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A ROOM WITH A VIEW
SUSANA LOBO
– A Signora não podia fazer uma coisa destas – disse Miss Bartlett – de maneira nenhuma. Tinha-nos prometido quartos para o sul com vista, e juntos. E em vez disso estamos em quartos para o norte, isto são quartos para o norte, dão para um pátio e estão muito separados. Oh Lucy!
– E além disso é cockney! – disse Lucy que tinha ficado ainda mais escandalizada pelo inesperado sotaque da Signora. – É como se estivéssemos em Londres. – Olhou para as duas filas de ingleses sentados à mesa, para a fila de garrafas de água e de vinho tinto que corriam entre eles, para os retratos da falecida Rainha e do falecido Poeta Laureado pendurados atrás, com pesadas molduras, para a nota da igreja Anglicana (Rev. Dr. Cuthbert Eager, Oxford), que era a outra única decoração da parede. – Charlotte, não tens também a sensação de que podíamos muito bem estar em Londres?
Edward Morgan Forster, A Room with a View, 1908
Um quarto com vista é como um lugar à janela. Comprova, em tempo real, a autenticidade da experiência da viagem. De uma deslocação, física, mas, também, emocional. Por isso, quando chegados ao quarto de hotel, o primeiro gesto é sempre o de correr a cortina, confirmar se a vista corresponde à do “postal ilustrado”, se reconhecemos alguns dos signos que nos são familiares. Depois, lá verificamos se tem mini-bar e televisão por cabo. E a paisagem passa para segundo plano.
Face à estratégia de estandardização que se generalizou, ao longo das últimas décadas, no universo das grandes cadeias hoteleiras internacionais (mas não só), em que a um nome-marca se passou a associar uma imagem identitária, homogénea e reprodutível, independentemente da sua localização, com continuidade na filosofia low cost dos easyHotel, surge, agora, em contracorrente, a ideia de design hotel. É um conceito perverso. Afirma uma singularidade como se não houvessem experiências antecedentes (basta lembrar a “obra total” do Radisson SAS Royal Hotel, em Copenhaga, de Arne Jacobsen, para a qual desenha, entre outras peças, as cadeiras Egg e Swan; ou, no contexto português, as parcerias de Daciano da Costa no Hotel Alvor-Praia, com Alberto Cruz, e no Hotel-Casino do Funchal, com Óscar Niemeyer e Viana de Lima). Aposta na diferenciação como se design fosse uma coisa exclusiva, em todos os sentidos (abordagem explorada, desde a década de 40, pelas Pousadas de Portugal). E traduz arquitecto como sinónimo de designer, ou vice-versa. Design, palavra da moda, é, como esta, tão transitória e superficial como as tendências ditadas, pelo star system da indústria, em cada estação.
Mas, afinal, o que é isto do hotel design? Um modelo formal com características tipológicas específicas ou apenas mais uma categoria no sistema de classificação hoteleira, que já não se revê nas tradicionais “cinco estrelas”? Um novo caminho para a experimentação conceptual em torno da temática da arquitectura do hotel ou uma simples operação de charme de um sector esgotado em fórmulas obsoletas e à procura de novos mercados? E como encaram os projectistas (arquitectos e designers), mas também os promotores hoteleiros, esta “nova” parceria? Até que ponto tem estimulado propostas e políticas, arquitectónicas ou turísticas, inovadoras?
São estas algumas das questões suscitadas pela visita à exposição REACÇÃO EM CADEIA: TRANSFORMAÇÕES NA ARQUITECTURA DO HOTEL, integrada no Programa de Arte Contemporânea do Allgarve’08, a cargo da Fundação Serralves. Uma coisa é certa, Arquitectura e Turismo são hoje duas realidades inseparáveis. A Arquitectura alimenta-se do Turismo como o Turismo da Arquitectura. Finalmente se vê retomado o debate disciplinar desencadeado pela explosão turística dos anos 60. Será isto porque assistimos a um novo “boom” do turismo (segundo o estudo Tourism 2020 Vision, da Organização Mundial do Turismo, cerca de 1,6 milhares de milhões de turistas em trânsito previstos para 2020)? Ou porque, na verdade, sob diferentes formas e modelos, nunca deixámos de viver aquela experiência? Como Hans Ibelings afirmou em Coimbra, no Seminário Cidades e Frentes de Água realizado em Março de 2006, “Tourism is not an exception, it has become a rule”.
