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DA HESITAÇÃO DE HANS, OU SOBRE O MEDO DE EXISTIR
PEDRO MACHADO COSTA
Um périplo pela última década de representações nacionais de arquitectura fora de Portugal (Parte I/II)
Hans-Jürgen Commerell vacila por um momento. Provavelmente embaraçado com a pergunta. Possivelmente acanhado pela resposta que irá dar, sabendo que nada acrescentará à vulgaridade. E depois, pausadamente, lá vai dizendo: Siza. E para além de Siza? Poucos nomes: Souto de Moura, Aires Mateus… enumera o alemão, ainda hesitante com um engasgo que lhe servirá de pretexto para rapidamente mudar o rumo da conversa que está a ter com Alexandra Prado Coelho.
Hans-Jürgen Commerell pode, claro, ter sido simplesmente traído pela memória. Porque citar, assim, repentinamente, nomes de arquitectos portugueses não é, ao contrário do que se possa pensar, coisa fácil. Poderia até dizer-se que Hans se saiu bem na sua resposta, demonstrando uma atenção e um aceitável conhecimento do que se passa em Portugal no que se refere à arquitectura recente. Afinal os nomes elencados correspondem, grosso modo, às três mais habituais entradas de autores nacionais no topo da Baunetz Büro-Ranking [www.tinyurl.com/m9kwzd] – uma espécie de sistema de classificação que, enfim, permite medir o grau de reconhecimento de determinado autor através da simples contabilização de artigos sobre as suas obras, publicados em quinze das mais reputadas revistas europeias da especialidade.
No entanto, se Alexandra Prado Coelho – jornalista especializada em arquitectura do Público – tivesse, por acaso, questionado Hans-Jürgen Commerell sobre nomes de autores chilenos, ou japoneses, ou dinamarqueses que o Hans considerasse relevantes no actual panorama arquitectónico internacional - ao invés de lhe pedir nomes (como terá sido o caso) de portugueses –, então o tom da resposta teria sido concerteza outro.
Ao contrário de citar nomes de arquitectos que mais vêem a sua obra difundida em revistas como a Domus, a A+U ou a Casabella, Hans-Jürgen Commerell falaria, com grande probabilidade, de outros. De autores cujas obras teve oportunidade de ver, com plausível entusiasmo, em Setembro passado, na mais recente edição da Bienal de Arquitectura de Veneza. Desconfio, aliás, que o (provável) entusiasmo com que o alemão percorreu, nessa altura, os pavilhões dos Giardini não tivesse tanto a ver com a surpresa de contactar com esses novos autores – chilenos, japoneses, dinamarqueses – que despontam como cogumelos numa Biennale dedicada a confirmações, mais do que propriamente a revelações; mas com a constatação que tais autores eram os mesmos que, há um ano atrás, lhe tinham despertado a atenção numa qualquer exposição na Storefront, na Architectural Association ou no Archilab. Ao contrário da imensidão de seguidores da produção arquitectónica contemporânea cujas fontes passam ainda, sobretudo, pelos pontos de vista necessariamente generalistas de homens como Nobuyuki Yoshida (A+U) ou Alex Sowa (o voluntarioso alemão que dirigiu até há pouco tempo a recém-desaparecida L’Architecture d’Aujourd’Hui), a Hans-Jürgen Commerell não lhe interessará particularmente o conteúdo do último projecto que Siza (não) expõe em Veneza.
Isto porque Hans é responsável por uma das instituições privadas que, na Europa, mais tem contribuído para a divulgação de paradigmas emergentes, acompanhando (muito) de perto novos autores, novos projectos, novas ideias que, aqui e ali, vão despontando. Ideias, projectos, autores cuja relevância não é, claro, comparável à de Siza; mas cujo empenho, cujo trabalho e cujos registos têm vindo a contribuir mais para o desenvolvimento do pensamento e da reflexão disciplinar do que propriamente os registos autorais algo solitários do mestre português.
