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ARQUITETURA E DESIGN




desenho de casa, de planta irregular ©Bruno Lopes


desenho de casa. pára vento ©Bruno Lopes


desenho de casa. empena norte ©Bruno Lopes


desenhos de casas pormenores. com vista de jardim ©Bruno Lopes


vocabulários de formas e materiais ©Bruno Lopes


“Dieses ist lange her/ Ora questo é perduto†(1975)


desenho de vento ©Bruno Lopes


entre águas ©João Krull


Vista de exposição


Vista de exposição


Vista de exposição "desenhos de casas para ti" ©Bernardo Gonçalves


Vista de exposição "desenhos de casas para ti" ©Bernardo Gonçalves

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OH, AS CASAS, AS CASAS, AS CASAS...

FILIPA ALMEIDA


 

 

 

 

 "A maneira como tu és e eu sou, o modo segundo o qual somos homens sobre essa terra é o Buan, o habitar."
 

Martin Heidegger

 

 

Estou à porta da Galeria 3+1. Está um fim de dia ventoso e inquietante. Consigo, cá de fora, vislumbrar alguns traços de Carlos Nogueira na parede. Entro.

Na sala de cima, começo por pensar nestes traços como desenhos – como o próprio lhes chama – porque penso no preto da grafite sobre o branco das paredes; que podiam ser folhas de papel, ou de luz, e porque são pesos que são leves. Há na solidez e opacidade do aço, da madeira e do carvão, pousadas como apontamentos sugestivos e geométricos na parede, à altura dos olhos, uma fragilidade do traço, da linha que se desenha sem se saber. Trata-se, portanto, do que emerge sem se elaborar nem controlar, da casa que se tece, da relação em construção. Pelas palavras de Mia Couto: "[…] uma casa em flagrante acto de nascer" [1]. Ou, ainda: "A edificação que não revela o esforço: essa é a marca primeira da beleza" [2] – Dir-se-ia, rasgo a rasgo, compondo um mundo de casas que Carlos desenha e reinventa para ti.

Não penso nestas casas para nós, como o título poderia sugerir, ou para mim; penso nestas casas para ti. Alguém que eu não vejo quem é, que eu não posso conhecer; alguém que não sou eu, como quando gosto de observar e sentir algo recebido por outro, com a distância precisa de não ser para mim – esse espaço que eu observo de fora para dentro onde me descubro testemunha; deste presente – dom – ao qual sou convidada a assistir.

Todas as peças da sala de cima são cobertas de um negro duro, opaco, difícil de furar. Estão unificadas como parceiras nesta luta; querem todas ser casa – já o são. Na primeira peça, “Desenho de casa, de planta irregular”, lembro-me de uma cadeira. Poderia sentar-me em cima, ou proteger-me no seu centro – mas é torta, irregular, não sei se aguentaria comigo.
Como escrito no texto curatorial, “pára vento” e “empena norte”, peças expostas e ainda na sala de cima, “resguardam-nos do vento e da luz". Recordo por isso um texto do filósofo Martin Heidegger intitulado "Construir, habitar e pensar" [3], em que somos levados a percorrer um caminho sobre estes conceitos e sentidos. Onde, “O traço fundamental do habitar é esse resguardo. O resguardo perpassa o habitar em toda a sua amplitude”. [4] – um resguardar que liberta por deixar ser, enquanto a condição essencial para habitar. Na peça “desenhos de casas pormenores. com vista de jardim”, as linhas que à partida são mais lineares e rectas abrem-se para uma assimetria ou um acidente de onde nascem recantos para entrar a real Primavera; desordenada e de rompante. Abre-se uma geometria diferente: A da luz e a do tempo, que se deixa existir e escapar por essas fendas devolutas, trilhos de passagem para o espanto, ainda que envolva estranheza. No centro da sala oiço a água correr, sem pressa, numa tarde morna de Outono.