1. Arquitectura e Turismo
Projecto de Luis Tavares Pereira, comissariado em parceria com Paula Santos e Paulo Martins Barata, a provocação lançada este ano, em Loulé, surge na sequência de “Arquitectos Europeus em Trânsito”, que teve lugar na Fábrica da Cerveja de Faro, em 2007. Do percurso individual de alguns dos mais conceituados arquitectos europeus da actualidade, somos transportados, agora, para uma perspectiva alargada à escala global, tendo como pretexto de reflexão o “Hotel”, enquanto epítome da condição pós-moderna (o “alojamento genérico da Cidade Genérica”, de Rem Koolhaas).
A proposta, organizada em dois núcleos expositivos, o Palacete da Quinta da Fonte da Pipa (Parte I) e o Lagar das Portas do Céu (Parte II), estrutura-se a partir do cruzamento simultâneo de leituras disciplinares distintas, mas em franco diálogo. Num primeiro momento confrontam-se a série fotográfica H08, de Paulo Catrica, a poesia Resgate, de Jorge Gomes Miranda, e um primeiro conjunto de entrevistas vídeo, Hospitabilidade, realizadas por Paulo Martins Barata e Luis Tavares Pereira a diversos criadores (arquitectos, designers, promotores e hoteleiros), entre 29 de Maio e 18 de Julho de 2008. É este módulo que estabelece a transição para um segundo momento, onde se apresentam as restantes entrevistas, a par da antologia de textos literários e ensaísticos, Hotéis como Casas/Casas como Hotéis, da responsabilidade de Jorge Gomes Miranda, e da exposição de projectos de hotéis contemporâneos, nacionais e internacionais, Reacção em Cadeia: transformações na arquitectura do hotel.
Em pleno período de férias de Verão, a oportunidade do tema em debate não podia ser a mais acertada. Ou não nos encontrássemos no Algarve. Pelos dados enumerados em “Turismo”, painel de introdução à exposição, este sector “representa cerca de 35% das exportações de serviços mundiais” e “os gastos efectuados por turistas no estrangeiro atingem a média de 2 milhares de milhões de USD por dia”. Neste panorama, a indústria hoteleira afirma-se como área estratégica de investimento, obrigando os profissionais da actividade a especializar a sua oferta, em resposta às exigências de novas tipologias turísticas.
Dentro da política de descentralização e de consciencialização patrimonial defendida pelos coordenadores do programa Allgarve, propondo a recuperação de lugares, memórias e percursos alternativos à tradicional oferta turística e cultural da região, a escolha dos espaços – o Palacete e o Lagar - é, também ela, extraordinariamente feliz, contribuindo para exponenciar o projecto expositivo de Ainda Arquitectura com Paula Santos e, no seu todo, a experiência do visitante. No entanto, teria sido interessante explorar a hipótese, levantada inicialmente, de intervir em equipamentos hoteleiros existentes, ainda que com as necessárias restrições decorrentes do seu habitual funcionamento, estimulando ao limite a relação entre contexto e conteúdo. Esta combinação teria tido, necessariamente, outro alcance. Quer no confronto directo entre a nova geração de hotéis de produção contemporânea e algumas das propostas mais emblemáticas da arquitectura hoteleira portuguesa dos anos 60 (Hotel do Garbe, Hotel Mar e Sol, Hotel Algarve, Hotel Alvor-Praia, Hotel da Balaia). Quer, por exemplo, numa tradução espacial de “Resgate”, inédito de poesia de Jorge de Miranda (Átrio, Quarto, Rent-a-Car).
2. Reacção à cadeia/Reacção em Cadeia
Chain Reaction remete-nos instintivamente (a mim e, pelos vistos, também ao Luis Tavares Pereira) para Diana Ross. Mas é “ao som” do álbum Substance, dos Joy Division, que percorremos a exposição. Editado, em 1988, pela Factory Records, recupera, na capa idealizada por Peter Saville, o New Alphabet de Wim Crouwel, desenhado em 1967. É este o fio condutor que a dupla encarregue da concepção gráfica da exposição, Artur Rebelo e Lizá Ramalho (R2design), estabeleceu para garantir a unidade de um projecto extremamente fragmentado e disperso, no espaço e nos conteúdos. Embora ilegível, e o próprio Crouwel o admite (experiência que, cruzando com o ensaio de Frederic Jameson “Pós-modernismo, ou, A lógica cultural do capitalismo tardio”, nos remete para a transcendência do hiperespaço pós-moderno), implicando a sua “tradução simultânea” em todas as legendas da exposição, enquanto exercício teórico, o New Alphabet partilha de um mesmo sentido de ruptura, de experimentação e de desconstrução evidenciado nas mais recentes abordagens ao conceito clássico (ou moderno) de “Hotel”.
