|
TEMPOS MODERNOS, CERÂMICA INDUSTRIAL PORTUGUESA ENTRE GUERRAS
CARLA CARBONE
01/08/2019
Ainda podem ver, no Museu Nacional do Azulejo, até meados de Agosto, a exposição “Tempos Modernos, Cerâmica Industrial Portuguesa entre Guerras”. A exposição revela uma coleção de 400 peças de cerâmica industrial portuguesa, reunidas com larga devoção, durante um longo período, por António Miranda e José Madeira Ventura.
A exposição, comissariada por Rita Gomes Ferrão, pretende ser uma mostra representativa da cerâmica portuguesa da primeira metade do século XX, e acentuar a importância da valorização da memória do povo português, além da consequente necessidade de preservação da sua identidade. Tanto as grandes obras do Homem, como os acontecimentos da esfera privada são importantes para descobrir a sua história. Os artefactos e utensílios do quotidiano pertencem a essa esfera mais reduzida, mas não menos importante, numa perspectiva científica, para o conhecimento dos hábitos de um povo, ou de uma cultura. A cerâmica parece ser um excelente campo para descobrir não só as aspirações dos portugueses, e as suas interacções sociais, como o comportamento do tecido industrial português, que teve lugar naquele período, entre as duas Grandes Guerras.
Para Gomes Ferrão, investigadora de história de arte e especialista em cerâmica portuguesa, a iniciativa desta exposição procura também “evidenciar a produção cerâmica portuguesa e o contexto internacional, no rescaldo das vanguardas artísticas do século XX”. Além de procurar escrever uma história da cerâmica moderna portuguesa, ainda algo embrionária.
Os exemplos da produção cerâmica nacional surgem materializados na exposição pela presença de peças representativas das fábricas: Vista Alegre, Aleluia, Sacavém, Massarelos, Lusitânia, Sociedade de Porcelanas de Coimbra, entre outras.
As peças da fábrica de Sacavém “Gilman & Cta – Sacavém”, como o serviço de café, com motivos decorativos geométricos Deco, presentes na exposição, evidenciam a tentativa da manufactura nacional em acompanhar a modernização da produção industrial internacional. O serviço “Porto”, datado das décadas de 30 e 40, é uma tentativa de modernização. O corpo das peças, com laivos neoclassicistas, e compleição oitocentista, em faiança moldada, é contrastado com a sua superfície, coberta por estampilhas e imagens aerografadas modernistas, a cor verde, castanho e azul. Segundo António Miranda e José Madeira Ventura, a padronagem art deco deste serviço não é uma criação original portuguesa, mas oriunda da Alemanha, a mesma que viu o Furer banir todas as peças decorativas modernas das lares alemães, por os considerar parte integrante da arte degenerada.
Os mesmos coleccionadores aperceberam-se também, no filme “O Pai Tirano” (1941), de uma cena em que uma jovem, numa pensão pequeno-burguesa lisboeta, se encontra a tomar o pequeno almoço usando uma destas chávenas, de influencia alemã, além de outras peças que surgem, sobre a mesa, como uma boleira em metal, que também pertencia ao mesmo país.
Uma outra peça, de entre muitas das presentes nesta exposição, e que evidencia a influência do gosto moderno, é um serviço de café, também produzido pela fábrica de Sacavém “Gilman & Cta – Sacavém”. Alude, pelas semelhanças, a um outro serviço, desenhado anos antes, por Keith Murray, entre as décadas de 20 e 30, para a fábrica de Wedgwood, em Staffordshire. A peça “Keith Murray de Sacavém”, como chamam os colecionadores, é um serviço de cor rosa, composto por uma cafeteira, duas chávenas e respectivos pires. As asas da cafeteira, bem como das chávenas, evidenciam a linearidade das formas neoclássicas. Pelos sulcos horizontais que ostentam à “cintura” da cafeteira, e pelo topo da mesma que se afunila, e encerra em escada.
Estes resquícios das influências neoclassicistas só testemunham a lenta transformação do gosto, e como o mesmo é pautado por avanços e recuos. Permeáveis ao gosto do consumidor, ou às condicionantes da produção, eles evidenciam os cruzamentos de um estilo moderno alemão, atravessado por um gosto neoclássico tardio, ou entrecruzado por um resquício de paisagem imersa sob um rabisco oriundo das formas do romantismo, ou ainda de um barroco fugidio. Sobre o ADN das suas estruturas, ainda ressoam frágeis vibrações, longínquas, oriundas das grandes exposições, do século XIX, como o Palácio de Cristal, em Londres, (esta realizada em 1865, pelo irmão da Rainha Victória) e mais tarde no Palácio de Cristal no Porto. Esta última, a primeira grande exposição internacional no nosso país.
Como se sabe, a assimilação dos objectos industrializados não se fez logo de imediato, o comprador não se mostrou logo receptivo às novas formas que a máquina ditava. Foi necessário todo um tempo de adaptação cultural a esta nova expressão. “O século XVIII, por exemplo, confiou nos modelos arcaicos para ultrapassar a resistência à inovação”. Disse a um dado momento Forty. “Não tendo sido célere a crença de que a aparência da peça deveria traduzir-se numa expressão directa à função para a qual foi concebida”, continuou, “todos os objectos teriam que ser iguais”. Mas tal, hoje sabemos, não foi possível. A variedade das formas na indústria cerâmica viria a revelar a necessidade do homem em se identificar, e distinguir através dos objectos. Assim como as circunstâncias da produção também ditaram a sua variação. Em Portugal, por exemplo, e como pode observar-se da exposição no Museu do Azulejo, as fábricas esforçavam-se por acompanhar as formas inovadoras oriundas do estrangeiro, como a arte Deco ou o cubismo. Muitas vezes sobre formas cerâmicas arcaizantes, por falta de capacidade técnica para acompanhar as inovações tecnológicas. Pelo contrário, se falarmos nos tempos idos e remotos de Josiah Wedgwood, as dificuldades residiam em acompanhar o gosto lento dos consumidores. Por esse motivo Wedgwood via-se obrigado a abrandar as formas que criava, para bem ser aceite pelo público. As suas estrondosas inovações tecnológicas, acompanhadas por um gosto pelas formas puras, só viu eco por meio da adopção das formas da antiguidade clássica, e pelo entusiasmo nas descobertas de Herculaneum e de Pompeia, em 1748.
Carla Carbone
:::
Tempos Modernos. Cerâmica Industrial Portuguesa entre Guerras. Coleção A.M. – J.M.V.
Até 15 de agosto