Essa instituição é a Aedes [www.aedes-arc.de], sediada em Berlim, que tem, desde o princípio da década de oitenta, orientado a sua programação em torno daquilo que potencialmente abre novas perspectivas disciplinares, apostando em revelar nomes emergentes, cujas acções se distinguem por uma ou outra razão. Assim, se é verdade que na programação da galeria berlinense encontramos registo de exposições de autores tão conhecidos como Koolhaas, Hadid ou o próprio Siza; também não o deixa que o reconhecimento que deles temos se deve, em parte, à própria Aedes. Senão veja-se: em 1981, em 1984, ou em 1985 – datas em que a Aedes expõe, pela primeira vez, o trabalho de cada um deles – qualquer desses nomes era tão influente para o meio arquitectónico internacional como hoje o são, por exemplo, Thomas von Ballmoos ou Bruno Krucker: os últimos autores a verem o seu trabalho exposto na instituição.
Foi exactamente na Aedes que se terá passado a curta conversa entre Hans-Jürgen Commerell e a jornalista Alexandra Prado Coelho, que se encontrava em Berlim a convite da Ordem dos Arquitectos. A ocasião: a inauguração da última mostra oficial de arquitectura portuguesa no estrangeiro, denominada Arquitectura: Portugal Fora de Portugal. A exposição, organizada pela Ordem dos Arquitectos a pedido da Presidência da República (a pretexto da visita de estado de Cavaco Silva à Alemanha), comissariada por Ricardo Carvalho, juntava 21 obras, construídas ou “em vias de o ser”, no estrangeiro, da autoria de arquitectos portugueses. Lá estavam trabalhos de Siza, de Souto Moura e de Aires Mateus, e de outros nomes também: Byrne, Carrilho da Graça, Bak Gordon ou ARX.
Partindo do pressuposto que Hans-Jürgen Commerell conhece suficientemente bem os circuitos da criação arquitectónica contemporânea, é de certa forma surpreendente constatar a sua aparente ignorância sobre o panorama disciplinar português; sobretudo se pensarmos que a conversa entre ele e Alexandra Prado Coelho ocorre exactamente no mesmo dia e no mesmo espaço onde tão extensa embaixada arquitectónica nacional se revela.
Poderia, claro, apontar-se a razão mais óbvia do alheamento de Hans sobre aquilo que se passa, nesse momento, na sua própria galeria: ao invés de procurar envolver a Aedes numa co-produção, Portugal Fora de Portugal opta, simplesmente, por pagar o espaço que irá ocupar; excluindo-se dessa forma da agenda que a instituição alemã vem vindo a pôr em prática. O facto, aliás, verifica-se: não há qualquer referência internacional à exposição portuguesa, e dela não vemos qualquer tipo de registo no historial da Aedes.
Julga-se no entanto que o lapso de Hans possa ter razões mais profundas. Talvez, para o alemão, seja difícil distinguir, por entre esses 21 projectos de autores portugueses, aquilo que é de Siza, de Souto de Moura, ou de Aires Mateus (os três nomes que conhecia) dos restantes arquitectos em presença. Talvez seja de facto difícil de as distinguir, às arquitecturas. Porque, ao contrário do que alega Ricardo Carvalho quando diz: “Arquitectura: Portugal fora de Portugal é inevitavelmente panorâmica […] porque se pretende mostrar vários modos e posicionamentos – não se procura[ndo] mostrar qualquer homogeneidade ou caução de escola, mas apenas uma pluralidade de posicionamentos com alguns temas culturais comuns […] mostra[ndo]-se essa opção curatorial numa mesa única, onde todos os projectos convivem e onde a heterogeneidade e diversidade se confronta[m] e ganha[m] complexidade…” [www.arquitectos.pt/?no=2020491568], o facto é que o conteúdo da mostra foi seleccionado de modo a dar a ideia de coerência identitária à criação arquitectónica nacional. Ricardo Carvalho opta, aqui, por fazer da arquitectura nacional uma dependência da tradição de velhos e menos velhos mestres, mais do que propriamente apostar na tal heterodoxia cujo termo Carvalho vai usando no seu discurso vagamente conciliador. Um discurso que esconde, evidentemente, nas suas práticas curadorias, a possibilidade da arquitectura portuguesa querer ser outra coisa que não a sincrónica (e, diga-se, algo anacrónica) sistematização de valores a que o próprio chamará de poética; tema esse que, obrigatoriamente, abordaremos, se queremos falar sobre as representações da arquitectura portuguesa no estrangeiro. Até por a poesis ser, como veremos, lugar comuns em quase todas elas. A adesão ao tema fará até com que Ricardo Carvalho cometa pequenas infracções às regras curatoriais por ele próprio delineadas, forçando a presença de projectos muito distantes de “estarem em vias de serem construídos”; deixando de fora da selecção um manancial de obras e projectos, senão mais significativos, pelo menos mais representativos dessas tão almejadas heterodoxias e diversidades.
