|
JONAS AND THE WHOLE
MADALENA FOLGADO E JONAS HØINESS
Cartons are houses for crackers. / Castles are houses for kings. / The more that I think about houses, / The more things are houses for things. / […] A mirror’s a house for reflections... / A throat is a house for a hum… / … / A book is a house for a story. / A rose is a house for a smell. / My head is a house for a secret, / A secret I never will tell. / A flower’s at home in a garden. / A donkey’s at home in a stall. / Each creature that’s known has a house of its own / And the earth is a house for us all.
Mary Ann Hoberman [1]
Ter consciência é mais que ter cor? / Pode ser e pode não ser. / Sei que é diferente apenas. / Ninguém pode provar que é mais que só diferente. // Sei que a pedra é a real, e que a planta existe. / Sei isto porque elas existem. / Sei isto porque os meus sentidos mo mostram. / Sei que sou real também. / Sei isto porque os meus sentidos mo mostram, / Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta. / Não sei mais nada.
Alberto Caeiro
Whole…E não the Whale. Esta troca de vogais, que descobri por ato falho enquanto escrevia, fez-me colocar em relação duas palavras na lingua inglesa; respetivamente, em lingua portuguesa, todo e baleia. Jonas é simultaneamente Jonas Høiness, o co-autor norueguês deste espaço e do projecto ganhador do Prémio Universidades na categoria de Mestrados — pela primeira vez na história da Trienal de Arquitetura de Lisboa, dirigido a instituições do mundo inteiro. E, é também uma referência à história bíblica, na qual, enquanto personagem central, é ordenado por Deus a viajar para uma cidade com a qual se antagonizava a fim de na mesma pregar. Jonas desobedece porém ao Pai, dirigindo-se para outro lugar, nesse trajeto marítimo é lançado ao mar pelos outros tripulantes da embarcação que o oferecem em sacrifício para evitar um naufrágio, sendo engolido por uma baleia em cuja barriga passa três dias e três noites, rezando para que Deus o salve. Deus ordena por fim que a baleia vomite o Jonas então arrependido, em terra segura, que retoma prontamente a ordem inicial de Deus e a cumpre com êxito. Mas o Jonas, enquanto parte do todo, é infinitamente maior, inclusive maior que o todo Trienal de Arquitectura de Lisboa 2022,Terra.
O leitor que já se tenha cruzado com os meus textos, perceberá que procuro dar a ver modos pelos quais a vida dá a si própria a sua forma; se rasga e expande na sua dimensão poética, no tocante ao encontro com obras, exposições, performances etc.. No fundo, tornar mais claro o acon-tecimento, enquanto escapatória para os rápidos das suas instrumentalizações, institucionalizações, subversões hierarquizantes, estando em creer que talvez haja algo de ecológico nesse modo de ser…Escapo, tanto quanto possível, de eventos importantes sem portas para o encanto cuja sombra é a grandeza [2] e sua mania, e, portanto, dos porteiros dessas portas entaipadas e do seu matrix de controlo de entradas e saídas fictícias. Privilegio o acaso, entro nos assuntos através de 'cismas do coração' [3], e então partes de coisas — assim como modos possíveis do seu dizer — tornam-se maiores do que as próprias coisas; abrem-se estranhos portais de rendição, pois cada texto obriga-me a deixar de querer escrevê-lo. Não sei se todos os autores com quem escrevi — porque me escapo sempre a escrever sobre, a não ser que sobre decorra de um recalcamento — se co-moveram tanto como eu. Sei, contudo, que apenas procuro falhas, não para cancelar obras, eventos ou pessoas, mas para encontrar os mais altos coeficientes artísticos [4]. Assim espero continuar…Jonas — Høiness— foi regurgitado pelas circunstâncias num lugar seguro, na casa da Mandy, a minha jovem colega fotografa.
Logo no início do dia do nosso encontro semanal na Plataforma Revólver, surpreendida com a sua própria disponibilidade em atender a apelos invulgares, a Mandy conta-me que a pedido expresso da sua amiga e ex-parceira de casa, uma estudante de mestrado em arquitetura, presentemente em Erasmus, acolhera um outro jovem — Jonas Høiness — e a sua namorada, uma vez que foram vítimas de uma burla; o suposto alojamento Airbnb era afinal inexistente. Apenas referenciado pela amiga da Mandy, o arquiteto Jonas então sem-abrigo, milagrosamente, encontra abrigo em Portugal. De imediato, senti que esse acaso poderia ser uma dessas portas que sempre me encontram pelo natural curso da vida — E assim foi. Afinal, não me considero uma dessas “personalidades de renome”, chamadas a falar sobre a Trienal. Madalena Madalena não é o meu nome — perdoem-me a graçola…mas não a graça que envolve o acon-tecimento.