Se em cima percorro os seus desenhos negros, dentro da sua casa errante e flutuante, quando desço, estou no seu atelier e vejo tudo branco – Na extensão do seu atelier, que se estende à exposição, que se estende à casa; neste trânsito de espaços que se (con)fundem e se entrelaçam, atravessando-se e nutrindo-se. Temos agora uma mesa (mesa-atelier, mesa-objecto, mesa-união, mesa-vida, mesa-pormenor) e um desenho de vento na parede. Na mesa estão colocados muitos objectos, caiados de branco – um espaço de memórias e ruínas, que, sem terem a desordenação de Aldo Rossi, lembram a sua ideia de perda e renovação, no seu desenho “Dieses ist lange her/ Ora questo é perduto” (1975), sobre o qual Vittorio Magnano Lampugnani
nos diz:

     

"Mesmo que um olhar desencantado sobre o caos de uma nova época de crise tenha inevitavelmente de confirmar que agora tudo isto se perdeu, que a clássica ordem das coisas se desmoronou irremediavelmente, para Rossi isso ainda não é motivo de resignação. A cada desenho, o longo e enfadonho processo para criar ordem a partir da confusão desesperada do nosso tempo começa com renovada determinação." [5]

 

Da ruína e dos restos, continuar a criação. Da extinção, ser o novo. O corpo colectivo que é esta peça relembra-me que montagem é pensamento; que é necessário experimentar “origamis” e ver de vários ângulos – Porque as coisas podiam estar com uma disposição diferente e seriam uma coisa diferente, teriam outro sabor, outro ângulo de leitura, e, sobretudo, estariam a mostrar outra parte de si. Aqui mostram-se em lua cheia, todas brancas, luminosas, resplandecentes, podiam mesmo ser outras; noutra madrugada, noutro tempo, noutra configuração. O “desenho de vento” é composto por vários ferros retorcidos; ferros de espera, que sinto terem a memória do vento gravada na coluna, que se dobraram com o tempo, que guardaram o gesto e mantêm a expressão e a expectativa. Criam sombras na parede e têm uma certa inocência, ou uma aceitação do sopro – deixam-se moldar sem temer no que se vão transformar.

Saio da galeria e, como curiosamente li no texto escrito pela Carolina Grau, curadora desta exposição, olho para as imponentes árvores do largo Hintze Ribeiro e percebo que, através dos vazios entre as folhas (voltamos sempre aos vazios como espaços que permitem e que abrem), com o vento, posso ver passar a luz; fulgurante a esvoaçar.

Curiosamente, só aqui chegada, percebi que havia mais ecos de Carlos Nogueira pela cidade. Havia outros habitats por descobrir, mais portas e divisões por onde entrar. Senti que fazia sentido caminhar, de uma para a outra, e da outra para a próxima. E, que nesse itinerário e distância, nesse intervalo entre pistas, havia uma arquitectura do tempo e do espaço que era preciso ser atravessada. Estabelecer, inventar, essa ponte que nos liga aos três lugares diferentes onde estavam as peças de Carlos Nogueira obriga-nos a saber, como de um quarto de uma casa não se adivinha a luz do outro, que estamos perante o relacional e o aberto, por oposição ao fechado.

Saio, inevitavelmente, a pensar: "Quando verei o resto? Por hoje já tudo fechou." Portanto, prolongar no tempo e no espaço esta exposição, que eu vejo como uma só, fragmentada – como um todo por partes para poder ser – é deixar o vento soprar e o tempo demorar: "permanecer" enquanto um “de-morar-se” [6] leva-me a pensar que demorar é morar mais, morar lentamente, morar calmamente – como a casa se demora. Ter vários pontos de luz, sem medo que se espalhem, que dispersem. Existe essa unificação já nas suas peças; uma continuidade há muito esquecida. A desaceleração não imediatista que pedem conduz-nos ao compromisso. Volto a pensar em casa. 

Na sala principal do Museu Vieira da Silva, duas paredes efémeras delimitavam um pequeno anexo do espaço, criando assim condições para que as habitássemos. São estruturas construídas para esta exposição, onde está inscrito o seu nome: "sombras de vento, entre águas" e um texto do curador, David Revés. Foi construída uma pequena casa, apenas com uma divisão, dentro do museu. Por uma porta entro então neste anexo, onde impera um silêncio sereno, suave, mas poderoso. Por outras palavras, mas no mesmo silêncio: "O que eu não sei dizer é mais importante do que o que eu digo”, di-lo, Clarice Lispector, no texto curatorial da exposição anterior. 