Na verdade, Portugal Fora de Portugal, não mostra vinte e um projectos de arquitectura; mas apenas um. Com diferenças formais, é certo. Tipologias distintas, geografias singulares. Autores diversos. Mas (quase) sempre partilhando os mesmos valores.
E sobre a hesitação de Hans? Pouco importa. Qualquer que seja a razão que explique o conhecimento que o nosso galerista alemão não tem sobre a produção arquitectónica em Portugal; o facto é que, na realidade, Hans raramente teve oportunidade de contactar com o trabalho de autores nacionais para além dos de Siza, de Souto de Moura e de Aires Mateus, ou, claro, com projectos e obras que de uma ou outra forma lhes são familiares. Na verdade, em nenhum daqueles sítios onde habitualmente se explora, se debate ou se apresenta arquitectura erudita contemporânea há registos significativos de autores portugueses que não os citados por Commerell. Desses ou de alguns dos seus sucedâneos, que de certa forma lhes querem ser indistinguíveis; pelo menos em termos de sensibilidade.
Somos então levados a concluir um facto, porventura menos simpático: o de que a arquitectura portuguesa, com excepção de aspectos que se prendem directamente ou indirectamente com os nomes que Hans refere, não têm contribuído em nada para o desenvolvimento da arquitectura a nível internacional. Não têm sequer produzido nada de relevante em termos disciplinares.
Concordemos. Porque, ao contrário daquilo que sempre é dito, com as habituais certezas de jornalista pouco dado a compreender realidades complexas, de cada vez que uma representação oficial portuguesa abre portas no estrangeiro – que é, invariavelmente: a confirmação da cotação em alta arquitectura portuguesa lá por fora –; a produção arquitectónica nacional é pouco mais que irrelevante para o panorama disciplinar internacional. Do facto, aliás, lamentava-se um dos comissários responsáveis pela Metaflux [www.instituto-camoes.pt/encarte/encarte78d.htm] – a mostra que representou Portugal na Bienal de Arquitectura em 2004. A dificuldade sentida em, por exemplo, enquadrar a produção nacional – leia-se: a encontrar projectos, obras ou autores – no tema lançado por Kurt Forster terá levado a dupla de comissários Pedro Gadanho / Luis Tavares Pereira a uma espécie de fuga em frente. Ao invés de concorrer com a discussão teórica que Metamorph levantava, e cujos exemplos arquitectónicos se dispunham lado a lado, ao longo dos intermináveis corredores do Arsenale, Metaflux iria explorar, forçadamente, a única “metamorfose” que tinha à mão: as diferenças identitárias entre duas gerações (demasiado próximas) de criadores nacionais. Relembre-se que grande parte dos conteúdos com que se traça Metaflux é herdada de um ciclo de exposições organizado por Serralves dois anos antes, na cidade do Porto, intitulada Influx. Aí Gadanho / Tavares Pereira ensaiariam, em périplo livre de obrigatoriedades temáticas, uma apresentação dos novos autores portugueses que entretanto começavam a construir as suas primeiras obras; sendo essa a matéria que, inevitavelmente, estaria representada na Bienal de Forster; que, claro, dificilmente, se enquadraria nas vontades do comissário geral do evento.
