemitério existente.

Poucos projectos terão sido mais intensamente desenhados que este. A área destes desenhos talvez seja maior que a do túmulo, num mapa maior que o mundo que representa, e o seu alcance é bem maior que o projecto que organizam. Milhares de arquitectos aprenderam destes desenhos, que não se limitam à configuração do projecto, muitos são desenhos de estaleiro, feitos sobre cópias, tanto para explicar os procedimentos construtivos como para coordenar os diferentes artesãos. E misturam-se com a obra, redesenhando os seus percalços e remediando os seus erros. São o suporte do intenso labor paciente que só o desenho conhece.

Conta a lenda que as tábuas de cofragem do túmulo Brion eram desfiadas uma a uma num serra de fita lenta que registava as pancadas ritmadas do marceneiro na madeira. Este estriado, sempre diferente, desenhava os ritmos da textura dos muros de betão aparente. E a cofragem era por vezes interrompida para que o vazio fizesse uma marca no muro, um sobressalto à altura do olhar, perto do negativo para embutir os mosaicos de vidro veneziano, ou enquadrar o reboco liso de cal. Todos os remates, dobras e inflexões, ou os encontros de matérias, são oferendas ao deus dos detalhes.

A entrada do túmulo enquadra os anéis entrelaçados em amêndoa sagrada, o azul à direita do rosa. Subindo as escadas, vê-se, através dos anéis, um fio de água que separa do prado elevado, gesto primordial da arquitectura funerária. À direita, o lago de fundo misterioso em que flutua a ilha da contemplação, o acesso limitado por um portal que desaparece na água. À esquerda o arco sobre os túmulos, como uma mão arqueada sobre a testa para ver em contra-luz, e depois o portal em Omega para a capela funerária, e o jardim de ciprestes para o cemitério dos padres.

O escrutínio crítico desta obra corresponde à densidade dos seus desenhos, e inúmeros livros, revistas e exposições tentaram capturar os seus mistérios: a sua capacidade de transformar o betão num material anacrónico, de fazer uma modernidade artesanal, fragmentada mas sem descontinuidade, de estar tão imersa na tradição que é capaz de a transgredir em vez de a mimetizar; a ambiguidade de ser complexa e contraditória sem ser pós-moderna. Os cemitérios são funções mais duradouras que a sua materialização, e é este estranho absurdo que faz deles lugares outros, em que a modernidade e a sua superação funcionam, mas ao contrário.

Guido Guidi insistiu em olhar e voltar a olhar para este lugar, a ele regressando regularmente desde 1995. A recorrência das suas imagens desvenda um outro tempo deste campo sagrado: o templo cíclico do seu envelhecer, da sua transformação, dos seus solstícios e equinócios. O trabalho paciente, de fazer e refazer, reenquadrar, comparar, revela as modulações e os ciclos: a assonância, a variação, a fuga, a lateralização, ou o salto entre narrativas. As sua séries fotográficas revelam as margens, os limiares, as ausências, as sombras, ou os anacronismos deste lugar. Revelam um limiar em que o projecto aprende das imagens.

Podemos investigar a arquitectura através das suas origens e influências, ou através do seu devir, da sua transformação, ou seja, através da sua vida, neste caso, paradoxalmente, eterna. Guidi observa estas transformações com o rigor de um trabalho de campo, repetindo exposições e experiências e tomando notas precisas. Esta exposição percorre estes excessos a contrapelo, observando os sintomas em vez de diagnosticando as causas; através dos indícios que a câmara entendida como armadilha engendra. As imagens de Guidi incorporam a lentidão excessiva da própria obra, colocando em abismo a arquitectura de que se alimentam. São uma armadilha para o diálogo.

 


Joaquim Moreno
Arquitecto, curador da exposição Guido Guidi: Carlo Scarpa. Túmulo Brion, patente na Garagem Sul Exposições de Arquitectura - Centro Cultural de Belém; até 8 de Março de 2015.

 

 

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Guido Guidi nasceu em Cesena (Itália) em 1941. Estudou arquitectura no Instituto Universitário de Arquitectura de Veneza (1959-64) e frequentou o Curso Superior de Desenho Industrial (1967-68), atraído por dois cursos: o de fotografia lecionado pelo historiador Italo Zannier (que tem escrito frequentemente sobre a sua fotografia) e o curso de artes gráficas lecionado por um ex-aluno da Bauhaus, Luigi Veronesi.
Entre o Instituto Universitário de Arquitectura de Veneza (IUAV) e o Curso Superior de Desenho Industrial (CSDI) fez o serviço militar e foi no quartel, onde existia uma câmara escura, que começou a ampliar fotografia. Desde 1968 que expõe regularmente. Começou por fotografar os amigos, as casas e os lugares onde nasceu, mas foi a partir dos anos oitenta, quando constrói uma câmara para película 20x25cm, que o seu trabalho toma outra escala geográfica. Guido Guidi utiliza a fotografia enquanto instrumento para a percepção do território contemporâneo, trazendo para o centro do olhar lugares recombinados e deslocando-os para que a sua estranheza nos torne mais sensíveis. O trabalho de Guido Guidi passa a identifica-se com uma das condições históricas da fotografia, a de ser contemporânea da transformação paisagística que ela própria revela.


[Excerto da biografia por Paula Pinto, investigadora, curadora da exposição Guido Guidi: Carlo Scarpa. Túmulo Brion]