Novamente a mesa. Aliás, duas mesas, que parecendo uma só, mantém uma distância que as separa. É também neste hiato de luz entre as duas mesas que nasce a tensão subtil desta peça - "entre águas". Estão quase juntas, mas não se chegam a tocar. Temos caixas pequenas e caixas grandes, caixas dentro de caixas, caixas claras e caixas escuras, todas pintadas e distribuídas ao longo da mesa, algumas sobrepostas, outras lado a lado. Vejo, novamente, um corpo colectivo de possíveis imagens ou paisagens às quais não temos acesso; um corpo colectivo de encaixe, de alongamento, de acrescentamento. Não temos todos espaço para esticar os braços ao mesmo tempo, e as coisas têm de caber como que dobradas, neste caso, sobrepostas e acumuladas, para caberem todas nesta casa – e estas caixas vivem na extensão e na tensão; na maneira como uma se liga a outra, se dá a outra, se mostra com outra, se desvenda ou se esconde com outra. Uma torna-se a expansão de todas, e, numa linguagem de aproximação, sinto um convite para olhar o inteiro, um convite para o encontro dentro deste que já está a acontecer – sou chamada a ver dentro desta dança quieta, "desta espera tensional, ou sensualidade latente", pelas palavras do curador David Revés. Na parede, outro desenho de vento - "sombras de vento" - dobrado mas não ressequido, antes rigoroso e límpido como um raio, certeiro, volta a bramir-me as marcas do vento.

Afinal, onde tudo começa é onde eu acabo – nos desenhos de casa para ti– que foi a pioneira destas três exposições. Tive o enorme privilégio e surpresa de ter contactado o Carlos por email e de ter recebido uma chamada sua, a convidar-me a visitar a exposicão com ele. E assim foi. Numa tarde de Primavera, às 17h30 da tarde, chego à porta – já aberta – e encontro o Carlos, à minha espera para este encontro e visita. Volto a ver o negro sobre branco. Vejo uma só instalação, e uma lareira a estalar, já baixinho, entre o fim da noite e o principiar da luz, quando já todos dormem. Vejo horizontalidade, verticalidade e circularidade, i.e., estou a percorrer um caminho de cima para baixo e de um lado ao outro, e também estou em volta das coisas, estou a atravessar-lhes os vazios, os meios, os nadas, os silêncios.

Estas casas, nesta cidade, lembram-me que do caos pode nascer abrigo; que mesmo do maior receio pode emergir uma estrutura, sabendo que as coisas “[…] ocupam os lugares que lhes são confiados". [7] Lembram-me, que é nas ausências, no entre –nessas escolhas caladas – que escapamos ao peso da escuridão, ou que aprendemos a vestir a sombra. Lembram-me que um lugar vazio é sempre um lugar do novo e um lugar do corpo, e que eu habito esses espaços; que é justamente nesses espaços que eu sou chamada a existir.

 

"[…] a casa não é onde o homem se fecha. É onde o Homem se abre para dentro”. [8]


 

Filipa Almeida

Nasceu em Lisboa, em 1996, cidade onde vive e trabalha. Licenciou-se em Ciências da Cultura e da Comunicação, na Faculdade de Letras. Realizou uma Pós- Gradução em Curadoria de Arte na Nova FCSH, um curso de Estética na SNBA, e está neste momento a realizar o Mestrado em Práticas Tipográficas e Editoriais Contemporâneas na FBAUL. 

 

 

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Notas:

[1] Mia Couto, “A casa de dentro” in Carlos Nogueira [website], Julho 2005 in https://carlosnogueira.com/pt/textos/textos-sobre-carlos-nogueira/42-a-casa-de-dentro.html (consultado dia 18 de Maio de 2022).

[2] Ibid.

[3] Martin Heidegger, “Construir, Habitar, Pensar”, in Martin Heidegger, Ensaios e Conferências, Petrópolis, Vozes, 2012.

[4] Ibid. p. 129.

[5] Vittorio Magnano Lampugnani citado por Diogo Seixas Lopes, in Diogo Seixas Lopes, Melancolia e arquitectura em Aldo Rossi, Lisboa, Orfeu Negro, 2019, p. 24.

[6] Martin Heidegger, op. cit, p. 129.

[7] Delfim Sardo “Voo doméstico" in Carlos Nogueira [website], Dezembro, 2015 in https://carlosnogueira.com/pt/textos/textos-sobre-carlos-nogueira/172-voo-domestico.html (consultado dia 18 de Maio de 2022).

[8] Mia Couto, op. cit.