Sabia — ou talvez não — que teria, até por questões de imperativo editorial, de abordar a Trienal, já havia feito uma entrevista aos curadores. Descobri-me, entretanto, bastante mais próxima do Complexo de Jonas do que pensava; da necessidade de parar de fugir do que somos, e como consequência natural, do que precisa ser feito. Este tom autoral, de exposição e por conseguinte de implicação, do desagrado de alguns, por confronto à grandeza dos seus currículos, é a minha redenção — os ‘lugares da fala’ são, felizmente, múltiplos. Mas no tocante à história bíblica — e ao seu tom patriarcal e monoteísta, que ao longo dos tempos ainda perpassa o nosso pensamento de crentes e não-crentes — importa-me neste ensaio trazer, como referi no seu início, uma aproximação na qual a soma das partes é maior do que o todo, no caso, do(s) Deus(es) todo(s) poderoso(s), e talvez por isso mesmo mais religiosa, no sentido original de um religar. Holism e Wholism, significam a mesma coisa, ambos derivam de whole e não, no caso de holismo, de hole (=buraco). Escreve Timothy Morton, num subcapítulo de Being Ecological, intitulado “Not Your Grandaddy’s Holism”:
‘Reduce’ doesn’t mean ‘break into smaller bits’. Physical wholes are obviously bigger than their parts. What we mean by ‘reduce’ is ‘explain away in terms of something we consider to be more real’. What this means is that — wait for it — the whole is always less than the sum of its parts.
Wait a second. This is crazy! Haven’t we been telling ourselves, all our lives, that the whole is always greater than the sum of the parts? [5]
Descobri o trabalho daquele que é considerado o filósofo do Antropoceno — epíteto com o qual ele mesmo faz paródia — em 2018, quando senti, no âmbito de um colectivo do qual fiz parte — um todo —, e pela responsabilidade de co-dirigir um workshop com um artista internacional em torno da temática das catástrofes ecológicas [6], que deveria aprofundar os meus conhecimentos sobre o tema. A abordagem derrisória do filósofo britânico conquistou-me. Perdi o medo de saber mais sobre um assunto tão maior do que eu — Essa é aliás uma das questões do autor, famoso também pelo que neste contexto designou por hyperobjects, por nos lembrar que as coisas não se podem apreender na tua totalidade, e de como somos esmagados por informação "Things versus Things data". [7]
Retomando a questão do todo na relação com as partes, Morton prossegue dando um exemplo de como um certo traço do pensamento antropocentrico transforma o holismo — a integração das partes — num perigoso “explosive holism”. Na tentativa de se ser didático, existem desenhos que se podem tornar perigosos, principalmente, para os que escolheram a profissão atribuída ao Deus monoteísta — Arquiteto ou Criador — quer se trate da versão clássica de atelier ou das suas novas versões: Do coletivo, ao projeto de investigação académico. Se teimamos em olhar o Outro-humano do alto, como poderemos fazer diferente com o Outro-não-humano? Certo é, ouvi uma vez George Steiner dizer numa entrevista, que os grandes ditadores amavam os seus animais de estimação. Mas vamos ao desenho:
When you draw a set of things, the circle you draw around those things is always going to be bigger than the set, physically speaking. Otherwise it wouldn’t be able to encompass them. But how a drawing looks isn’t what it logically means. If everything exists in the same way, that means that wholes exist in the same way as their parts, which means that there are always more parts than there is a whole — which means that the whole is always less than the sum of the parts. It’s so childishly simple when you think about it this way. So how come it’s so hard to accept?