“Reacção à cadeia” (à política de uniformização subjacente a esta fórmula de gestão empresarial), “Transformações na arquitectura do hotel” é também, uma “reacção em cadeia”, e a quantidade de projectos presentes confirma-o. Seleccionados pela sua pertinência para a discussão levantada, pela originalidade das soluções encontradas e pela diversidade de tipologias propostas, a apresentação dos projectos (construídos ou em desenvolvimento) encontra-se organizada por temas arquitectónicos específicos, consciente e propositadamente, não transparentes (ou não legíveis, como o New Alphabet), subentendendo-se nesta decisão a crítica à categorização serial e linear alimentada pela indústria hoteleira (“património”, “boutique”, “charme”, “design”, “eco”, “leisure”). Na impossibilidade circunstancial de se aprofundar a leitura individual de cada um dos projectos (ao todo, são expostas oitenta obras, encenadas numa estrutura quadriculada que nos reporta para a estandardização do quarto de hotel convencional, e, subliminarmente, para a obsessão por grelhas do “gridnick” Wim Crouwel), do extenso grupo reunido destacam-se, em “Tipologias/Corredores” e “Tipologias/Quartos”, os exemplos mais significativos para o momento de inovação “contagiante” que se vive no sector, sugerindo-se uma comparação entre os princípios normativos sistematizados por Ernst Neufert na sua Arte de Projectar em Arquitectura, (Bauentwurfslehre: Handbuch für den Baufachmann, Bauherren, Lehrenden und Lernenden, com primeira edição, alemã, de 1936), e as combinações de organização e vivência espacial emergentes. São o caso, por exemplo, das performances ambientais de Matali Crasset, no Hi Hotel de Nice; da desconstrução tipológica proposta pelos MVRDV, no Lloyd Hotel de Amsterdão; do regresso figurado ao conforto da “caverna primitiva” sugerido pela equipa OMA+Herzog & de Meuron, no Astor Place Hotel de Nova Iorque; ou da procura de uma essência construtiva do “luxo”, levada a cabo pelos RCR Arquitectes, nos Pavilions Les Cols Restaurant, em Olot. Não se reduzindo à vertente estética de uma abordagem meramente decorativa, estas propostas desafiam os estereótipos da indústria, questionando, a partir dos fundamentos da arquitectura e do design, a identidade da própria situação contemporânea. Pistas para uma discussão futura, pena é que este núcleo não tenha sido mais desenvolvido.
2. Hospitabilidade
Outras possibilidades de reflexão são potenciadas pelas entrevistas a “criadores de hospitabilidade”, onde “casulos” suspensos servem de alegoria à metamorfose a que assistimos no actual panorama da produção hoteleira. Criando espaço dentro de um espaço, estas estruturas definem importantes pausas de introspecção e recolhimento na narrativa da exposição (por isso, não se percebe porque este sistema é adoptado apenas no Palacete). Tal Telémaco em casa de Nestor, Paulo Martins Barata e Luis Tavares Pereira, remetendo-nos para a Odisseia de Homero, encontram o significado de hospitabilidade na “multiplicidade de experiências, contradições, vontades, intuições, visões e desejos” que percorrem os discursos, pensamentos e estratégias desenvolvidos em torno do programa do hotel. Para isso, recorrem ao depoimento de alguns dos intervenientes neste processo, entre promotores, hoteleiros, arquitectos e designers.
Das doze entrevistas realizadas sobressaem, por um lado, a preocupação com a definição contemporânea de “luxo” e de “conforto”, entendendo-se, o primeiro, como “a capacidade de todos os caprichos serem satisfeitos”, (José Miguel Júdice, Lágrimas Hotels & Emotions) ou, numa abordagem mais democrática, como “a percepção de qualidade, a percepção do material” (Antonio Citterio, Arquitecto e Designer Industrial), e, o segundo, como uma das questões mais estimulantes na discussão do que é “um bom hotel” (André Balazs, Hoteleiro), sendo que, em ambos os casos, “um bom arquitecto dá um valor diferencial importante” (Antonio Catalán, AC Hotels); mas também a reivindicação de uma legislação que acompanhe e antecipe a emergência de um “mundo em mudança” (Simon Woodroffe, Yotel). Por outro, desenvolvem-se considerações sobre “identidade”, com dois “caminhos possíveis: o da caracterização (autêntico) e o da imposição (superficial)” (João Pedro Serôdio, Serôdio Furtado & Associados); sobre a relação promotor/hoteleiro/projectista, distinguindo-se o hoteleiro por raramente possuir “experiência no sentido do utilizador” (José Carlos Cruz, Arquitectura e Interiores); e sobre “o hábito enraizado da separação entre arquitectura e o design de interiores”, ou de “quando se concebe um hotel, e sendo da mesma cadeia, ter de se fazer o mesmo ambiente quer em Paris, Tóquio, Porto...” (Álvaro Siza Vieira, Arquitecto). Artur Miranda e Jacques Bec (oitoemponto, interior design) lançam o tema para a antologia de Jorge Gomes Miranda, “Hotéis como casas/Casas como hotéis”, lembrando que “primeiro queriam que o hotel fosse como a casa, de seguida desejaram que a casa fosse como um hotel e depois tornaram a voltar à mesma coisa”. Em tom de desafio, arriscam ainda a ideia de “confeccionar um quarto à medida de cada pessoa”, ao encontro da crescente “vontade de tornar o cliente numa peça única”, deixando em aberto hipóteses de prolongamento da discussão que esperamos não serem esquecidas (infelizmente, a reprodução das entrevistas não está contemplada na publicação do catálogo).