Neste caso Metaflux poucas respostas mais poderia dar a Forster do que as possíveis e subtis diferenças, as ligeiras mudanças, as escassas metamorfoses observáveis entre um tipo de arquitectura próxima daquilo a que Ricardo Carvalho recorreria em Portugal Fora de Portugal – que, em Metaflux, se designou por “Geração X” –, e todo um outro universo de autores que, com excepção de Brandão Costa, pouco ou nada teriam em comum com os seus antecessores ou, sequer, entre eles próprios – por oposição: “Geração Y”).
A construção dos conteúdos de Metaflux [www.tinyurl.com/l37o7k] assentava numa ideia simples: demonstrar a insatisfação com a repetição da tradição e com o conservadorismo; pondo-as, à tradição e à respectiva insatisfação, em confronto directo; ideia que Gadanho recorda em recente entrevista que dá à Artecapital [www.artecapital.net/entrevistas.php?entrevista=61]. Veríamos, de um lado, autores tradicionalmente ligados às teses que vêm vindo a acompanhar a criação arquitectónica nacional desde a década de 90, como é o caso de Inês Lobo / Pedro Domingos, Francisco Vieira de Campos / Cristina Guedes ou Promontório; e do outro, autores que de uma ou outra forma incorporariam influências mais heterogéneas: Bernardo Rodrigues, Carlos Pedro Sant´Ana ou Marcos & Marjan, entre outros. A tese defendida em Metaflux, por ser baseada em projectos e obras iniciais de arquitectos jovens, virá, claro, a ser abalada por posteriores desenvolvimentos da arquitectura desses autores; sendo que os resultados obtidos pelas procuras individuais de cada um contrariam a distinção clara entre uma e outra gerações.
Para além do trabalho dos doze arquitectos, a exposição mostrava obras de artistas plásticos, querendo porventura afirmar que por cá a arquitectura (também) existe nas franjas da interdisciplinaridade. E, nesse sentido, Metaflux não só foi a primeira representação oficial portuguesa a Veneza, como inaugura aquilo que se viria a demonstrar ser uma constante nos principais eventos internacionais de arquitectura organizados pelo Instituto das Artes (actual Direcção Geral das Artes): a tentativa de integração disciplinar da cultura arquitectónica noutros campos de criação artística.
Facto é que a distância entre aquilo que nos era dado a observar na exposição geral organizada por Forster – onde estavam, invariavelmente, projectos de Siza e de Souto de Moura –, seria a mais clara demonstração da distância de conteúdos entre as respostas internacionais ao tema proposto e as nossas próprias. Não que a dupla Gadanho / Tavares Pereira tivesse deixado de arriscar: convidar arquitectos sem qualquer obra construída terá equivalido a uma ruptura com as regras curatoriais até então postas em prática por todos aqueles que levavam a arquitectura nacional fora de portas. No entanto, a presença de autores como Bernardo Rodrigues ou Carlos Sant’Ana e, sobretudo, a exclusão de um rol de arquitectos nacionais de reputação pública, terá tido mais impacto em Portugal do que em Veneza; onde, à falta de pavilhão próprio, a representação nacional surge bem lá no final do Arsenale, longe dos olhares atentos dos visitantes.
Talvez o facto da exposição ter estado longe do centro da Biennale ajude a explicar as escassas consequências a nível internacional que Metaflux trouxe para a arquitectura portuguesa. Porque sem a existência de um pavilhão próprio, capaz de singularizar e destacar as selecções que Portugal leva às bienais de arquitectura (e de arte) de Veneza; dificilmente os seus conteúdos serão distinguíveis de tantos outros que concorrem entre si para conquistar visibilidade e reconhecimento. Faltou também a Metaflux a eficácia que se observa em outras representações bem mais experientes, capazes de granjear visibilidade aos seus autores; facto esse que, convém não esquecer, é o principal objectivo de quem escolhe participar num evento desta natureza. Pelo contrário, o Instituto das Artes não tiraria qualquer tipo de proveito da presença dos autores nacionais em Veneza – como continua a não o fazer até hoje – dispensando-se de organizar em seu torno um ciclo de conferências, um debate público ou uma simples apresentação à imprensa especializada.