It has to do with the legacy of monotheism. Even if we don’t believe in God, even if we’re agnostic, we keep retweeting monotheistic concepts. Or our concepts have a monotheistic form, despite what we think we believe. That kind of holism, which I’m going to start calling explosive holism (in which the whole is always bigger than the sum of its parts) is just like that. God is omnipresent and omniscient, so God must be way bigger than the sum of the parts of the universe that He created (assuming it’s a he) […] He’s so high, you can’t get over Him. He’s so wide, you can’t get around Him. My God is bigger than yours. [8]
Infelizmente, a politização dos grandes eventos de arte e arquitetura em torno das questões climáticas e conflitos armados tem contribuído para um perigoso recalcamento de artists-God, architects-God, ou curators-God e as Suas Visões Holísticas, mesmo, portanto, quando aparecem sob a forma de colectivos — O artista ou a Instituição que dele se serve, ou ainda, o acordo mútuo, selado por todos nós — colectivo — por servidão voluntária. Aquilo que nos acon-tece mundialmente é da nossa responsabilidade. Desde sempre nos deixamos iludir por Salvadores. Pelo que, sempre penso num mundo onde artistas, arquitetos, curadores, ativistas, etc., e já nem refiro políticos porque me parece demasiado óbvio; i.e., todos os que — e salvaguardando 'quem nunca', ou 'quem raramente' — usam uma pretensa condição de exceção por narcisimo, sejam de facto, todos Super-Homens — Mas como no sketch dos Monty Python, em que o projeto de exceção é arranjar bicicletas, tarefa que escapa ao comum dos Super-Homens desse mesmo mundo. Tomemos mais atenção a este traço narcísico-monoteísta que nos habita, tantas vezes disfarçado nas narrativas engajadas e ou de grande sensibilidade, em grande parte, naquilo que passámos a chamar de crítica de arte e arquitectura.
Se as coisas existem da mesmo maneira, a abordagem ecológica de Morton, implica, no meu modo de ver, em si mesma, uma forma de liberdade, de escapar à servidão voluntária, para nós humanos; certo é, como também explicita a dada altura, que é próxima do modo de conceber o mundo por parte dos budistas ou dos aborígenes — entenda-se uma vez mais, a referência religiosa enquanto modo de agir sobre o mundo, e não literalmente ligada a um sistema de crenças instituído. Por outro lado, tal existir na mesma maneira, refere-se à visão OOO — Object-Oriented Ontology — da qual o filósofo Graham Harman é pioneiro, Morton adere e me é especialmente cara, na qual as coisas existem dentro de coisas como matrioskas, talvez até ao infinito. Dá como exemplo um relvado, enquanto algo que não é de todo genérico, é antes, o seu próprio fervilhante ecossistema de vermes, fungos e bactérias. “It is a being in its own right, consisting of a plenitude of other beings”. [9] Jonas é também isso mesmo, mas já lá vamos.
Morton opõe-se veementemente ao conceito de natureza, pois foi há muito reificado, tornado uma coisa aparte, assim como à ideia de web of life, i.e., rede/tecido de vida quando seu sinónimo, na medida em que reduz a existência de algo à possibilidade de apenas ser reconhecido enquanto parte desse tecido. Diferentemente, dá como exemplo, se um rato for carbonizado continuará a ser um rato, mas não obviamente um rato vivo, o que faz com que não possa ser reduzido a uma rede de vida; continuará, morto, a partilhar o seu ADN com tudo à sua volta. [10] É neste sentido que afirma que a arte ecológica é “art that includes its environment(s) in its very form. Of course all art is ecological, just as all art talks in various ways about race, class, and gender, even when it’s not doing so explicitly. But ecological art is more explicit”. [11]
Tal como o rato, também Jonas não pode ser reduzido nem à sua importância no evento Trienal — afinal, e sem que o soubesse, tornou-se também co-autor de um projeto ganhador — ou ao modo como com ele me encontrei, i.e., sendo parte de uma mesma rede de vida, onde seria reduzido também à minha decisão enquanto editora de arquitetura de 'fazê-lo existir'. Segundo Morton, se por um certo tipo de correlacionismo herdado pelo Pós-Modernismo, que tudo transforma num correlato, no qual enquanto correladora — quem decide — o tornasse mais real do que o resto das coisas com as quais está correlacionado. [12] Não teria, por outro lado, assumido a responsabilidade desta escolha editorial, se não o visse como existindo da mesma maneira que as pessoas de renome — o que quer que isso signifique. Interessa-me, porventura pelo meu próprio narcisismo, que o Jonas — ou qualquer outro ser — seja visto sem a habitual rede de vida, sem a qual muitos de nós acreditam não ser possível existir — Há mortos com quem, por afinidades eletivas, vale muito a pena conversar. Existir, neste sentido, é muito mais reconhecer o seu mundo interior e o inapreensível mundo interior do Outro; estabelecer porém com ele(s) intimidade; reconhecermo-nos poeticamente nas coisas gloriosamente prosaicas, e sentir que isso sim é imenso. O que é então relevante?