3. Hotéis como casas/Casas como hotéis
A proposta de cruzar, num mesmo instante e num mesmo suporte, textos publicados nas últimas quatro décadas e com estruturas tão díspares quanto as da poesia, do romance, do conto, da peça de teatro e do ensaio, sugere a necessidade de se cartografar com maior rigor a geografia do hotel contemporâneo. Condicionada pelo carácter selectivo da antologia, deixando de fora algumas contribuições que, não sendo exclusivas à reflexão proposta, poderiam traçar novas perspectivas de aproximação ao tema, esta leitura paralela e em “simultâneo” (como a tradução, nas legendas, do New Alphabet), dá-nos as ferramentas para decifrar o alcance real dos projectos apresentados. Tal como o hotel, também a antologia alberga corpos em movimento, no espaço e no tempo, afirmando-se como lugar privilegiado de troca de experiências. Espécie de Hotel Puerta América de papel, em que cada piso/texto encerra a interpretação pessoal de um determinado autor.
O facto de se estabelecer como limite temporal, da recolha de textos realizada, a década de 60, é revelador do impacto que o fenómeno do turismo de massas teve na sociedade de consumo capitalista (Portugal atinge o primeiro milhão de turistas, em 1964, e o segundo milhão, em 1967), reforçando a ideia de que é na continuidade deste primeiro impulso que gravitamos ainda hoje. Curioso é verificar o aparente desequilíbrio que se verifica entre os géneros de produção literária associados a este objecto (na antologia referenciam-se 19 poemas, 31 romances, 4 contos, 1 peça de teatro e 11 ensaios). Se o hotel povoa, desde sempre, o imaginário nostálgico da narrativa romântica (e pós-moderna), o mesmo não se pode dizer sobre a sua centralidade para o discurso formal da crítica. Quer isto dizer que a crítica exclui o romance? Paulo Catrica mostra-nos que não, no seu “ensaio fotográfico” H08.
4. H08
Encomenda específica para este evento, o olhar de Paulo Catrica documenta, a partir de Londres, as transformações na arquitectura do hotel. Centro nevrálgico do pulsar contemporâneo, é aqui que algumas das principais empresas de serviços hoteleiros, como a consagrada Hyatt Hotels & Resorts ou a mais recente YOtel, encontram espaço para inovar, quer segmentando-se em novas marcas, como a ANdAZTM, quer desenvolvendo novos produtos, caso dos hotéis cápsula do Gatwick South Terminal e do Heathrow Terminal 4, que propõem experiências pessoais únicas, aliando contextos singulares a conforto, design e tecnologia.
As imagens de Catrica são imagens “arquitectónicas”. Não só porque falam de arquitectura, mas porque pensam e olham o espaço como um arquitecto. São imagens limpas, “belas”, despidas de pessoas e de ruído, que revelam, a cru, um mundo tudo menos perfeito (fazendo um contraponto com a exposição Mundo Perfeito, de Fernando Guerra). São lugares em suspenso, quase não-lugares, vazios provisórios que antecipamos encherem-se de vida (e de romance), a qualquer instante. São olhares cirúrgicos, intencionais, mas não, por isso, isentos de nostalgia.
Ficamos à espera do catálogo.
Susana Lobo
Arquitecta (Darq/FCT, Universidade de Coimbra). Prepara tese de doutoramento na área de História e Teoria da Arquitectura, pela Universidade de Coimbra, sob o tema “Arquitectura e Turismo”, orientada pelos Professor Doutor José António Bandeirinha (Darq/FCTUC) e Professora Doutora Ana Tostões (IST/UTL).
É bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.