Do mesmo modo, a relevância nacional de Metaflux terá sido escassa, não se observando grandes alterações no panorama arquitectónico português. Gadanho frisa o facto quando diz: “Registei com curiosidade que nenhum desses arquitectos [que participou na Metaflux] estava, três anos depois, a apresentar trabalho junto das estrelas internacionais que fizeram o programa de conferências da Trienal de Arquitectura de Lisboa […] Achei isso gritante e, para mim, tal quer dizer que, apesar do que se propagandeia por aí, algo vai mal no reino de Portugal. A arquitectura portuguesa continua a alimentar-se de um capital simbólico ilusório. De facto, o “reconhecimento externo” de um certo número de protagonistas esgota-se progressivamente [...] Por outro lado, não se está a aproveitar uma herança identitária forte para criar a biodiversidade que garantiria uma sobrevivência saudável do meio a longo prazo... Mas, mais uma vez, tudo isto é muito português, o resultado de uma mentalidade muito mesquinha”. [www.artecapital.net/entrevistas.php?entrevista=61]
Bastariam dois anos passados sobre Metaflux para se confirmar todo o cepticismo que Gadanho deixava adivinhar: Richard Burdet, comissário-geral da X Biennale di Venezia, organizada sob o tema Cidades: Arquitectura e Sociedade, esquece por completo a arquitectura portuguesa, não havendo qualquer registo de autores nacionais. O facto repetir-se-á uma vez na mais última Bienal, já em 2008. Talvez Aaron Betsky, o comissário geral da mostra, julgasse que nada na arquitectura nacional se enquadrasse no tema que elegeu: Out There: Architecture Beyond Building. E no entanto a razão é, quanto a nós, mais simples: Betsky não encontrou, no curto rol de autores portugueses cuja obra conhece, nenhum exemplo que permitisse ilustrar as suas ideias.
Não é que Portugal tenha deixado de estar presente em Veneza, em 2006 e em 2008. Pelo contrário. Sendo a representação nacional da responsabilidade directa do Instituto das Artes (actualmente Direcção Geral das Artes), delegada pelo Ministério da Cultura, a organização das embaixadas culturais às Bienais de Veneza foi uma das grandes apostas do então recém-empossado director da instituição, Paulo Cunha e Silva, pondo cobro às anteriores indecisões do arquitecto José Manuel Fernandes, seu directo antecessor, quanto ao assunto. Anos mais tarde, aliás, o próprio José Manuel Fernandes ganharia consciência da importância de ver a arquitectura nacional ser mostrada fora de portas, tendo sido ele próprio comissário da exposição XXI Projectos do Séc. XXI: Reflexos da Arquitectura Portuguesa na Década Actual, que teve lugar na Expo’08, em Saragoça. Alguns dos autores escolhidos pelo ex-director do Instituto das Artes: Siza, Souto de Moura, Aires Mateus, e outros como Byrne, Carrilho da Graça ou ARX.
Paulo Cunha e Silva, dizíamos, foi então o primeiro responsável político a ter consciência da importância de Portugal ver-se representado a nível oficial em Veneza. Fê-lo após Siza ter ganho o Leão de Ouro em Veneza (em 2003), facto esse que, porventura, terá ajudado a convencer o então Ministro da Cultura Pedro Roseta de que o investimento na visibilidade da arquitectura nacional traria retorno fácil e imediato.
E fê-lo com o cunho próprio de quem tinha sido anteriormente responsável pela extensa e heterodoxa programação cultural da Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura; com a mesma energia e transversalidade disciplinar que irá, a partir de então, delinear o caminho ambíguo das representações nacionais de arquitectura pelas quais a DGArtes é desde então responsável: a interdisciplinaridade. Ou, por outras palavras: a inclusão das artes plásticas na arquitectura portuguesa. Desse modo, artistas como Fiúza Faustino, Nuno Cera, Rui Toscano, ou até Pedro Bandeira – arquitecto que vê o conteúdo do seu trabalho relegado para o campo das artes plásticas – convivem lado a lado com o vínculo disciplinar da arquitectura mostrada em Metaflux.