What counts in such a teeming universe is the quality and quantity of affiliations between beings. Since there is no Nature to which one must cleave, what matters is not an anesthetized experience of feeling part of something bigger, but establishing bonds of intimacy between beings. [13]
Isto far-nos-á, verdadeiramente, ser ecológicos. Este ensaio é uma escapatória — e não escapismo — a discorrer sobre a Trienal Terra e sobre o trabalho do qual Jonas é co-autor, apresentado na exposição Multiplicidade, aqui apresentado, em slideshow, [14] uma vez clicando barra lateral de imagens. Tive com ele uma longa e animada conversa por vídeo-chamada, trocámos mensagens e emails, após o ter conhecido fugazmente presencialmente, dias antes de ter sido anunciado como vencedor. Mas o que mais me encantou no Jonas foi a sua afinidade com Alberto Caeiro, heterónimo de Fernando Pessoa, por relação à sua missão devir Outro, na qual, não pretende tirar o lugar do Outro, i.e., o seu protagonismo; antes, experienciar a multiplicidade que existe em nós e com ela estabelecer uma profícua intimidade — um, afinal, dervir Si própio — pelo que transcrevo três questões que lhe coloquei mais objetivamente, no final do texto, pois ambos apreciamos uma certa performatividade no pensar o mundo. Convido por isso o leitor a ler as respostas em discurso direto.
Nesta Terra, não somos senhores, parafraseando Sigmund Freud. O psicanalista não refere Terra, refere antes casa ou lar, por analogia à psique — demasiado — humana, habitada por um Outro, confinado aos porões do nosso inconsciente, que por assim ser ignoramos, porém porque dotado de uma vida própria irrompe — incomoda porque não negoceia com o nosso ego — dando a si próprio a sua forma; o devido cómodo na casa partilhada. É preciso conceder-lhe, pelo menos, passagem. Precisamos, ainda, passados 140 anos do surgimento da psicanálise, de fazer o luto do tudo, tantas vezes, por ato falho, desonestidade intelectual ou narcisismo, substituído pelo todo e a suas subservientes partes, nos discursos moralistas daqueles cuja atividade e afeto estão demasiado comprometidos com um processo de controlar e prever.
É tempo de manifestos de denuncia de toda a espécie de desigualdades — o que é manifestamente relevante. Encontramo-los, porém, por vezes, demasiadamente comprometidos com uma produção académica de carreira, e também por vezes até, simultaneamente incluídos na exclusividade do mercado da arte, tornados, portanto, coisa reificada; mercadoria criada sob o abrigo das mais prestigiadas universidades [15] , acentuando um certo tom moralista, pois longe estamos de horizontalizar a academia e a sua cada vez mais voraz cunhagem e cooptação de assuntos oportunos e consequente fabricação de autoridades sobre os mesmos, o que tem vindo a agudizar o mal-estar, dir-se-ia, na civilização ou cultura.
Na visão da OOO pensar não é o único modo de acesso, e o pensamento não é em caso algum o modo mais elevado de acesso, segundo Morton, não existe sequer nenhum modo de acesso de topo [16] Lembro por isso o poema de Alberto Caeiro, parte em epígrafe, “Dizes-me: tu és mais alguma coisa” — e uma vez mais, ser-se mais que uma coleção de partes subservientes de um todo — A obra de Ferrando Pessoa abre-nos para uma outra coisa, que não é apenas pensamento…como o filósofo José Gil poderá melhor esclarecer o leitor interessado [17]. Tenho muita curiosidade em saber de uma possível afinidade futura entre Jonas e a escritora Maria Gabriela Llansol. Porém, Llansol, talvez não exista, ainda, da mesma maneira, para os mais prestigiados projetos editoriais internacionais, e terá Jonas que aguardar pela sua tradução. Enquanto alter-nativo (alter = outro) de e da Terra, Jonas trás-nos a alternativa de com Pessoa adoptar um modo de ser um pouco mais ecológico — a pensar menos antropocentricamente. Não foi, no entanto, por isso premiado.
Coastal Interference — o projeto ganhador — é uma aproximação a tudo o que habita a zona costeira do Norskehavet, o mar da Noruega. Deste todo, é parte o aparato resultante da exploração humana, i.e, dos campos petrolíferos, da aquicultura, das instalações militares, até ao delicado ecossistema dos corais de águas frias, considerando ainda como sua parte, mitos e sonhos. Os mestrandos do curso de Mestrado em Explorations in Ocean, usaram a ferramenta própria da arquitetura, o desenho, mas fizeram com que a sua representação gráfica não fosse maior que as partes. Utilizaram, como nos explica Jonas em baixo, um conjunto de mediums artísticos; já que, como refere Morton a propósito de “Enchantment: Causality as Magic”, é preciso superar o pensamento kantiano, no qual, e ainda que em favor do belo, parece existir um limite recomendável para a mente humana se fundir com o não-humano, ou poderemos correr o perigo de ser encantados. Contudo, se não entendermos a arte enquanto decoração, e nos permitirmos sucumbir aos perigos de tal encantamento, teremos acesso então a uma ínfima parte do que pode ser causalidade em termos não-humanos, na media em que a arte causa algo em nós — Ela emite tempo; i.e., outras temporalidades. [18]
Os mestrandos procuram portanto — pelo que reportam — e ainda que usando aproximações já bastante conhecidas, encontrarem-se com essas temporalidades outras. Em "Ocean of Myths", por Sashant Tiwari e Kripa Jain, há um baralho de cartas de tarot, como que se se estivessem a familiarizar com aquilo que pode à mente humana aparecer como arbitrário; jogando-se mitos, neste tempo que é afinal tão propício a tal. Em "The Plea of the Coral Nation", Jonas Høiness faz-nos aparecer os corais de águas frias como pequenas casas, a partir das quais se organiza toda a cadeia alimentar — porém um tanto como o Sermão de Santo António aos peixes, onde, na cadeia alimentar, nos confrontamos com a possibilidade de ser engolidos por algo não pensado, pela impossibilidade humana de o pensar. Em "Sonic Reflections" por Sofia Korte e Helene Eide, pela escuta ativa, chegam-nos paisagens sonoras, quer integrando sons de aves marinhas, quer geofonias, i.e., sons naturais não biológicos. E por fim, em "Last Salmon" por Atso Airola e Luna Scéau, é-nos proposto um passeio audiovisual space-specific, auxiliado por telemóveis e auscultadores, no sentido de descobrir as condições acústicas da viagem migratória do salmão.
Um traço de holismo é ainda presente nas respostas do Jonas mas não sem a abertura de um auto-questionamento — um holismo com buracos, i.e., holes. Quando atiramos a casa para fora de nós, para um futuro sem presente, perdemos a intimidade com as coisas que nos podem verdadeiramente salvar. Mas felizmente, para quem habita a incerteza, não tardará, como o arcano Louco do tarot, arauto do inesperado porque dotado de um olhar renovado, em descobrir um precioso cadafalso, para cair uma vez mais em Si — “The World is Full of Holes”, desenvolve Morton. [19] Talvez, por isso, a Baleia da história bíblica não seja bem aquilo que pensamos, mas antes um desses hyperbjects termo cunhado por Morton para algo temporalmente muito maior que nós, como a Terra ou o aquecimento global. Sendo este, segundo o filósofo, o tempo dos hiperobjectos, teremos de nos habituar a descobrir-mo-nos dentro destes grandes objectos, façamos deles, dentro do Possível, casas, uma vez mais, estabelecendo laços de intimidade com as coisas:
“Home” then is purely “sensual:” it has to do with how an object finds itself inevitably on the inside of some other object. The instability of oikos, and thus of ecology itself, has to do with this feature of objects. A “house” is the way an object experiences the entity on whose interior it finds itself. So then these sorts of things are also houses. [20]
Antes e depois desta citação, Morton cita uma história de crianças, que deslocámos para a epígrafe de modo a que possa viver lado a lado — intimamente — com uma parte do poema de Alberto Caeiro que mencionámos. Talvez, e sempre talvez, porém com confiança na incerteza, aos arquitetos e não-arquitetos caiba encontrar novas formas de pureza, i.e., de nos encontrarmos em tensão cocriativa com o mundo; criar abrigo para que as fragilidades outras, sejam abrigadas pelas nossas e vice-versa.