Logo no ano a seguir (2005) confirma-se a tendência dessa miscigenação entre arte e arquitectura patrocinada pelo Instituto das Artes, outra vez com Bandeira decidido em ser artista, agora a ensaiar Entrada de Emergência: nem mais nem menos do que uma instalação bem no centro da Bienal de Arquitectura de S. Paulo (sob o tema Viver na Cidade: Arquitectura, Realidade e Utopia). Bem longe dessa utopia de Bandeira estavam, claro, as realidades de Souto de Moura e de Byrne (que trazia um filme com Siza), com mostras individuais, respectivamente: 22 Casas, e Geografias Cristalizadas; ambas patrocinadas pela Ordem dos Arquitectos.
2006 traz nova Bienal de Veneza. A filosofia de Cunha e Silva mantém-se. Não que desta vez haja algum artista na embaixada portuguesa. Não há: ambos os autores – Pancho Guedes e Ricardo Jacinto são arquitectos de formação. E no entanto, para comissário da representação oficial Portuguesa, o Instituto das Artes designa Cláudia Taborda, paisagista, cuja relação com a arquitectura passa pouco pelo conhecimento disciplinar alargado. O resultado desta mistura é, no mínimo audacioso: ao tema Cidade: Arquitectura e Sociedade, Ricardo Jacinto (cujo curriculum arquitectónico é inexistente, dado que a sua actividade se centra nas artes plásticas), Pancho Guedes e Claúdia Taborda trazem-nos Lisboscópio, “um dispositivo efémero e móvel, cuja construção explora a utilização da matérias que anunciam a transformação da cidade”.
Vale bem a pena transcrever a sua explicação, para os menos entendidos na matéria: “No seu primeiro momento de concepção [Lisboscópio] foi imaginado a habitar e ser habitado no Esedra [?]. Posteriormente, formou-se como unidade de um corpo múltiplo que se fecha para viajar e se abre para mostrar, a ser experienciado noutros lugares. No sítio, Lisboscópio ocupa a sua geografia e redefine um lugar. O corpo-contentor anelídeo constrói-se com tubos, redes, telas e madeiras, reproduzindo-se, recriando-se e aparentando-se, sem alguma vez se constituir como igual. Lisboscópio contém um pulsar sussurrado de uma cidade perscrutada que flúi dentro do seu intricado sistema activo contínuo e fragmentado, comunicante e aberto. O espaço diáfano é ocupado por uma estrutura que se cria como matéria e espaço impulsores da experiência. Na passagem, os momentos de pausa exploram e desvendam uma funcionalidade simples que activa na experiência de habitar uma compressão do espaço e expansão dos sons que se propagam num movimento com desfasamento temporal. Lisboscópio poderá habitar-se como lugar, através de um estar performativo e resiliente, sendo o corpo um espaço da sua experimentação que sugere a passagem como tempo habitado sem territorialização.” [www.trienal.blogs.sapo.pt/20320.html]
Naturalmente que o nosso Hans nada comprenderia de Lisboscópio.
(Continua)
Pedro Machado Costa
Pedro Machado Costa (1972). Licenciado pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (1996), Mestre em Cultura Arquitectónica Contemporânea pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa (2004). A sua formação académica passa ainda pela Technische Universiteit Delf e pela École d’Architecture Paris-Conflans. Cria em 1997, com Célia Gomes, o a.s* - atelier de santos [www.projects.as]. É nessa condição que participa na Representação Oficial Portuguesa à IX Bienal de Arquitectura de Veneza, em 2004; ou na IV Bienal Ibero-Americana de Arquitectura, em Lima. Foi responsável pela organização das exposições de arquitectura L’Atalante, e A Casa Portuguesa, ambas em 2005. Tem textos publicados em revistas e livros de arquitectura, e mantém o Blog Quando as Catedrais eram Brancas [www.quando-as-catedrais-eram-brancas.blogspot.com]