>>>
PT/EN
Três questões a Jonas Høiness, co-autor de Coastal Interference // Three questions to Jonas Høiness, co-author of Coastal Interference
MF: Na famosa conferência Construir, Habitar, Pensar, que teve lugar em Darmstadt no ano de 1951, Martin Heidegger afirma que para construir é preciso primeiro habitar. Habitar está nos fundamentos de construir e pensar. A natureza e o âmbito de Coastal Interference exige uma estratégia de habitar perseverante, uma vez que envolve sintonização com uma realidade não-humana. A sintonização com um ambiente subaquático envolve alguma espécie de apeia de pensamento antropocêntrico?
JH: Decididamente! Para abordar algo tão estranho para a humanidade como o oceano — há mais dados disponíveis sobre a superfície de Marte do que sobre a superfície do fundo do oceano — poder-se-á dizer que numa forma de entorpecimento da mente humana e na adoção da perspectiva não-humana descobriu-se o único caminho apropriado. O método científico, pelo qual tenho imenso respeito, tende a carecer de uma visão holística. Em vez disso, é mecanicista, desconstruindo sistemas multifatoriais numa coleção de partes a serem estudadas e remontadas, e isso seria inadequado para entender as infinitas complexidades de um ecossistema como o oceano como um todo, sem mencionar os efeitos que a humanidade tem sobre ele. É simplesmente muito grande para reduzir a partes.
Em vez disso, tornámo-nos não-humanos, explorando as suas perspectivas e relações com o oceano através de mediums artísticos, como a escrita, a dramatização, performances interpretativas, esculturas e representações visuais. É claro que houve muita pesquisa de base — de que outra forma, alguém seria capaz de se transformar se não entendesse no que está a ser transformado? — e tivemos a sorte de ter uma bióloga marinha prontamente disponível para qualquer dúvida que pudéssemos ter tido. Foi somente depois de nos sintonizarmos totalmente com os protagonistas não-humanos do oceano é que finalmente pudemos habitar. E depois de habitar, pudemos olhar ao redor. E só então pudemos olhar para nós mesmos, a humanidade, como realmente somos.
MF: In the famous conference Building Dwelling Thinking that took place in Darmstadt in 1951, Martin Heidegger affirms that in order to build one must dwell first. Dwelling is at the fundamentals of building and thinking. The nature and scope of Coastal Interference demands a persevering dwelling strategy since it involves tuning into a non-human reality. Does tuning into a subaquatic environment envolve some sort of anthropocentric thinking apnea?
JS: Definitely! In order to approach something so foreign for humanity as the ocean — there’s more data available on the surface of Mars than the surface of the ocean floor — one could say we found in a kind of numbing of the human mind and in the adoption of the non-human perspective the only appropriate course. The scientific method, for which I have immense respect, tends to lack a holistic overview. Instead it’s mechanistic, deconstructing multifactorial systems to a collection of parts to be studied and reassembled, and that would be inadequate to understanding the infinite complexities of an ecosystem such as the ocean as a whole, not to mention the effects humankind has on it. It’s simply too large to reduce to parts.
Instead we became the non-human, exploring their perspectives and relationships to the ocean through artistic mediums such as writing, role-play, interpretive performances, sculptures and visual representations. Of course there was a lot of research at the core — how else would one be able to transform if one doesn't understand what one is transforming into? — and we were lucky to have a marine biologist readily available for any questions we may have had. It was only after we had fully tuned into the non-human protagonists of the ocean that we finally could dwell. And after dwelling we could look around. And only then could we look upon ourselves, mankind, as we truly are.
MF: Gostaria de te pedir que partilhasses connosco a tua primeira aproximação ao escritor português Fernando Pessoa e aos seus heterónimos, por relação ao tema central desta exposição Multiplicidade. Apesar de serem heterónimos humanos, são alter-nativos (alter=outro); i.e., outros habitantes de um interior que podem estar a apontar alternativas. Em outras palavras: No teu criativo processo, como é que a alteridade desempenhou um papel significativo na narração da história do Norskehavet?
JS: Não conhecia a obra de Fernando Pessoa até há pouco tempo — tendo até agora lido apenas a poesia de Alberto Caeiro —, mas de imediato conectei-me com ele e reconheci as nossas semelhanças. Na minha exploração de corais de águas frias, percebi que seria impossível transferir meu profundo fascínio assim como a minha preocupação pelos corais a qualquer visitante com pouca capacidade de expandir o foco da sua atenção, estando disponível para exposições coletivas tão grandes. Em vez disso, decidi deixar os corais falarem através de mim. Assim como Pessoa e seus heterónimos, tornei-me a Nação Coral para que eles pudessem escrever, desenhar e se comunicar por si mesmos. É um exercício de empatia, que vem com muitas questões morais — tais atos de antropomorfização não serão uma espécie de colonização mental? — mas uma vez que o outro emerge, não se pode deixar de recostar e apreciar o espetáculo. Acalmo as minhas dúvidas lembrando-me de como os corais não teriam voz de outra forma.
MF: I’d like to ask you to share with us your first approach to the Portuguese writer Fernando Pessoa and his heteronyms, in relation to the core subject of this exhibition, Multiplicity. Despite being human heteronyms, they’re alter-natives (alter=other); i.e, other inner inhabitants that might be pointing out alternatives. In other words: In your creative process, how did Otherness play a significant role in the narration of the Norskehavet’s story?
JS: I didn’t know of Fernando Pessoa’s work until recently — thus so far having only read the poetry of Alberto Caeiro —, but immediately connected to him and recognized our similarities. In my exploration of cold-water corals I came to the realization that it would be impossible for me to transfer my deep fascination, but also my worry of the corals to any visitor with the short attention spans, available at such large collaborative exhibitions. Instead I decided to let the corals speak through me. Much like Pessoa and his heteronyms I became the Coral Nation so they could write, draw and communicate for themselves. It’s an exercise in empathy, which comes with many moral questions — isn’t such acts of anthropomorphication a kind of mental colonization? — but once the other emerges one cannot but lean back and enjoy the show. I ease my doubts by remembering how the corals wouldn’t have a voice otherwise.
MF: Aumentámos agora o tom lúdico da nossa conversa, espero, tanto quanto a empatia por outras formas de vida. Ocorreu-me a história bíblica Jonas e a Baleia e sua arriscada, porém, no final, milagrosa morada no ventre da baleia — já que a baleia se torna um salva-vidas como a minha colega foi para ti. Além disso, considerando ser parte da cadeia alimentar, como mencionas no Plea of the Coral Nation, mas não no final dela — podemos ser engolidos pela catástrofe ecológica em que estamos e não ter a chance de terminar numa costa segura. Acreditas que, paradoxalmente, a nossa experiência de habitar precisa ser mais informada pela nossa própria fragilidade no mundo, a fim de aprofundar uma sensação de segurança baseada na segurança de outras formas de vida? Por favor, comenta, do ponto de vista do norueguês Jonas, um heterónimo de Norskehavet.
JS: Bem, o Jonas descontraído diria… um momento, tenho que sintonizar…
Sim. Fácil! Ao olhar para o nosso planeta como um todo, obviamente não é uma coleção de partes individuais, mas um ecossistema infinitamente complexo de relações interdependentes. A humanidade moderna tem uma estranha tendência de se considerar acima do ecossistema e se recusar em integrar-se na teia de formas de vida lá fora. Hoje em dia, estamos a cortar muitos fios e estamos prestes a aprender o que isso significa para nós. Às vezes pergunto-me o que aconteceria se todos adotassem um animal selvagem. Esquilos, ursos, girafas, baleias co-habitando com humanos em habitações loucas adaptadas para ambos. Isso não promoveria a empatia interespécies?
A vida é frágil, também a nossa, e nenhuma vida existe isolada de outras formas de vida. Se entendermos isso coletivamente, tenho certeza de que ficaremos bem.
MF: We’ve now increased the playful tone of our conversation, hopefully, as much as the empathy for other lifeforms. It has occurred to me the Bible story Jonah and the Whale — or Jonas — and his risky, though, at the end, miraculous dwelling inside the whale’s belly — since the whale becomes a lifesaver like my colleague was to you. Moreover, considering being part of the food chain, as you mention in the Plea of the Coral Nation, however not at the end of it — we might be swallowed by the ecological catastrophe we’re in and not having the chance to end up at a safe coast. Do you believe that, paradoxically, our dwelling experience needs to be more informed by our own fragility in the world, in order to deepen a sense of safety based on other lifeforms safety? Please comment, from the point of view of the Norwegian Jonas, an Norskehavet’s heteronym.
JS: Well, casual Jonas would say… one moment, I gotta tune in…
Yeah. Easy! When looking at our planet as a whole, it’s obviously not a collection of individual parts, but an infinitely complex ecosystem of interdependent relationships. Modern humanity has a weird tendency of considering itself above the ecosystem and refusing to integrate into the weave of life forms out there. These days we’re cutting way too many threads, and we’re about to learn what that means for us. Sometimes I wonder what would happen if everyone adopted a wild animal. Squirrels, bears, giraffes, whales — co-living with humans in crazy dwellings adapted for both. Wouldn’t that foster interspecies empathy?
Life is fragile, also ours, and no life exists in isolation from other forms of life. If we collectively understand that, I’m sure we’ll be okay.
<<<
Jonas Høiness
É um arquitecto norueguês-iraniano preocupado com o Antropoceno, colonialismo, Direitos Humanos e os aspetos experienciais do espaço. Explora contra-narrativas para o sistema estabelecido através de atos performativos devir Outro, humano ou não-humano, rendendo-se e permitindo que fale e aja através de si. Atualmente é um fungo.
Madalena Folgado
É mestre em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Artes da Universidade Lusíada de Lisboa e investigadora do Centro de Investigação em Território, Arquitetura e Design; e do Laboratório de Investigação em Design e Artes, entre outras coisas.
Notas:
[1] Mary Ann Hoberman citada por Timothy Morton, "Architecture without Nature", pp. 1-6. in Academia.edu, 2012, consultado a 4 de Novembro 2022, p. 6.
[2] Numa troca de mensagens, no Verão do corrente ano, com o psicologo doutorado e fenomenologo norte americano Rudolf Bauer questionei-o sobre qual seria a sombra da experiência do encanto, que também traduziria por graça, dada a agressividade com sempre se encontra. A sua resposta, que pela experiência atesto, foi grandiosity, bem diferente de greatness, pelo que, aqui, traduzo por grandeza. Encontro na obra de Agustina Bessa-Luís, quanto à tal experiência de agressividade em sombra (ou na mania das grandezas) um testemunho de extrema importância, razão pela qual considero a escritora, reitero, uma das mais importantes interlocutoras quanto a este tema.
[3] Cf. Agustina Bessa-Luís, "Conferência em Granada" in Contemplação carinhosa da angústia, Lisboa, Guimarães, 2000, pp. 155-163, p. 163. "Tentei provar aqui como vivo e procedo fora de quaisquer ideias fixas. Podeis verificar que ser escritora não é caso de ideia fixa; é uma cisma do coração, não uma ideia fixa".
[4] Cf. Luiz Camillo Osorio, "Deslocamentos da reprodutibilidade da arte: ainda Duchamp", in Artecapital, 29 de Agosto 2022, consultado a 22 de Novembro 2022. "Como Duchamp afirmaria anos depois, o coeficiente artístico de uma obra é a soma entre aquilo que o artista quis fazer e não conseguiu, mais aquilo que não pretendeu e surgiu (a partir do olhar ativo dos espectadores, da posteridade crítica)".
[5] Timothy Morton, Being Ecological, Sl., Pelican Books, 2018, p. 92.
[6] Ibid., p. 17-19.
[7] No âmbito da minha colaboração com Os Espacialistas, no workshop dirigido com o artista Tadashi Kawamata, da qual resultou a instação Overflow, exposta na galeria oval do MAAT.
[8] Timothy Morton, op. cit., 2018. p. 93, 94.
[9] Timothy Morton, op. cit. 2012, pp. 2, 3.
[10] Ibid., p. 1.
[11] Timothy Morton, op. cit., 2018. p. 52.
[12] Ibid., p. 53.
[13] Timothy Morton, op. cit. 2012, p. 3.
[14] Por cortesia dos autores, apresenta-se aqui em versão digital o trabalho exposto em suporte físico, na exposição Mulplicidade da Trienal de Arquitetura 2022, Terra, com lugar no Museu Nacional de Arte Contêmporanea do Chiado até 18 de Janeiro de 2023.
[15] Cf. Paulo Martins Barata, "Trienal de Lisboa: Terra a mais e arquitectura a menos", in Público, 2 de Novembro 2022, consultado a 4 de Novembro 2022.
[16] Timothy Morton, op. cit., 2018. p. 33.
[17] Cf. José Gil, Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações, Lisboa, Relógio d'Água,
[18] Timothy Morton, op. cit., 2018. pp. 128, 129.
[19] Ibid., p. 83.
[20] Timothy Morton, op. cit. 2012, p. 6.